Defesa do consumidor

Fragilidade não livra paciente de cumprir obrigações jurídicas

Autor

  • Giovanna Trad

    é advogada especialista em Direito Médico e da Saúde diretora Científica do Instituto Brasileiro de Direito Médico e da Saúde (Ibedim) presidente da Comissão de Biodireito (OAB/MS) e membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal da OAB.

4 de outubro de 2014, 7h31

Estamos sob o manto de um estado que nos garante uma plêiade de direitos, consumados na Carta Constitucional e tantos outros institutos legais importantes, como o Código de Defesa do Consumidor. Somos cidadãos cientes e conscientes de nossos direitos. Não nos resignamos mais a um papel omisso frente às ameaças ou lesões às nossas estruturas física e patrimonial. O homem moderno reverbera e reage às situações que contrariam suas expectativas e objetivos.

No complexo da saúde, a radiografia que emerge desse rebuliço social não poderia caminhar de modo contrário. O paciente de hoje (aí estariam inseridos os familiares) se enquadra perfeitamente na definição de consumidor que o CDC preconiza. O médico, na outra ponta, se amolda muito claramente ao conceito de fornecedor. Apesar de não comungarmos com a tese de erigir a medicina a um mercado de consumo, não podemos descurar da previsão do ordenamento normativo, que, de forma pacífica, entende que o vínculo é de cunho consumerista.

Com esse ritmo de entendimento, o paciente, reputado parte hipossuficiente do vínculo, tem um tratamento jurídico diferenciado, imerso de benefícios. O médico, em lado oposto, por ostentar — em tese — a face robusta do vínculo, leva algumas desvantagens, especialmente no âmbito processual.

Mas até aí não encaramos essa situação jurídica como um problema. Longe disso. O status protetivo que o consumidor conquistou é justo e merecido.

O nó górdio da questão se deflagra quando esses direitos não são manejados de forma adequada por seus titulares. Infelizmente, ainda prevalece aquela máxima de que "o consumidor sempre tem razão". E, como cediço, tal premissa não é verdadeira. A avalanche de privilégios muitas vezes leva o paciente a acreditar que seus direitos são ilimitados, razão por que qualquer insucesso em seu tratamento pode ser interpretado como lesão injusta praticada pelo médico que o assistiu. Neste patamar do consumo, as perdas são intoleráveis. Diante disso, ainda que a conduta médica não tenha influenciado no evento não querido, esse paciente não medirá limites para se rebelar contra o profissional, seja em conselhos de classe, entidades médicas, Judiciário, Anvisa, Procon e imprensa.

Assim, ações judiciais e processos ético-profissionais crescem em volume assustador, o que não implica dizer que todos resultam em condenação. Aliás, em muitos litígios o médico é absolvido, mas mesmo que desonerado da culpa ao fim do processo não escapa dos tormentos e prejuízos inerentes a uma contenda, fase em que experimenta sentimentos de humilhação, vergonha, cansaço, impotência e perdas financeiras. Fora isso, não raras vezes o caso é exposto na mídia e em redes de relacionamento, com repercussões à sua imagem.

É neste âmago, então, que os profissionais da medicina sempre estão a questionar com os operários do Direito, pois entendem que uma ação improcedente caracteriza ofensa injusta (ante os prejuízos psicológicos e patrimoniais imanentes a um processo) passível de responsabilidade do paciente e/ou familiar que a ajuizou.

Em casos dessa natureza, a solução é que o joio seja separado do trigo. Em primeiro lugar, devo advertir que todo e qualquer cidadão goza do direito constitucional de ação, em linhas outras, tem a garantia de se socorrer do poder Judiciário, independentemente da plausibilidade do que está alegando. Assim, ainda que o seu direito não seja bom, o paciente não incorre em ilícito quando se vale de maneira diligente da máquina judiciária para postular indenização em face do profissional.

Todavia, todas essas garantias de raízes constitucional em prol do consumidor/paciente (incluindo a prerrogativa de ação) não lhe autoriza praticar atos que exorbitem aquilo que é juridicamente legítimo. O extravasamento de um direito implica em ato ilícito[1]. Vamos a um exemplo: Paciente que apresenta sequelas neurológicas em procedimento de lipoaspiração promove demanda contra o médico que executou o procedimento, descrevendo o liame entre o evento danoso e a conduta ilícita. Nessa situação hipotética, o paciente utilizou seu direito de maneira adequada, com limites e bom senso, agindo, portanto, de maneira lícita. Outra sorte não teria caso enunciasse no processo, por exemplo, que o médico é um criminoso. Aí entraríamos no campo ilícito, ante o mau uso de um pretenso direito que culminou na ofensa a bem jurídico alheio.

Outra irregularidade cunhada da relação conturbada manifesta-se na atitude do paciente em difamar ou caluniar o profissional nos meios eletrônicos. Inicialmente, o Direito não repreende atitude de paciente que demonstre na internet o desfecho de seu tratamento quando se tratar de ato meramente informativo. Mas reputa antijurídica conduta que ofende o médico enquanto pessoa e profissional, v.g, dizer que é desonesto; que o seu trabalho é péssimo ou que visa auferir vantagem indevida. Recentemente uma paciente fora condenada nesses termos, e obrigada a pagar indenização por danos morais ao médico que tratou de sua pele. [2]

Percebe-se, neste norte, que o direito vem acompanhado de deveres. O primeiro deles funda-se na regra geral de não lesionar ninguém. Se o titular de um direito (direito de ação, liberdade de expressão, etc.) extrapolar os muros que o Estado lhe confere, causando danos na esfera jurídica de outrem, incorrerá em ato ilícito. No âmbito médico hospitalar, em ocorrendo excessos desta natureza, é crível que o profissional ou pessoa jurídica reajam à ofensa por meio de uma ação de reparação de danos em face do ofensor.

Portanto, se vivemos em uma sociedade que nos mune de direitos, não podemos esquecer que a outra face nos obriga a cumprir regras, a começar pelo dever de conviver com nossos semelhantes de modo a não prejudicá-los. Esse entendimento deve ser reforçado no estado neoliberal em que vivemos, marcado pela fragilidade do consumidor, produto do capitalismo selvagem. Explica-se. A hipossuficiência do consumidor não o alforria de cumprir com suas obrigações jurídicas, e aqui invocamos a sabedoria e limites no manejo de seus direitos com o outro cume da relação, sob pena de, assim não fazendo, ser alçado à condição de réu e condenado, invertendo, desse modo, as posições outrora estabelecidas.


[1] Art. 187, CPC: Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

[2] http://www.fatonotorio.com.br/noticias/paciente-deve-indenizar-medico-por-difamacoes-em-forum-virtual/18295/

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