A experiência forense mostra que a delação tem sido utilizada como recurso atípico à obtenção da liberdade do acusado que se encontra sob prisão temporária ou preventiva. Os recentes casos noticiados na mídia mostram que a restituição da liberdade de locomoção é utilizada como moeda de troca, como prêmio imediato concedido pela delação.
Nesse contexto, o réu delator está despido de garantias. Ele se vê obrigado a abrir mão de seus recursos e ações constitucionais, tais como o habeas corpus, o que só faz aumentar o descompasso entre a delação e o Estado de direito[14].
Por outro lado, estabelece-se entre o acusado, o Ministério Público e o juiz (sobretudo após a homologação) uma bizarra relação de confiança, a qual encontra paralelo na precisa lição de Nilo Batista, quando ele descreve os procedimentos de tortura narrados por Nicolau Eymerich, inquisidor geral da Catalunha[15].
Lá estão presentes alguns dos elementos indicados nos dispositivos legais vigentes no direito brasileiro, especialmente a previsão de que o réu deveria confessar espontaneamente, após lhe serem mostrados os instrumentos de tortura: “a visão dos instrumentos de tortura pode nele infundir sentimentos que resultem na confissão”[16].
Mas o que mais chama a atenção é o fato de que em havendo confissão, o arguido seria levado a uma sala onde não havia qualquer sinal dos instrumentos utilizados na tortura, a fim de que ele viesse a confirmar a confissão. Caso a confissão não fosse confirmada, a tortura teria continuidade, pois ela, de acordo com a regra, não poderia recomeçar[17].
A mórbida semelhança entre esses procedimentos e aqueles verificados na Lei 12.850/2013 é impressionante, especialmente nos casos em que a delação é feita por arguidos que se encontram sob prisão. Uma vez homologada a delação, o acusado é posto em liberdade. Por alquimia legal, ele será transformado em testemunha da acusação, com o compromisso de dizer a verdade. Se os depoimentos futuros não confirmarem o que foi declarado sob delação, certamente o arguido retornará ao estado anterior, ou seja, à prisão.
O constrangimento físico e moral representado pela prisão, portanto, acaba sendo a mola propulsora da efetividade da delação. Nesses termos, se a efetividade de um instituto jurídico depende do absoluto rompimento com o Estado democrático de direito vigente, é manifesta sua inconstitucionalidade.
Nas veementes e precisas palavras de Jacinto Coutinho: “Inconstitucional desde a medula, a sua prática, dentro de um sistema processual de matiz inquisitória ofende 1º) o devido processo legal; 2º) a inderrogabilidade da jurisdição; 3º) a moralidade pública; 4º) a ampla defesa e o contraditório; 5º) a proibição das provas ilícitas. Só isso, então, já seria suficiente para que se não legislasse a respeito e, se assim fosse, que se não aplicasse”[18].
[1] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6 ed.. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1198.
[2] GILMAR F. MENDES, INOCÊNCIO M. COELHO e PAULO G. G. BRANCO, Curso de Direito Constitucional, p. 304-305.
[3] É o que ocorre, por exemplo, nos casos das escutas telefônicas, onde há intensa regulamentação dos requisitos indispensáveis à restrição ao direito fundamental à intimidade e à privacidade.
[4] Assim: o art. 159, §4º, do Código Penal; art. 25, §2º, da Lei 7.492/96; art. 16, parágrafo único da Lei 8.137/90; art. 6º da Lei 9.034/95; art. 1º, §5º, da Lei 9.613/98; artigos 13 a 15 da Lei 9.807/99.
[5] Destaquem-se os artigos 13, II, da Lei 9807/99 e 159, §4º, do Código Penal, os quais incluíram a localização da vítima e a preservação de sua integridade física.
[6] Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: Instituto Houaiss, 2001, p. 1236.
[7] Sobre o tema: CÂMARA. Notas Sobre as Cautelas Prisionais e os Crimes Contra a Ordem Econômica. Boletim do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico – IBDPE, 2.ed., Curitiba: IBDPE, 2014, p. 5 – 6.
[8] MORO, Sergio Fernando. Não é dos Astros a Culpa. Folha de São Paulo, edição de 24 de agosto de 2014.
[9] MAIER, Julio. Derecho Procesal Penal, t. 1, p. 739. “...el adjetivo ‘imparcial’ integra hoy, desde un punto de vista material, el concepto de ‘juez’, cuando se lo refiere a la descripción de la actividad que le es encomendada a quien juzga (...) ...refiere, directamente, por su origen etimológico (in-partial), a aquel que no es parte en un asunto que debe decidir”.
[10] Veja-se, a propósito, o julgamento pelo STF do HC 94.641, em 11/11/2008, Relator p/ o Acórdão o Min. Joaquim Barbosa, com destaques ao magistral voto do Min. Cezar Peluso.
[11] A Busca da Verdade no Processo Penal e a Delação Premiada. Direito Penal no Terceiro Milênio: Estudos em Homenagem ao Prof. Francisco Muñoz Conde, Cezar Roberto Bittencourt (Coord.), p. 461.
[12] Prova Penal e Sistema de Controles Epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 49 – 50.
[13] A Delação Premiada para a Identificação dos Demais Coautores ou Partícipes: algumas reflexões à luz do devido processo legal. Boletim IBCCRIM 202/Setembro 2009, p. 2-3.
[14] Sobre o tema, veja-se interessante matéria publicada na Conjur em 25 de setembro de 2009. http://www.conjur.com.br/2014-set-25/exigir-fim-hc-delacao-inversao-valores-kakay. Acesso em 29 de setembro de 2009 às 18h56’.
[15] Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro – I, 2.ed.. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 265-266.
[16] Idem, p. 265.
[17] Idem, p. 266.
[18] Delação Premiada: posição contrária.
Comentários de leitores
6 comentários
Denegrir porque ?
Engenheiro aposentado (Engenheiro)
Não vejo afronta nenhuma ao delator. Quem adere não o faz por livre opção ,visando benefícios ? Este instituto da colaboração premiada está mostrando ao público a sua utilidade ,pelas notícias dos efeitos positivos das confissões do ex diretor da Petrobrás e do doleiro Youssef no esclarecimento de crimes. A que serve denegri-lo?
Assim, os bandidos deitam e rolam à vontade!
Modestino (Advogado Assalariado - Administrativa)
Neste País, pegar bandidos está ficando cada vez mais difícil. É uma terrinha paraíso dos criminosos. Incrível que toda a vez que o legislador busca cercar essa corja há sempre alguém apresentando teses de inconstitucionalidades.
PromJust (Promotor de Justiça de 1ª. Instância)
Observador.. (Economista)
O senhor fez um contraponto esclarecedor ao artigo. E lamento, no Brasil, não existir o crime de perjúrio. Fico imaginando como daria uma outra feição aos processos se houvesse previsão para tal crime.
Enquanto todos, sociedade e agentes públicos, não levarmos muito à sério as leis e nossos Direitos (e deveres também), não seremos um país civilizado e desenvolvido.
Ficaremos sempre no limbo.Nem somos muito atrasados e nem consiguimos parear com as nações mais desenvolvidas do planeta.
Comentários encerrados em 16/10/2014.
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