Vantagens e benefícios

O paradoxo da remuneração da magistratura na lógica de Kafka

Autor

  • Ney Bello

    é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região professor da Universidade de Brasília (UnB) pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.

10 de outubro de 2014, 7h18

Os juízes federais de todo o Brasil ameaçam entrar em greve. A principal razão para o movimento paredista é, obviamente, a questão salarial. Há outras reivindicações, porém nenhuma delas seria capaz, sozinha, de levar significativa quantidade de magistrados sequer a uma assembléia, muito menos à paralisação. É a constatação — ou sensação — de que somos mal remunerados que nos leva ao movimento.

Em um país de paradoxos a discussão sobre a razoabilidade, ou não, de magistrados fazerem greve e a legitimidade dos pleitos vetorizados pelo movimento adquirem nuances que merecem análise.

Ser juiz, para alguns, é ser servidor público. Como todo e qualquer servidor, aos juízes parece legítimo que possam pressionar quem lhes paga o salário (ou subsídio) de todas as maneiras, inclusive através de uma greve. Perceber a judicatura como o agir de um conjunto de seres elevados, com aspirações divinais e incapazes de ir à greve, soa tão estranho que não parece minimamente sustentável.

Porém, fazer greve quando se tem interseção considerável na sociedade sempre traz à baila a visão que o mundo tem de quem somos e que direito possuímos. 

A credibilidade do Poder Judiciário brasileiro é extremamente baixa. O grau de confiabilidade do cidadão na instituição, segundo dados do Índice de Confiabilidade Social (ICS) medido em 2013, coloca-nos atrás das igrejas, dos bancos, das ONGs e da mídia. Isto implica dizer que a sociedade confia mais num blogueiro, num banqueiro e num pastor evangélico do que em um juiz. Há, portanto, uma natural dificuldade de legitimação social para qualquer movimento. Como a sociedade entenderá a greve por aumento de salários de integrantes de uma instituição na qual ela não confia? E quem tem as atribuições de nos aumentar os subsídios sentir-se-á sensibilizado por um movimento que é mal visto por quem os elege?

Há os que não se preocupam com o que a sociedade acredita que deva ser o trabalho do julgador. Não estão de todo errados. Há sempre um lado que perde e um lado que ganha num processo judicial. Logo, é também legítimo ao perdedor não confiar e até sentir ojeriza pelo lugar do juiz. Nossa carreira nunca foi feita para os aplausos.

Contudo, é esta mesma sociedade que democraticamente controla o poder público que nos paga os subsídios. Sua opinião realmente não importa?

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou recentemente dados que demonstram o volume de julgamentos do juiz brasileiro. No nosso país cada magistrado sentencia, em média, 1,6 mil processos ao ano, o que nos coloca em patamar superior à média europeia e americana.

No Tribunal Regional Federal da 1ª Região, um dos mais abarrotados tribunais do país, é comum a um desembargador com acervo previdenciário ou tributário julgar mais de 8 mil processos ao ano.

É um pouco de mito dizer que o Judiciário brasileiro não trabalha. Igualmente, é um erro pensar que todos os juízes trabalham o quanto deveriam.

Quantos de nós trabalham efetivamente oito horas diárias, cumprindo jornada equiparável aos demais trabalhadores? É comum ver juízes trabalhando bem mais que a jornada semanal de 40 horas, porém é também comum verificar a existência de tantos que não laboram da mesma forma.

Vejamos também que um juiz português começa a sua carreira ganhando nada mais que 1,2 mil euros, o que é bem menos que os quase 7 mil euros correspondentes aos subsídios da magistratura, no Brasil. E ganhar cerca de R$ 23 mil num país com sérios problemas sociais, onde a miséria é mais palpável que na Europa, parece ser algo muito longe da ideia de salário indigno.

Mas não devemos esquecer que os europeus não gastam com saúde ou escolas de qualidade e têm transporte público — que efetivamente funciona — a seu dispor. Os europeus também não têm prédios muito grandes, de arquitetura e construção caríssimas, para neles oficiar, drenando os orçamentos do Poder Judiciário.

Assim, em uma visão internacional fica fácil perceber que o salário do magistrado brasileiro não é ruim, embora as condições estruturais de outros países comparados ao nosso permitam uma desnecessidade de gastos individuais.

Porém, há uma questão relevante que quase nunca é verbalizada: a auto consideração acerca do cargo.

Em um país de tendência colonial — ou talvez reinol — como o nosso, onde os títulos de Conde, Barão e Visconde foram substituídos no imaginário popular pela ideia de promotor, juiz ou desembargador e o cargo de ministro está mais perto da ideia de Duque do que de funcionário público, parece que a muitos custa entender que médicos e professores são tão ou mais importantes para a vida das pessoas do que nós magistrados. Logo, não temos direito natural a um salário maior que o de outros! A sensação de que a atividade exercida é de tal maneira sublime e importante que carece de uma remuneração superior parece brotar de muitos lugares, levando à sensação de desconsideração, quando se é remunerado mais modestamente.

No entanto, também não temos razão para ganharmos menos do que outros atores do teatro jurídico.

Os grupos de debate entre magistrados foram invadidos na semana passada por contracheques de procuradores da república e juízes estaduais demonstrando que, em regra, na maioria dos estados e no Ministério Público Federal, ganha-se muito além dos subsídios.

Rubricas como auxílios e benefícios, vantagens eventuais, vantagens pessoais, quintos/décimos, auxílio moradia, auxílio escola, gratificação por difícil provimento, venda de férias, dentre outras, permitem que integrantes do Ministério Público percebam até o dobro do subsídio devido a um juiz federal.

Os procuradores da república que atuam perante os magistrados recebem bem mais que eles. Servidores do Judiciário, não raro, ganham mais do que os magistrados com quem trabalham.

Ainda que não se possa dizer que se cuida de um salário ínfimo, ainda que não se possa dizer que merecemos ganhar mais que os outros, beira a irracionalidade que os juízes federais sejam a categoria pior remunerada dentre aquelas que fazem o mister da Justiça.

A resposta dada por diversos integrantes do MPF soa como um soco no estômago: Todas as nossas retribuições são legais. A magistratura federal é que não consegue defender seus interesses perante o Congresso Nacional e nem se fazer representar de forma eficaz.

O Supremo Tribunal Federal, reconhecendo a falta de lógica interna nessa diferenciação remuneratória, concedeu liminar aplicando a toda a magistratura federal a verba de auxílio moradia, que é percebida pelos juízes auxiliares e magistrados instrutores que atuam mediante convocação na Corte Suprema e pelos procuradores da república.

O acréscimo foi decidido em uma ação judicial. Não houve decisão de acréscimo de valores em razão de mobilização junto ao Congresso nacional. Não houve lei específica.

Há quem diga que juízes deveriam tê-la percebido por lei, não por decisão judicial; há quem diga que se tratou de um simples aumento, não uma indenização em razão de alugueres; há quem diga que foi uma decisão política e não jurídica.

A dar por verdadeiro este estado d’arte, algo ressoa de forma retumbante. Soa feroz a constatação de que todo este contexto é digno de um Kafka.

Estaríamos agindo melhor se partíssemos para atuações políticas no Congresso Nacional? Estaríamos agindo melhor se recusássemos a possibilidade de greve? Estaríamos agindo melhor se nos conformássemos com o que percebemos, mesmo que seja inferior aos integrantes do Ministério Público? 

Autores

  • é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Pós-doutor em Direito, professor, membro da Academia Maranhense de Letras.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!