Observatório Constitucional

O que resta ao Senado no controle difuso da constitucionalidade das leis?

Autor

  • Marcelo Casseb Continentino

    é doutor em Direito pela UnB/Università degli Studi di Firenze professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Ufersa procurador do estado de Pernambuco advogado e sócio efetivo do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

11 de outubro de 2014, 8h01

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O sistema de controle da constitucionalidade das leis no Brasil é tradicionalmente denominado “misto” por agregar elementos dos modelos difuso/incidental norte-americano e concentrado/abstrato austríaco. O que poderia configurar um sistema ideal, harmônico e exaustivo da fiscalização dos atos normativos revela, não obstante, paradoxos e tensões típicas do amálgama de tradições constitucionais distintas.

Na Reclamação (Rcl) 4.335, em que um desses elementos de colisão dos modelos aflorou, discutiu-se se a decisão de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus 82.959, em sede de controle difuso, poderia revestir-se de eficácia erga omnes independentemente da resolução do Senado Federal, conforme previsão da já octogenária regra do artigo 52, inciso X, da Constituição de 1988.

O julgamento da Rcl 4.335 durou quase oito anos, o que reflete a complexidade da questão analisada. Mesmo vencido quanto à tese da mutação constitucional que restringira a eficácia do inciso X do artigo 52 da Constituição, o voto do min. Gilmar Mendes lançou luzes sobre aspectos históricos da competência do Senado Federal e do sistema misto de controle da constitucionalidade, que vale a pena ressaltarmos.

Diferentemente do que vem sendo comum tratar-se nessa matéria, a questão do controle difuso e seus efeitos é menos uma questão de técnica jurídico-constitucional ou de definição de qual modelo de controle (concentrado ou difuso) está operando na análise da validade do ato normativo do que, propriamente, uma questão de embate político-constitucional em torno dos limites a serem impostos ao STF no exercício da fiscalização da constitucionalidade das leis em geral (difuso e concentrado).

Desde a sua concepção após a era republicana em 1890, o STF vem sendo comedidamente moldado. Uma investigação enriquecida com “espessura temporal” sem dúvida contribui a desenvolver essa perspectiva histórico-constitucional, que será tão-somente aqui esboçada.

Durante a Constituinte de 1890-91, os oposicionistas ao projeto republicano e federalista do governo revolucionário preocupavam-se com a gama de poderes concentrados no Supremo Tribunal Federal, instituição que sofria o risco concreto de converter-se em órgão auxiliar do Executivo, à semelhança do que ocorrera com o Conselho de Estado no governo imperial. Diversos constituintes antigovernistas manifestaram sua contrariedade à concepção institucionalmente fortalecida do STF, a qual se espelhava sobretudo na Suprema Corte dos Estados Unidos e pretendia romper com a tradição monárquica do seu “antecessor”, o Supremo Tribunal de Justiça do Império.

Nesse sentido, é significativa a advertência do magistrado e constituinte, Amphilophio Botelho Freire de Carvalho, que chamara a atenção dos colegas na Constituinte em relação à quantidade de poder conferido ao STF, órgão “que em si concentra a maior somma do poder político da nova fórma de governo, porque tem a faculdade de corrigir os erros do Executivo e do Legislativo, firmando a intelligencia da lei constitucional, e que é o tribunal que ha de julgar o Presidente da Republica nos crimes comuns”. Diante do passado imperial fortemente presente na experiência dos constituintes de marcada intervenção do Executivo nos assuntos do Judiciário, a criação do STF com “mais funcção politica do que função propriamente judiciaria”, em que seus membros seriam arbitrariamente nomeados pelo Presidente da República, poderia transformar o Brasil em uma “Singular Federação!”[1].

Cabe ressaltar que o “Governo Provisório”, através do Decreto 23, de 3 de dezembro de 1889, instituiu a “Comissão dos Cinco” para elaborar o Projeto de Constituição a ser encaminhado à Constituinte. Antes de enviá-lo ao Congresso soberano, contudo, o Projeto foi submetido à “revisão final” dos ministros do Governo Provisório, destacando-se nessa fase a participação proativa de Rui Barbosa. Dentre as alterações nele promovidas, Rui adicionou uma cláusula com o objetivo de introduzir o princípio da stare decisis no sistema constitucional brasileiro[2], que acabou rejeitada pela “Comissão Especial dos 21”, criada no seio da Constituinte para avaliar o mérito do Projeto de Constituição do Governo. Predominou na Comissão dos 21 o receio de que o STF se tornasse um órgão submisso ao Executivo e, por consequência, por meio da vinculação obrigatória dos tribunais, todo o Judiciário fosse cooptado pelo Executivo.

O que penso ser importante notar nesse processo histórico é que a não introdução do princípio da stare decisis não configurou mero esquecimento ou erro imperdoável dos constituintes; antes foi fruto de uma consciente decisão política de não atribuir-se tão ampla margem de poder ao recém-criado STF, que já fora investido com o poder de interpretação jurídica e do exercício do controle da constitucionalidade das leis, tendo em vista o risco de sua instrumentalização pelo Executivo e o comprometimento da independência funcional de todo o Judiciário.

De certa forma, esse sentimento refratário à maior envergadura institucional do Supremo influenciou em sua configuração no ano de 1934. O momento histórico-social é importante para compreensão dessa engenharia constitucional. A grave instabilidade política vivenciada no Brasil agravada nos idos de 1920, que culminou com a Revolução de 1930, somado com seu maior protagonismo na seara política através da denominada “doutrina do habeas corpus”, parece ter sugerido um movimento de refreamento institucional, que condicionou importantes alterações ocorridas no Judiciário suspeitando-se, inclusive, de “vingança” contra o STF por suas decisões contrárias aos revolucionários da década de 1920-30[3]. À luz desse contexto restritivo ao Judiciário, podemos entender melhor o papel do Senado na Constituição de 1934 e no sistema de controle de constitucionalidade, embora outros problemas e novos desafios tenham se apresentado em decorrência da experiência acumulada com o controle difuso inaugurado com a Constituição de 1891.

De um lado, entendia-se que o modelo de controle (difuso/incidental) da constitucionalidade era “falho” porque os efeitos das decisões do Supremo eram limitados às partes do processo e não obrigavam os demais órgãos. Assim, não tinham o condão de reduzir o volume dos processos no STF e no Judiciário nem de tornar a justiça mais célere, barata e efetiva na tutela dos direitos dos cidadãos; a decisão do Supremo configuraria uma espécie de “voto sem força obrigatória” ou, ainda, de um voto “com força obrigatória puramente platônica”[4]. Sob tal ponto de vista, seria imprescindível instituir algum mecanismo que fizesse com que a declaração de inconstitucionalidade se revestisse de efeitos contra todos os destinatários.

De outro lado, confiar ao STF a prerrogativa de julgar nulas leis com eficácia erga omnes ensejaria o grave risco de criar-se uma “ditadura judiciária no País”, conforme opinião do constituinte Nilo de Alvarenga[5]. A solução encontrada foi conferir ao Senado a atribuição de estender os efeitos da decisão do STF, quando fosse o caso; antes dessa definição, porém, chegou-se até mesmo a considerar a criação de um Tribunal Constitucional a exemplo da Corte da Áustria como alternativa aos “inconvenientes do judiciarismo” e de eventual ditadura do Judiciário. A proposta inovadora cedeu à força da tradição do sistema difuso então em vigor há mais de quarenta anos.

Destaque-se que, na Constituição de 1934, o Senado era um órgão colaborador da Câmara dos Deputados no exercício do Poder Legislativo (artigo 22) e também exercia o papel de “coordenação dos Poderes” (artigo 88: “Ao Senado Federal, nos termos dos arts. 90, 91 e 92, incumbe promover a coordenação dos Poderes federais entre si, manter a continuidade administrativa, velar pela Constituição, colaborar na feitura de leis e praticar os demais atos da sua competência”), o que nos ajuda a compreender o porquê de haver sido o órgão escolhido para ampliar em caráter geral os efeitos da decisão do STF. Estava presente o objetivo de evitar o receado expansionismo judicial.

A orientação de que as decisões do Supremo deveriam ter eficácia inter partes prevaleceu no contexto histórico-jurídico de 1891 e de 1934, ocasionando a rejeição da adoção do princípio da stare decisis. Houve uma clara decisão de não atribuir-se ao STF tamanho poder a ponto de autorizá-lo a, decidindo um caso individual, proferir decisões com efeitos erga omnes, assumindo-se o risco de se implantar uma “juristoracia”. A competência do Senado como instância adequada a realizar o juízo de generalização dos efeitos da decisão do STF consumou, portanto, a própria negação da stare decisis em prol da manutenção da tradição institucional e constitucional do STF de sempre decidir em concreto.

Esse mesmo exercício histórico há de ser realizado em relação às Constituições de 1946, 1967/69 e 1988 e, cremos, possivelmente conduzirá a preocupações semelhantes compartilhadas pelos constituintes de 1890-91 e de 1933-34. Resta, agora, saber até que ponto o argumento histórico quanto à justificativa da competência do Senado em matéria de controle difuso pode e/ou deve ser utilizado para ratificar ou retificar nossa história constitucional.

Eis aí o ponto no qual divergem os votos dos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, que me afiguram os mais representativos para esta abordagem.

O primeiro ministro usa o argumento histórico para modificar a realidade presente, isto é, defender que a atribuição do Senado no controle difuso assenta-se em “razão de índole exclusivamente histórica”, seja porque (i) a suposta “bipolaridade” dos sistemas difuso e concentrado está em decadência nos principais sistemas constitucionais do mundo, (ii) a cultura jurídica brasileira de hoje não mais encerra o princípio da separação dos poderes nos moldes rígidos da década de 1930, (iii) o próprio STF já proferiu várias decisões em processos de índole subjetiva cujos efeitos se estenderam contra todos (erga omnes).

Tais ponderações são relevantíssimas, sendo suficiente lembrar que o próprio conceito de controle de constitucionalidade (bem como seu similar norte-americano, judicial review) alterou-se substancialmente no tempo desde sua introdução em nossa ordem política. É suficiente lembrarmos que, em suas origens, o controle judicial envolvia apenas a não aplicação ao caso concreto da lei tida por inconstitucional; hoje em dia, nossa cultura jurídico-constitucional admite-o a ponto de autorizar o Judiciário a definir e exigir a realização de políticas públicas em face da omissão inconstitucional do poder público. Uma consequência da maturação do pensamento constitucional brasileiro e da própria mutação conceitual de controle judicial deixa-se, ainda, sentir na forte presença de um novo léxico na linguagem jurídica e política nacional: “ativismo judicial”, tema que vem chamando a atenção de muitos estudiosos e de suas produções.

O ministro Lewandowski, por sua vez, argumentou que seria imprópria a interpretação do artigo 52, inciso X, da Constituição que, por meio do reconhecimento de mutação constitucional, concluísse pela “capitis diminutio” da competência expressamente conferida ao Senado pela Constituição de 1988, que, inclusive, vem sendo reafirmada desde a Carta de 1934 (à exceção da Polaca).

Pesa em favor de seu entendimento, a noção mais basilar do princípio da separação dos poderes enfatizada desde Montesquieu: necessidade eterna de evitar-se que qualquer órgão estatal concentre em si demasiada quantidade de poder sob pena de fazer ruir as liberdades dos cidadãos. O novo conceito de ativismo judicial no cenário brasileiro mostra que mecanismos de controle recíproco são essenciais para a preservação dos direitos fundamentais e do equilíbrio entre os Poderes, mesmo que direcionados contra o Judiciário. A depor contra sua opinião, subsiste o apego (quase) naturalizado à diferenciação radical entre os controles difuso e concentrado, desconsiderando as diacronias e os contextos próprios de formação de cada uma dessas tradições de controle nos sistemas comparados e brasileiro, de modo que, com base nessa rígida distinção (difuso x concentrado), fosse possível inferir dogmas imutáveis relativos à definição dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade.

Numa e noutra situação, passado e presente travam uma batalha épica e secular em busca da melhor interpretação das normas constitucionais. O argumento histórico é utilizado em direções opostas, ainda que mantenha o núcleo finalístico comum: usar-se o passado de modo autoritativo e vinculante do presente seja para preservar a tradição, seja para romper com ela[6].

Não acho que o uso da história sirva para julgar uma ou outra argumentação jurídica. Porém, serve por certo para refletir criticamente sobre ambas, pois a decisão na Rcl 4.335 sequer fechou a questão sobre o papel do Senado Federal. E provavelmente não a resolveu em definitivo porque, no fundo, o que estava (e está) em causa é a própria concepção do sistema de controle da constitucionalidade das leis no Brasil e os limites institucionais do exercício da jurisdição constitucional pelo STF.

Longe de pretender exaurir o presente debate, limito-me a expor uma hipótese de trabalho quanto à interpretação do artigo 52, inciso X, da Constituição de 1988, que me parece conciliar historicamente passado e presente do constitucionalismo brasileiro, preservando a competência do Senado e, ao mesmo tempo, fortalecendo a autoridade decisória do STF; ela resguarda a secular preocupação de Montesquieu de não concentrar grande soma de poderes em um único órgão mediante a adoção de controles recíprocos mas se sensibiliza com o desenvolvimento da nossa cultura jurídica e com os desafios práticos da realidade brasileira. Ei-la: excepcionalmente as decisões incidentais de inconstitucionalidade poderão revestir-se de eficácia erga omnes quando a natureza e a complexidade da questão assim o exigirem; nessa circunstância, que não é inusitada na jurisprudência do Supremo, caberia ao Senado o papel institucional de realizar um “controle inverso”, isto é, em discordando do conteúdo da decisão com efeitos erga omnes, ele editaria a respectiva resolução fazendo com que os efeitos da decisão do STF se restringissem ao caso concreto, mantendo-se a validade da lei para os demais casos.

É evidente, contudo, que essa proposição requer análise criteriosa de outros pontos controversos, dentre os quais destaco: a observância do devido processo legal[7]; a compreensão da forma pela qual o Senado tem efetivamente exercido sua competência na modulação dos efeitos da decisão do STF; em que medida a súmula vinculante afirma (ou não) a regra do artigo 52, inciso X, da Constituição; até onde a repercussão geral do recurso extraordinário esvazia ou não essa atribuição do Senado; se a distinção entre os modelos difuso e concentrado ainda faz sentido no constitucionalismo brasileiro e até que ponto dessa bipolaridade podemos extrair regras axiomáticas, apriorísticas e categóricas sobre o controle da constitucionalidade brasileira e a definição dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade do STF.

No entanto, conforme já alertei, essas e outras questões igualmente fundamentais, que ao fim constituem a arquitetura do nosso sistema de controle da constitucionalidade das leis, serão analiticamente examinadas numa próxima oportunidade.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).


[1] Cf. BRASIL. Annaes do Congresso Constituinte da Republica (1890-1891). Vol. II. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1924, p. 86-87 e p. 167.
[2] Ao artigo 34 do Projeto, Rui Barbosa ofereceu a seguinte emenda: “Art. 34. Compete privativamente ao Congresso Nacional: (…) § 18. Criar tribunais subordinados ao Supremo Tribunal Federal”. Cf. BARBOSA, Rui. A Constituição de 1891. In: Obras Completas de Rui Barbosa. Vol. XVII. Tomo I. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1946, p. 40.
[3] Cf. COSTA, Emília Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed. São Paulo: UNESP, 2006, p. 68 e ss.
[4] Cf. ALENCAR, Ana Valderez Ayres Neves de. A competência do Senado Federal para suspender a execução dos atos declarados inconstitucionais. Revista de Informação Legislativa: a. 15, n. 57, jan./mar., 1978, p. 223-328.
[5] Idem, p. 236 e ss.
[6] Cf. GORDON, Robert. The struggle over the past. Cleveland State Law Review: 1996, Vol. 44, p. 123-143.
[7] Para uma excelente reflexão sobre o ponto, recomendo o texto: QUINTAS, Fábio Lima. STF e Senado no controle de constitucionalidade. Revista Consultor Jurídico (ConJur). Disponível neste link.

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