Segunda Leitura

Recusa da inscrição de Joaquim Barbosa na OAB-DF merece atenção

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

5 de outubro de 2014, 12h40

Spacca
Pelo presidente Lula, Joaquim Barbosa, então procurador regional da República no Rio de Janeiro, foi convidado para ocupar as relevantes funções de ministro do Supremo Tribunal Federal. O presidente queria nomear alguém de cor negra, na mesma linha de raciocínio de Fernando Henrique Cardoso, que indicou Ellen Gracie Northfleet para o cargo, ou seja, a primeira mulher na corte. Ajudou na escolha o bom currículo de Joaquim Barbosa que, entre outras coisas, domina quatro línguas além do português, foi professor da Uerj e é doutor em Direito pela Universidade de Paris – II, na França.

No STF, Barbosa foi um ministro diferente. Tornou-se conhecido pelo rigor na condução da ação penal originária, conhecida como “mensalão”, na qual foram condenados e presos vários líderes políticos do partido político dominante, e também por ter dificuldades no relacionamento pessoal com os seus colegas, com advogados, jornalistas e associações de magistrados.

Recentemente aposentado, requereu em 19 de setembro a sua reinscrição na OAB-DF, certamente cancelada no passado por ter ocupado cargo público. Esta medida é possível e rotineira, havendo, apenas, a obrigação de não poder advogar por três anos junto ao juízo ou tribunal do qual se afastou (Constituição, artigo 95, V).

Ocorre que, o presidente da OAB do Distrito Federal, Ibaneis Rocha Barros Junior, opôs-se formalmente ao pedido, com a justificativa de que o requerente não tem idoneidade moral para exercer a advocacia. Em suporte da inusitada conclusão, estaria o fato de que Barbosa, como magistrado, teria praticado atos e dado declarações que seriam contrários à classe dos advogados

A recusa merece discussão.

Joaquim Barbosa conquistou popularidade máxima junto à população, fruto de sua atuação firme no caso do “mensalão”. Goste-se ou não dele, não se pode negar seu enorme prestígio na sociedade. Basta conversar, aleatoriamente, com o primeiro que se encontrar na rua. Este apoio é fruto do inconformismo da sociedade brasileira com um sistema judicial que, sujeito a dezenas de recursos, é um dos mais ineficientes do mundo.

Na outra ponta, despertou também grande rejeição nas profissões jurídicas, porque nunca se preocupou em ser simpático a quem quer que seja. Em seus anos de permanência no cargo atritou-se diversas vezes e, portanto, não é de surpreender que tenha angariado a antipatia de muitos. Por exemplo, das associações de juízes que não conseguiram, nos seus dois anos de mandato na presidência, estabelecer qualquer diálogo.

Mas a sua reinscrição na OAB-DF pode ser examinada sob o prisma amor e ódio? Evidentemente, não.

A OAB é considerada uma autarquia especial e, nas suas atividades, pratica atos administrativos. Por exemplo, quando realiza o concurso para habilitar alguém em seus quadros. No momento em que a reinscrição é negada, porque Barbosa não recebia os advogados ou algo semelhante, está se misturando um ato administrativo, que por força do artigo 37, “caput”, da Constituição tem que ser impessoal por um sentimento flagrantemente pessoal. Algo como: gosto, defiro, não gosto, indefiro.

Ensina a professora Odete Medauar que os atos administrativos devem obedecer ao princípio da impessoalidade, com o qual “a Constituição visa obstaculizar atuações geradas por antipatias, simpatias, objetivos de vingança, represálias, nepotismo, favorecimentos diversos …”     (Direito Administrativo Moderno, 17. ed., RT, p. 142). Na mesma linha, Marçal Justen Filho ao dizer que “o regime de direito público visa, em grande parte, a impedir que a vontade do ser humano, que atua como órgão público, seja orientada à satisfação de conveniências individuais e não à produção de resultados satisfatórios para a comunidade” (Curso de Direito Administrativo, 9. ed., RT, p. 393).

As lições acima se encaixam como uma luva ao presente caso. Se o ato não é impessoal, mas sim uma mera represália por fatos acontecidos no passado, é nulo por vício no seu conteúdo. E se é nulo, seu autor e o órgão que representa sujeitam-se a variadas consequências jurídicas. Vejamos.

O artigo 11, “caput”, da Lei 8.429/92, classifica como improbidade administrativa atentar contra os princípios previstos na Constituição e atuar com imparcialidade é um deles (art. 37, “caput”). Se a ação for parcial, vingança por fato pretérito, sujeita-se seu autor a responder  ação civil pública com base no dispositivo citado.

O Código Penal, por sua vez, dispõe no artigo 319 que pratica o crime de prevaricação quem “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”. Dirigente da OAB pode ser sujeito ativo deste delito, conforme artigo 327, parágrafo 1º, porque dirigentes de autarquias se equiparam a servidores públicos (TRF-2, AC 200151060000791, relator Alfredo França Neto, j. 31.5.2005). Ora, se a negativa de reinscrição tiver por base a satisfação de interesse pessoal (p. ex., vingança), em tese pode ocorrer o delito.

Do ponto de vista civil o ato administrativo também pode gerar consequências. Os artigos 186 e 927 do Código Civil atribuem  a quem praticar ato ilícito contra outrem a responsabilidade de indenizar  danos materiais e morais.  Se for reconhecido o vício da pessoalidade do ato administrativo, está aberta a possibilidade de Joaquim Barbosa acionar o presidente da OAB-DF e a própria seccional da Ordem por danos morais. Ainda mais que a alegada base da negativa seria a acusação grave de inidoneidade moral.

Além do que foi dito, fora do campo jurídico há ainda os reflexos políticos. Dentro da classe dos advogados as opiniões se dividem, uns contra e outros a favor da recusa. Fora da classe, certamente, esta é uma das mais impopulares iniciativas tomadas pela OAB, porque Joaquim Barbosa é querido e respeitado pela quase totalidade da população brasileira.

Pois bem, suponha-se que, independentemente de tudo o que foi apontado, o indeferimento seja definitivo. A Joaquim Barbosa restará a possibilidade de ingressar com Mandado de Segurança na Justiça Federal em Brasília, com pedido de liminar, visando obter sua reinscrição. Aí entra outro componente. Os juízes federais também não o veem com simpatia, porque o relacionamento de sua associação e Barbosa não foi dos melhores durante a sua presidência. Pergunta-se: isto acabaria influenciando a decisão do juiz que vier a receber eventual ação? Ele tenderia a negar a liminar? Este tipo de reação nem sequer deve ser cogitado. O juiz que age com revanchismo não é digno de sua toga. E, tal qual em Berlim, ainda temos juízes em Brasília.

Enfim, a questão está sob análise da OAB-DF. Certamente prevalecerá o bom senso.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Vice-presidente para a América Latina da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É presidente do Ibrajus.

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