Direito Comparado

A fabulosa descoberta de que existe um paraíso dos juristas (parte 2)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

8 de outubro de 2014, 16h30

Spacca
A fabulosa descoberta da existência do Paraíso dos Juristas – PJ causou sensação em todo o mundo (clique aqui para ler a coluna anterior). Antigas discussões teologais, um tanto fora de moda no reinado do papa Francisco, foram reacesas. Estudiosos de Literatura e Semiótica iniciaram a organização de um congresso para rediscutir a obra de Dante Alighieri. As editoras, às voltas com a profunda crise no mercado de livros, estudam o lançamento de versão reciclada d’A Divina Comédia com algum romance envolvendo zumbis, no estilo de Pride and prejudice and Zombies.

Nos cursos de Direito, especialmente em algumas pós-graduações, caiu como uma bomba a transcrição da página 2 da Teoria pura do Direito, que era muito citada e raramente lida, quando Kelsen enaltecia a importância dos estudos sociológicos e filosóficos, mas condenava o sincretismo dos métodos e vulgarização do conhecimento jurídico. Os bookmakers irlandeses, os melhores do mundo na arte de gerenciamento de apostas, começaram a receber lances sobre quais juristas do século XX entraram ou foram barrados nos campos repletos de lírios dos domínios paradisíacos.

Mas, é necessário retomar a narrativa iniciada na semana anterior, quando o renegado Kautsky, o convidado da semana para o chá dos civilistas no PJ, encontrou-se com Anton Menger von Wolfsgrün, o venerado socialista jurídico e aristocrata do Império Austro-Húngaro.

A reação de espanto de Menger com a abordagem de Kautsky pode soar estranha para um leitor contemporâneo, afinal o primeiro é um expoente do pensamento socialista jurídico e o segundo é um respeitado teórico marxista e fundador do Partido Social Democrata alemão. Vamos às explicações: Menger proferiu sérios ataques a Karl Marx, nos quais o acusava de plagiar o conceito de mais-valia e de apropriar de conceitos desenvolvidos por outros autores, como Thomas Hodgskin (1787-1869). Para além desses aspectos, havia uma séria divergência de concepções entre Menger e Marx. Para Menger, o pensamento marxiano era excessivamente louvado em fundamentos economicistas e historicistas. O verdadeiro socialismo reconduziria a um sistema baseado no entrelaçamento de três direitos fundamentais: (a) o direito ao produto integral do trabalho; (b) o direito à assistência; (c) o direito ao trabalho.

Kautsky foi escalado para reagir a Menger, o que ele fez com a publicação de um artigo na revista “O novo tempo”, dirigida pelo primeiro, no qual se refutam os argumentos mengerianos. De certo modo, essa discussão se reproduziu no fatídico reencontro das duas personagens na reunião ocorrida na quinta-feira antepassada, no centro d’A Mansão:

— Então, meu caro Von Menger, encontramo-nos novamente e veja só o quão curioso estarmos os dois no PJ.
— É, Kautsky, eu jamais imaginaria ter consigo no paraíso. Seja bem-vindo!
— Menger, vejo que está muito satisfeito. E pelo que tenho lido, você realmente conseguiu enganar seus colegas juristas com sua visão açucarada do Direito. Na fase atual das relações entre o Direito e a Política, as pessoas estão realmente muito confiantes que o Direito pode resolver todos os problemas e que se chegará ao socialismo por via de decisões judiciais e de políticas reformistas transformadas em leis.

— Ora, Kautsky, o que posso eu fazer se as pessoas querem apenas ser boas? Se muitos juízes, professores, estudantes de Direito, advogados e promotores acreditam que lhes foi concedida a missão de transformar o mundo? De transformar a sociedade? Isso é muito bom. Minhas críticas ao Código Civil alemão terminaram por ser ouvidas e hoje ninguém mais defende aquelas ideias antissociais.

— Eu não acredito que você continua com essa cantilena piedosa, Menger. Suas críticas ao Código Civil alemão tiveram impacto zero na Alemanha, ao contrário de seu amigo aí, von Gierke. Esse sim foi ouvido. Embora muitas delas tenham advindo de ele se ressentir porque foi vetado para integrar a comissão redatora do BGB, não foi Gierke?

Gierke, com sua longa e aristocrática barba branca, fez um muxoxo e não respondeu à provocação. Ele sabia que era verdade. Seu nome foi vetado pela Baviera e outros Estados do Sul da Alemanha, apesar de ele possuir o apoio fortíssimo da Prússia e da Saxônia.

E Kautsky prosseguiu:

— As pessoas na terra, meu cargo Menger, estão cegas por seu discurso “fofo” e tão agradável a uma época politicamente correta. Eu tenho muito medo de gente que “só quer fazer o bem”. O Direito é superestrutura. Ele não tem meios de transformar a realidade social de maneira efetiva. Sua concepção de Direito é pequeno-burguesa e só serve para retirar Deus da centralidade do Direito e colocar o homem em seu lugar. Assim você justifica o abandono do Direito Natural, mas continua a sustentar o mundo jurídico em uma teologia pseudo-humanista. Ao invés da Igreja, você coloca o Estado como sumo-sacerdote do Direito. No lugar de um grupo de líderes religiosos que verterá para o povo a “palavra de Deus”, teremos agora um grupo de juristas que traduzirá para o povo a “palavra do Direito”, especialmente se ela vier revestida sob a forma de um livro sagrado, como a Constituição.

O clima esquentou, apesar dos potentes climatizadores mantidos em funcionamento no paraíso pelo Ministério do Tempo, cujo titular acumulava as funções de ministro da Justiça, que é o famoso Pedro, pescador de almas e chefe do serviço de imigração dos territórios celestiais.

Os civilistas das outras rodas se aproximaram para acompanhar mais de perto os debates. Savigny, Jhering, Windscheid, Puchta, Tobias Barreto, San Thiago Dantas, Beviláqua, Pothier e Henri Capitant cercaram os debatedores. Até mesmo Teixeira de Freitas, que gostava de se isolar na Biblioteca, voltou-se para a polêmica entre o morador do PJ e o ilustre convidado.

Gierke tomou a palavra, em apoio ao amigo Menger:

— E o que você tem a dizer da função social e das inúmeras transformações que o Direito ofereceu às pessoas atualmente?

Kautsky gargalhou. Era visível que ele estava a perder a paciência.

— O Direito, Gierke? Meu caro, a sociedade é quem conquistou seus direitos. Se os tribunais ou os juristas ofereceram soluções por meio de acórdãos ou de opiniões doutrinárias, elas na verdade só seguiram aquilo que a sociedade já praticava, desejava e por algum embaraço político não era implementado. Quando as pessoas não mais defendem certos valores, as coisas mudam. E não foi porque o Direito quis, mas porque as pessoas já o fizeram em suas vidas. O uso dos tribunais para tal fim é algo natural nos dias de hoje, quando não há mais um imperador, como o desastroso Guilherme II, que lhe deu o título de nobreza, Gierke, ou um conselho de senadores, como em sua Dieta Imperial, Menger, para fazer essa intermediação.

Karl Renner, conterrâneo de Menger, fundador da Áustria moderna e seu presidente nos piores momentos do século XX (1918-1920 e 1945-1950), entrou na discussão:

— Lamento Gierke. Mas, Kautsky tem alguma razão. Você sabe que sempre fui social-democrata e que minha obra mais famosa intitula-se Os institutos de Direito Privado e sua função social. No entanto, você e eu sabemos os absurdos que muitos autores escreveram em nossa época ao invocarem a função social. Acho que essa frase é sua, não Gierke? “Todo mundo chama de social aquilo que no momento lhe parece desejável”. Nos comentários histórico-críticos ao BGB, coordenados por esses discípulos modernos de Savigny, que são Rückert e Zimmermann, essa frase está reproduzida em um texto de um brilhante e jovem jurista chamado Hans-Peter Haferkamp.

Gierke, visivelmente constrangido, respondeu:

— É verdade, Renner. Eu reconheço que escrevi isso. Ei, você, Savigny, não ria de mim! Eu lhe conheço muito bem, seu filho de huguenotes, infiel às tradições germânicas com seu romanismo estéril. Com aquele papo de defesa do direito costumeiro, você não se pejou em aprovar a Lei dos Gravetos e romper a tradição jurídica dos camponeses entrarem em florestas privadas para retirá-los e se aquecer no inverno, sem autorização dos nobres.

Savigny corou. Ele tinha consciência de que algo de verdade existia naquelas palavras. O velho barão, que aos 24 anos publicara seu revolucionário tratado sobre a posse, não se fez de rogado:

— Estou rindo das ironias da vida, Gierke. Vocês, os germanistas, defendiam um código civil para a Alemanha, baseado nas tradições puramente nacionais. Eu sustentei o quanto pude a ideia de um direito fundado no “espírito do povo”. O código acabou sendo aprovado, mas foi escrito por meus discípulos, os romanistas. Vocês nunca nos perdoaram por isso! E seus seguidores terminaram por se aliar aos nazistas, a ponto de incluírem o fim das cátedras de Direito Romano no programa do Partido Nacional Socialista. Onde estão seus sucessores? Larenz? Wieacker? Haupt? Eu sei que eles terminaram por escrever a História do Direito Privado alemão, mesmo com seu passado condenável.

Um professor de língua hispânica, indignado com os rumos da discussão, entrou na conversa:

— Kautsky e Renner, vocês são uns conservadores! Como podem atacar os valores sociais? A força de transformação do Direito? O Direito não pode ficar em caixinhas, como se fossem peças de um jogo. Os códigos morreram. Vivemos a era dos princípios. Vocês não podem ficar ao lado desse positivista do Savigny.

Teixeira de Freitas, que foi “acusado” de ser romanista, levantou-se e cochichou no ouvido de Clóvis Beviláqua, que não aguentava mais ouvir que seu código de 1916 era “um filho tardio do liberalismo”, expressão usada por Wieacker para o BGB. Beviláqua, ele próprio um homem de posições socialmente progressitas e cujos avanços no Direito de Família foram podados em razão do clima da época, foi até à Biblioteca e retirou o livro Verdad y consenso, tradução da obra de um autor brasileiro chamado Lenio Streck. Com seus modos educadíssimos, Beviláqua ofereceu o volume encadernado em brochura para o colega de fala castelhana. E sugeriu: “Leia, meu amigo. Acho que você está confundido as coisas e as pessoas. Ou as palavras e as coisas”.

Em instantes, acabou-se a tranquilidade reinante n’A Mansão, o sólido prédio central do Paraíso dos Juristas. O jurista que falava espanhol folheou o livro de Streck e encontrou uma menção a um professor Cattoni, de Minas Gerais, que havia desafiado o senso comum no caso Ellwanger, e irritou-se com o que leu. A ele se uniram outros civilistas, que logo pediram ajuda aos colegas de outras áreas, que se mantinham em outros espaços d’A Mansão.

Savigny foi imobilizado. O social-democrata Renner, que tentou defender o velho barão, viu-se abatido com um exemplar do Corpus Iuris Civilis, na edição de Mommsen, que lhe atiraram à cabeça. San Thiago Dantas e Eduardo Espínola organizaram a resistência, mas foram vencidos.

Um triunvirato logo se formou e as discussões cessaram, a fim de se evitar uma intervenção do arcanjo Gabriel, tenente-general das Milícias Celestes. Kautsky foi mantido como refém, até que se decidisse o que fazer com ele. Graças a sua fama de renegado, não acreditavam que dessem por sua falta.

O triunvirato baixou as primeiras medidas de seu governo provisório. Proibiu-se de se falar em relação jurídica, pois esse era um conceito arcaico. Não haveria mais hierarquias acadêmicas em razão do artigo primeiro dos Estatutos Igualitários do Paraíso dos Operadores do Direito, a nova designação dos juristas: “Todos são iguais. Alguns são mais iguais que os outros”.

Aquilo que começara de modo tão alvissareiro, a descoberta do Paraíso dos Juristas, ameaçava tornar-se um malogro. No entanto, passados alguns dias, um pequeno grupo conseguiu fugir d’A Mansão e a notícia do motim espalhou-se pelos territórios celestiais. Em pouco tempo, o arcanjo Gabriel e seus milicianos aproximaram-se d’A Mansão e…

***

Não há informações precisas sobre como essa história terminou. Há versões conflitantes e o narrador não se sente autorizado a sobre elas portar por fé e afiançar sobre sua veracidade.

Algumas testemunhas dizem que houve choro e ranger de dentes no meio dos rebeldes, atacados pelas Milícias do Céu. Mas, esse fecho é contraditório com a natureza conspícua dos prados celestiais, onde impera o amor (ainda não juridicizado) e o perdão.

Segundo outras versões, igualmente confiáveis, um anjo caído infiltrara-se na Milícia comandada por São Gabriel e ajudara os sediciosos a propagar a rebelião por outros paraísos. Os fundamentos celestiais foram abalados. Físicos, matemáticos, economistas e médicos passaram a viver o mesmo estado de anarquia que só era conhecido pelos juristas. As fórmulas matemáticas e físicas não chegavam mais a resultados corretos, pois agora, sob influência do governo dos juristas, qualquer opinião era válida e toda resposta era certa.

A última, e provavelmente a mais confiável das versões dá conta de que o Todo-Poderoso, após ver tanta confusão e perfídia, resolveu expulsar todos do Paraíso dos Juristas, cujo nome fora restabelecido. Não satisfeito, Ele criou um exame de acesso ao PJ, à semelhança do Exame de Ordem, e constituiu uma comissão para a reforma do ensino jurídico, por acreditar que o problema estava na formação dos bacharéis.

Em pouco tempo, constituíram-se grandes empresas de cursinhos jurídicos para dar acesso ao PJ, afinal todos queriam entrar no paraíso. A antiga Biblioteca foi desativada, pois ninguém mais queria ler livros. Agora, só havia interessados em apostilas com esquemas e resumos do informativo do STF e do STJ. E ainda surgiu um santo, cujo nome não foi informado, que apresentou um projeto de decreto divino para a criação da carreira de paralegal. Santo Ivo e São Thomas Morus pediram transferência para o nível zero, onde ficam os anjos e as coortes celestiais, e resolveram escrever a História dos Subúrbios, em parceria com Machado de Assis.

***

Post-scriptum

Por se tratar de uma coluna, as referências deixaram de figurar em notas de rodapé, salvo na longa citação da Teoria pura do Direito. A ideia era deixar a leitura mais fluída e agradável. Neste post-scriptum, indicar-se-ão algumas fontes utilizadas, caso queiram aprofundar-se nos temas subjacentes às duas colunas.

Muitas das passagens sobre os juristas alemães e a história do BGB, especialmente sobre Menger, Kaustky e Gierke, podem ser lidas em profundidade no texto A influência do BGB e da doutrina alemã no Direito Civil brasileiro do século XX, de um autor de segunda classe, mas que vale pelas referências no rodapé (clique aqui para ler). A crítica de Anton Menger à teoria marxista, além da exposição de suas próprias ideias sobre a teoria socialista, encontram-se em The right to the whole produce of labour.

Notícia biográfica, em alemão, de Anton Menger pode ser lida neste link A obra A função social do Direito Privado, de Otto von Gierke, em sua edição de 1889, pode ser lida aqui.

O leitor poderá ler A revolução proletária e o renegado Kautsky, em espanhol, neste link.

Uma última observação: os leitores foram extremamente sensatos e compreenderam que as menções religiosas constituíram-se em mera licença poética, como é tão comum em nossa literatura desde o século XIX. Machado de Assis é um excelente abonador dessa prática. Diante da situação atual do Direito brasileiro, porém, só com a ajuda de Deus!

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    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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