Pacto de San José

Direito político não pode ser suspenso em ação civil por improbidade

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3 de outubro de 2014, 6h09

Recente notícia publicada em diversos meios de comunicação deu conta de que o ministro Ricardo Lewandowski, no exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal, negou uma liminar requerida por Jaqueline Roriz. Tratava-se de uma reclamação (RCL 18.183 MC/DF) contra ato do Tribunal de Justiça do Distrito Federal objetivando suspender os efeitos de um acórdão que a havia condenado pela prática de improbidade administrativa, incluindo a suspensão de seus direitos políticos. A tese estampada na ação era, em breve resumo, que o TJ-DF negou a aplicação da cláusula de reserva de plenário ao não aplicar, por decisão de turma e não do pleno do tribunal, a previsão constante na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), o Pacto de San José da Costa Rica, que estabelece de forma expressa que a suspensão de direitos políticos somente poderá se dar através processo penal.

A liminar foi negada sem uma profunda análise, até por não ser momento adequado, do tema de fundo da discussão, qual seja: é válida a previsão de suspensão de direitos políticos constante da lei de improbidade administrativa (LIA) que tem inegável natureza cível (como já decidiu a Suprema Corte – ADI 2.797), frente a previsão constante na CADH de que esta suspensão somente poderá se dar através de processos penal?

Inicialmente devemos destacar a forma pela qual se deu a internalização do CADH em nosso ordenamento jurídico. De forma bem resumida, até por não ser esse o objeto do presente estudo, hoje temos duas correntes que basicamente defendem: i) a natureza constitucional da CADH, ou seja, que os tratados de direitos humanos quando aprovados pelo congresso equivalem às emendas constitucionais (dentre os defensores dessa tese podemos destacar o professor Cançado Trindade e a professora Flávia Piovesan); e ii) outros defendem a natureza supralegal da CADH, ou seja, em um nível entre a constituição e a legislação ordinária e esse é o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal Brasileiro.

Com foco no objeto do presente estudo, no que tange especificamente aos direitos políticos, a CADH (artigo 23.2) estabelece de forma clara e objetiva que os direitos políticos somente podem sofrer restrições por atividade dos Estado-partes.

Dispõe o artigo que trata dos direitos políticos:

 1. Todos los ciudadanos deben gozar de los siguientes derechos y oportunidades:

 a) de participar en la dirección de los asuntos públicos, directamente o por medio de representantes libremente elegidos;

 b) de votar y ser elegidos en elecciones periódicas auténticas, realizadas por sufragio universal e igual y por voto secreto que garantice la libre expresión de la voluntad de los electores, y

 c) de tener acceso, en condiciones generales de igualdad, a las funciones públicas de su país.

 2. La ley puede reglamentar el ejercicio de los derechos y oportunidades a que se refiere el inciso anterior, exclusivamente por razones de edad, nacionalidad, residencia, idioma, instrucción, capacidad civil o mental, o condena, por juez competente, en proceso penal.

Um dado histórico merece destaque: a inclusão desta previsão referente à condenação exclusivamente em razão de processo criminal se deu por iniciativa do delegado brasileiro presente na conferência de 1969 e o Brasil aderiu ao Pacto sem qualquer reserva.  

Outrossim, o alcance dessa regra já foi objeto de discussão e o entendimento firmado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, apreciando um caso concreto (Caso López Mendoza vs. Venezuela), foi o de que que o texto do artigo é claro, objetivo e não comporta qualquer outra interpretação, ou seja, somente a condenação por processo penal pode restringir o exercício de direitos políticos.

“Lo acordado por los Estados Partes en la Convención se expresa, asimismo, en los términos que emplearon en el citado artículo 23.2, a saber, los vocablos ‘exclusivamente’ y ‘condena, por juez competente, en proceso penal’, sin otorgarles, empero, ‘un sentido especial’, sino, por el contrario, el ‘corriente’, todo ello, entonces, con la finalidad de que manifiesten lo que ordinaria o normalmente se entiende por tales.

Y resulta que la palabra ‘exclusividad’, significa, según el Diccionario de la Lengua Española, que excluye o tiene fuerza y virtud para excluir’ o ‘único, solo, excluyendo a cualquier otro’, de donde se colige que las causales o razones para que la Ley pueda reglamentar el ejercicio de los derechos políticos son única y exclusivamente las establecidas en dicho artículo, entre las que se encuentra la de ‘condena, por juez competente, en proceso penal’.

Ciertamente, si los Estados Partes de la Convención hubiesen querido consagrar en el mencionado artículo 23.2 causales no taxativas de reglamentación de los derechos y oportunidades previstas en el artículo 23.1 de la misma o permitir que la condena pudiese ser impuesta por otro juez o instancia jurisdiccional distinta al juez penal o en proceso similar o semejante al penal, lo habrían así dicho expresa o derechamente o habrían empleado otra terminología, como, por ejemplo, las de ‘tales como’ o ‘entre otras’. Pero no lo hicieron así. Por otra parte, no hay ningún indicio en autos que indique que, al establecerse el artículo 23.2, se quiso o se pretendió que incluyera otro tipo de proceso o juez que no fuesen los de orden penal.”[1].

Outra importante análise é o enquadramento dos direitos políticos em nossa Constituição Federal.

Na Carta Constitucional de 1988 o tema direitos políticos ganhou importante destaque e teve um capítulo inteiro dedicado ao tema. Além da afirmação de importantes direitos, o capitulo cuidou também das garantias ao exercício desses direitos.

Parte dessas garantias está contida no artigo 15 que estabeleceu a proibição de cassação dos direitos políticos, autorizando, contudo, sua perda ou suspensão em cinco hipóteses: cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado; incapacidade civil absoluta; condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos; recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do artigo 5º, inciso VIII; e improbidade administrativa, nos termos do artigo 37, parágrafo 4º.

Por sua vez o artigo 37, parágrafo 4º, dispõe que: “Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”. Esta regra claramente encera norma de eficácia limitada, ou segundo a melhor doutrina, eficácia relativa complementável[2]. Ou seja, o comando constitucional somente passou a produzir efeitos concretos após a promulgação da Lei de Improbidade Administrativa em 1992. Referida lei trouxe uma série de questões acerca do tema, de previsões materiais a previsões processuais, e estabeleceu a forma e gradação no tocante a aplicação da pena de suspensão de direitos políticos. De toda sorte, como já reconhecido pelo Supremo, o processo que visa a aplicação das penas previstas na Lei de Improbidade é de natureza civil e não penal.

Estabelecida essas premissas vamos a uma análise do questionamento inicial: é válida a previsão de suspensão de direitos políticos constante da lei de improbidade administrativa (LIA) que tem inegável natureza cível, frente a previsão constante na CADH de que esta suspensão somente poderá se dar através de processos penal?

Diante deste claro conflito normativo, para se chegar a uma resposta, temos que nos socorrer aos métodos para a solução de antinomia entre normas, bem como dos métodos de interpretação da própria CADH e, de uma forma geral, dos tratados internacionais de direitos humanos.

Como sabemos três são os métodos clássicos de resolução de conflitos de norma: hierárquico, cronológico e o de especialidade.

Para o critério hierárquico (lex superior derogat legi inferior), apesar das acirradas discussões já apontadas acerca da posição do CADH em nosso sistema jurídico, vamos, para efeitos práticos, adotar o atual entendimento do STF (RE 466.343), de que a CADH tem no sistema brasileiro caráter supralegal, situando-se entre lei ordinária e a Constituição. Por este critério é fácil perceber que a CADH se sobrepõe à LIA que é lei ordinária.

Quanto ao critério cronológico (lex posterior derogat legi priori), podemos verificar que a LIA entrou em vigor no dia 3 de junho de 1992, já a CADH somente foi ratificada pelo Presidente da República com a expedição do Decreto 678, de 6 de novembro de 1992, publicado no Diário Oficial da União em 9 de novembro do mesmo ano. Assim, também por esse critério a CADH se sobrepõe à LIA.

Também pelo critério da especialidade (lex specialis derogat legi generali), temos que a LIA é uma lei que “dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências”. Já a CADH, como o próprio nome já adianta, é a carta interamericana de Direitos Humanos, que prevê quais são esses direito e liberdades, bem como estabelece seus patamares mínimos. Merece destaque o fato de que a previsão sobre os direitos políticos é tão importante que nem mesmo em tempos de guerra tais garantias mínimas podem ser suspensas (artigo 27.2). Assim, não restam dúvidas de que a CADH é lei especial no que se refere as garantias mínimas de proteção dos direitos políticos em relação à LIA.

Desta forma, pelos três critérios clássicos de resolução de antinomias entre normas a CADH se sobrepõe à LIA.

Não obstante tais conclusões, a própria CADH traz em seu artigo 29 normas vinculante de interpretação que, entre outras, dispõe: “Nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de: a) permitir a qualquer dos Estados-partes, grupo ou indivíduo, suprimir o gozo e o exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista”.

Também por essa análise, não há dúvida de que entre a previsão expressa da CADH que prevê uma única hipótese de restrição ao exercício dos direitos políticos através de condenação judicial (na esfera penal) e a LIA que traz também a previsão de suspensão desses direitos por decisão cível, é a CADH que deve ser aplicada. Essa regra, prevista na própria Convenção Americana (artigo 29) atende ao princípio também já consagrado pelo STF (HC 90.450/MG) consistente na aplicação da norma mais protetiva à pessoa, que mais protege o direito objeto da discussão (no caso: os direitos políticos). Também por essa razão deve-se aplicar a CADH em detrimento a LIA pois, como já dito, a convenção estabelece, no que tange a restrição judicial ao exercício dos direitos políticos, apenas a hipótese penal.

Some-se a isso, como já apontado, o fato de a Corte Interamericana já ter se pronunciado sobre o tema, afirmando de forma peremptória que a restrição somente poderá se dar em razão de condenação penal.  

Dessa forma, também por esses motivos a previsão contida no artigo 12 da lei de improbidade que prevê a suspensão dos direitos políticos através de ação de cunho civil foi revogada pela CADH.

Não obstante estas conclusões, merece destaque o fato de que o Supremo Tribunal federal brasileiro já enfrentou situação muito semelhante e nos forneceu a mesma resposta, quando da apreciação do tema da prisão civil de depositário infiel, objeto da Súmula Vinculante 25.

A situação era muito parecida com a presente: no caso da prisão, havia norma constitucional expressa prevendo a prisão em casos de depositário infiel, no caso da suspensão de direitos políticos, há previsão expressa de que a suspensão poderá se dar em ação civil por improbidade; no caso da prisão, havia legislação ordinária regulando a previsão constitucional (com legislação anterior e posterior à vigência do CADH no Brasil), e no caso da suspensão de direitos políticos, a regulação da previsão constitucional — Lei de Improbidade Administrativa — é anterior à CADH; e, em ambos os casos, a existência de conflito direto entre a previsão constitucional e o disposto na Carta Americana de Direitos Humanos. Ou seja, podemos facilmente afirmar que a conclusão do STF para o caso da prisão de depositário infiel se aplica com maior razão no caso da suspensão de direitos políticos em decorrência de condenação civil.

A conclusão do STF (RE 466.343) foi: “Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante. Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (artigo 5º, inciso LXVII) não foi revogada pelo ato de adesão do Brasil ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (artigo 7º, 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria, incluídos o artigo 1.287 do Código Civil de 1916 e o Decreto-Lei 911, de 1º de outubro de 1969. Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. É o que ocorre, por exemplo, com o artigo 652 do Código Civil (Lei 10.406/2002), que reproduz disposição idêntica ao artigo 1.287 do Código Civil de 1916.”

Ou seja, ainda que não se adote a conclusão de revogação da Lei de Improbidade, transportando este raciocínio da prisão de depositário infiel para a hipótese aqui tratada, podemos, no mínimo, afirmar que a Lei de Improbidade Administrativa — que veio regular a previsão constitucional de suspensão de direitos políticos por ato de improbidade — encontra-se com sua eficácia paralisada.

De toda a forma, em qualquer um dos cenários, a simples existência da previsão constitucional prevendo que: “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”, não será suficiente para a produção de qualquer efeito concreto, pois, como visto, esta regra não é autoaplicável.

É importante ressaltar que tal interpretação busca o fortalecimento dos direitos políticos cujo exercício efetivo, tal qual decidiu a CIDH, “constitui um fim em si mesmo e, por sua vez, um meio fundamental que as sociedades democráticas têm para garantir os demais direitos humanos previstos na Convenção”[3].

Tal entendimento, também, não significa a “vitória da corrupção e da impunidade”, mas escancara a necessidade do Brasil atualizar-se legislativamente, nos termos do Capítulo III, da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção — instrumento do qual o Brasil é signatário e foi promulgado pelo Decreto Presidencial 5.687/2006. E o Brasil já vem realizando essa tarefa ao promulgar, entre outras normas, a Lei 12.846/13, que estabelece a responsabilidade objetiva, administrativa e civil, de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira (conhecida como a lei anticorrupção brasileira).

Vale destacar por fim que os pontos aqui expostos somente nos levam a conclusão de que a suspensão de direitos políticos não poderá se dar em ações civis por improbidade administrativa, não afetando, por outro lado, a aplicação de qualquer uma das outras importantes e graves sanções previstas na mesma lei.


[1] Trecho do voto proferido pelo Juiz Eduardo Vio Grossi no Caso López Mendoza vs. Venezuela, CIDH, 2011.

[2] “Sendo assim, o art. 37, §4º, da Constituição Federal não dispunha de força pra, isoladamente, incidir sobre o suporte fático, transformando em um fato jurídico. Par isso, era preciso a edição de uma lei ordinária que complementasse, que estipulasse a forma e a gradação pela qual os atos atentatórios à probidade administrativa receberiam consequente normativo da suspensão dos diretos políticos, da perda função pública, de indisponibilidade dos bens e do ressarcimento ao erário” (STJ, REsp 1.29.12 /GO).

[3] Cfr. López Mendoza vs. Venezuela, § 108, CIDH, 2011.

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