Senso Incomum

O que é verdade? Ou tudo é relativo? E o que dizer a quem perdeu um olho?

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2 de outubro de 2014, 8h00

Spacca
caricatura lenio luis streck 02 [Spacca]Uma coluna conceitual-acústico-epistêmica
Esta coluna não tratará de cases jurídicos. Quer dizer: a coluna é uma homenagem ao fotografo Sérgio Silva, que perdeu um olho em serviço em São Paulo. E não falará de autoajuda para concursos públicos. Tampouco a coluna tratará de bizarrices como “advogado fornicador suspenso por cobrar serviços sexuais de cliente”. A coluna é conceitual. Como um show com um banquinho e um violão. Para poucas pessoas; a coluna é acústico-epistêmica. E também é anti-facebook. Portanto, nem repliquem. É uma coluna para não mais de 231 leitores. O que a coluna quer, mesmo, é mostrar porque a praga do relativismo faz mal. E bradar que, em terrae brasilis, até um olho perdido fica “relativo”.

Então, ao tema
Depois que transformaram enterros em eventos festivos, onde frequentadores fazem selfies (odeio essa palavra) ao lado do morto, nada mais segura a pós-modernidade. Até o dia do enterro de Eduardo Campos achei que estávamos na alta modernidade (portanto, no finalzinho). Não se sabe muito bem em que ponto da história estamos. Bauman fala em modernidade líquida. Eu penso que ela está no final em alguns lugares e é tardia como em países como o nosso. Um indicador de que estamos saltando perigosamente de uma modernidade inacabada para uma pós-modernidade — onde tudo se transforma em narrativas ou colagens sobre o real — é a mania que tomou conta do direito aqui em Pindorama. Do que estou falando? Fácil: trata-se do niilismo, do relativismo e da tese esgrimida em livros, textos e palestras anunciando que “não existem verdades”. Além de tudo, isso é muito chato.

O sucesso de Michel Teló parece-me também um indício desse salto em direção à anemia significativa (a expressão é de Warat). Lepo-Lepo também. Não há mais fundamentos. Tudo vira narrativa. (Des)colagens do real. Pode-se fazer qualquer coisa. E sustentar qualquer tese. Pode-se dizer qualquer-coisa-sobre-qualquer-coisa. E também já nem precisamos citar as fontes. Só a água mineral ainda cita a fonte (se me entendem as indiretas e o sarcasmo). Tudo é de todos… Não há verdades. Portanto, podemos falar-sem-fundamentos. Sem amarras de sentido. Parece, assim, que somos críticos…

Descolamos as palavras das coisas. Não que elas tenham que ser coladas. Os sofistas foram os primeiros positivistas. Descolaram palavras e coisas. Foram os primeiros “discricionários”, por assim dizer. Foi o triunfo da retórica. Mas também causaram danos.  Se o essencialismo “pegou pesado” (metafísica clássica), o nominalismo já começou a apontar para o que hoje parece triunfar: só existem coisas particulares. E grau zero de sentido. Da modernidade para cá a luta está sendo enorme para controlar o sujeito pensante-consciente-de-si. Nietszche introduziu o último princípio epocal da modernidade: a Wille zur Macht (a vontade do poder). E os juristas gostaram disso. Kelsen, por exemplo, foi dizer que o ato de aplicação da lei é um “ato de vontade” (ao que eu acrescento, ironicamente: “de poder”!). Hoje corremos atrás do prejuízo.

O mal-estar da civilização jurídica é a flambagem dos sentidos que os juristas fazem. Pensam que podem atribuir sentidos livremente. Descobriram o Santo Graal da “dação de sentidos”: basta nominar. Feito um novo Gênesis. Algo como “no princípio o que vale é o que eu digo sobre as coisas”. Não há tradição. Não há história. Nada é verdadeiro. Os juristas neoprofe(s)tas[1] que apresentam a “boa nova” de que não existe(m) verdade(s) correm o risco de serem comidos pela primeira onça que encontrarem. Afinal, para um relativista, a onça pode existir…ou não. Depende. Porque a onça é relativa. Com base em Nietszche, ficam repetindo algo similar à sua máxima: “fatos não há; só há interpretações”. Logo, as onças não existem; só há a narrativa do e sobre as onças. Para os relativistas jurídicos, o que aconteceu com o fotógrafo Sérgio Silva (ver aqui) não foi um fato; foi uma ilusão. Tudo é relativo. O tiro no olho não existiu. O que existiu foi apenas uma interpretação errada sobre o tiro que lhe furou o olho. Algo como “azar o seu por ter dado mole ao assaltante”. Por isso tudo, inverto a máxima de Nietzsche e afirmo: Contra essa gente que diz “fatos não há, só há interpretações”, eu digo: só-existem-interpretações-porque-existem-fatos!

Ariano Suassuna brincava com o subjetivismo e o relativismo. Dizia que, quando as pessoas falam sobre se algo é ou algo não é, lembrava de Kant e seu solipsismo, que, para ele, “era um hipócrita”. Com seu fino humor e grande dose de sarcasmo, Suassuna brincava com as palavras e a filosofia. Mais ou menos assim (reproduzo de cabeça) “— A coisa em si do copo é incognoscível… Pois para um copo pode até funcionar”, dizia. “Quero ver se for uma onça. Kant por certo não perguntaria se a onça existia em si ou se o noumenon era cognoscível. Também não diria que todo fenômeno deve ser experimentado em oposição ao sujeito. Dava no pé”. Guardado o bom humor e um certo exagero, permito-me acrescentar que, sem saber, Kant tinha uma antecipação de sentido; tinha um a priori compartilhado acerca do sentido da “onça”. Ele nem se perguntaria sobre o “sentido de onça”. O que é a onça já estava com ele…

Interessante que os pós-modernos do direito — esses que apostam em grau zero de sentido, construindo princípios no varejo para vendê-los no atacado, como se direito e filosofia moral fossem a mesma coisa — não repetem no seu cotidiano isso que pensam que podem fazer (como de fato, fazem) na doutrina e na jurisprudência: trocar o nome das coisas. Ou cindir fato e direito.

Quando um juiz diz que “onde está escrito 180 dias leia-se 210 dias” (ao conceder prorrogação ilegal do auxilio-maternidade), ele está fazendo a mesma coisa que, se andasse pela rua, atribuísse sentidos do modo que lhe conviesse, por exemplo, chamando uma garrafa de ônibus… Como “não existem” limites semânticos e a tradição e o tempo são tratados como inimigos, o lema passa a ser: vamos atribuir sentidos livremente por aí. Só que, em termos de paradigmas filosóficos, o grande problema passa a ser: temos de combinar com os russos[2], porque, ao tomar uma garrafa d’agua, o relativista pode ser atropelado pelo ônibus. Mutatis, mutandis, quando o Tribunal de Justiça de São Paulo disse que o fotógrafo Sérgio estava na hora errada no lugar errado e, portanto, perdeu o olho por sua culpa, é como dizer: não há fatos; só há interpretações. A retórica venceu! Os que dizem que não há verdades venceram!

Sintomas dessa “pós-modernidade”
A produção desenfreada no Direito faz com que percamos o sentido da diferença. Acordão encobre acórdão. Livro encobre livro. Artigo encobre artigo. Notícia encobre notícia. Você escreve hoje uma matéria e posta em algum site (por exemplo, aqui na ConJur). Ela fica na capa do site por algumas horas. Depois desaparece no buraco negro da internet. Some. Esfumaça. Fico imaginando uma espécie de purgatório de textos do dia anterior ao novo texto. Almas sofridas de textos lidos no dia anterior e que hoje já não valem, porque um montão de letrinhas encobriu as letrinhas do dia anterior. Pobres letras. Por isso, corra. Escreva seu texto e avise a todos para que leiam logo. Porque em instantes ele sumirá. Avise pelo facebook. Só hoje e amanhã seu texto ficará por aí.

O mundo foi transformado em imagem. Imagem é tudo, sede não é nada, dizia a propaganda do refrigerante. Ao por seu texto no facebook, logo ele será obnubilado pelo primeiro idiota que publica no facebook um selfie feito no aeroporto com um cantor de pagode. Ou com o cara do Lepo-Lepo. Nem no seu próprio facebook você manda. O facebook somente espalha (ou espraia) o seu texto se você “impulsionar a publicação” (sic). E isso custa dinheiro, é claro! Quer dizer: você é um idiota. Faz uma página, posta uma matéria. Mas seus próprios “amigos” feicibuquianos não recebem o seu material. Como seus “amigos” também não entram na própria página que pediram para se “filiar”, eles nem ficarão sabendo. Tempos pós-modernos. Você tem uma página com, sei lá, digamos 40 mil “amigos”. Mas eles são “amigos” de dezenas de outras páginas. E, pior: nem eles visitam essas dezenas de páginas das quais eles fazem parte. O que acontece é que seus “Amigos-do-face” praticam poligamia epistêmica. E você é um corno-poli-feici-epistêmico. Mas todos querem ter um milhão de amigos e bem mais forte poder cantar…

Estes novos tempos em que os idiotas perdem a timidez nas redes sociais e infernizam a vida dos outros produzem, paradoxalmente, revoluções. Mas revoluções para trás. O filósofo Gadamer dizia que "ser que pode ser compreendido é linguagem”. Quer dizer: só compreendo o mundo na e pela linguagem. Mas sempre fica algo de fora. Em Lacan temos o simbólico, pelo qual o real vira realidade. O que não simbolizo fica no plano do real. Dele e sobre ele não posso falar. Não está no meu consciente. Pois nestes tempos o que fica de fora é… quase tudo. Ou seja, com o excesso de informações, não damos conta de simbolizar “isso tudo”. Logo, cada vez sobra mais mundo.

A velocidade desse novo tempo faz com que apenas trisquemos algumas coisas. Quando desvelamos algo, corremos o risco de perdê-las nas brumas da cotidianidade. Por isso, a minha pregação é a de que necessitamos nos apropriar dos sentidos. Interpretar a realidade é, assim, um processo de apropriação. Como diz Heidegger, Die jeweilige fattische Entdecktheit ist gleichsam immer ein Raub (Todo ser-descoberto factual é sempre um como que roubo). Precisamos manter essa res furtivae conosco. Sentidos apropriados são produtos raros. Commodities valiosíssimas. Não desperdice os sentidos. Faça poupança. Aplique em Fundos FSA (Fundo-Sentidos-Apropriados). Quando alguém pede a palavra, cuidado: ela pode lhe ser devolvida toda lascada. Daí a pergunta do poeta Eugênio de Andrade:

“Que fizeste das palavras? Que contas darás tu dessas vogais de um azul tão apaziguado? E das consoantes, que lhes dirás, ardendo entre o fulgor das laranjas e o sol dos cavalos? Que lhes dirás, quando te perguntarem pelas minúsculas sementes que te confiaram?”

Você mal-tratou a palavra? Trancafiou a palavra no interior de um twitter? Fez com ela um Leito de Procusto twitado? O pior é que ainda não inventamos um Habeas Corpus para libertar as palavras do jugo dos néscios. Eis porque venho dizendo de há muito que palavra é pá-que-lavra. Com essa “ferramenta” abro sulcos no imaginário, plantando as sementes da significação. Kein Ding sei, wo das Wort gebricht (que nada seja onde fracassa a palavra), clamava Stefan George.

Do selfie ao senso comum teórico dos juristas
Estes tempos… Nestes tempos… Essa parcela da população que fica fazendo selfies (e eles são a metáfora do homo alienadus da pós-modernidade) fica imersa no cotidiano, no senso comum. Pensemos, entretanto, no equivalente jurídico disso, isto é, no senso comum teórico dos juristas, no interior do qual o jurista medíocre tem o seu belvedere de sentido, para dizer obviedades como agressão atual é a que está acontecendo; coisa móvel alheia é a que não pertence à pessoa… Ou “ensina” direito penal com música de pagode ou funk; ou dizer coisas como “na teoria é uma coisa; mas na prática é outra”… É gente curiosa; são apenas curiosos, porque leem resumos e orelhas de livros; caem no falatório (Gerede), porque se movem no entremeio de ruídos, ronronares de gente mal instruída e, finalmente, ficam reféns da impessoalidade (das Man, como diz Heidegger), com conversas do tipo “a gente”. Sim, “a gente pensa assim…”. “A gente acha” que “sem ponderação não tem decisão”: eis um típico produto da de-caída (Verfallen). Do resvalo em direção à cotidianidade (Alltäghlichkeit). Na ambiguidade (Zweideutigkeit) está o que a curiosidade busca; e a ambiguidade dá ao falatório a ilusão de que nele tudo se decidiria…

Está no Google? Não está? Então não existe. Procure no Google se a tal ponderação é regra ou princípio (cartas para a coluna). Veja o que o Google diz sobre “cataratas do Iguaçu (o Google apresentará coisas como opero-catarata-em-clínica-de-olhos-em-Foz- do-Iguaçu). Bingo!

Mas como achar sua matéria ou artigo no Google, se a notícia de ontem se perdeu no purgatório dos “textos velhos”? Tem foto? Não tem? Então não vale. Você foi no enterro e não fez selfies? Céus! Então você não sabe o sentido pós-moderno de um esquife ou de um velório. Gosta de Lepo-Lepo ou do Teló? Viva! Afinal, eles são “fofos”. Como fofa é a nossa relação com os conceitos. Você aplica a “letra da Constituição”? Então você é um positivista. Bem assim… O que é positivismo? Aplicar a letra da lei é uma atitude positivista? Oiço (é oiço mesmo) dizerem por ai: “— O professor Lenio disse na palestra tal ou tal (Unibrasil, Emerj, Amatra e em tantos outros lugares) que o judiciário deve obedecer os limites semânticos do artigo X da Lei Y, porque se a lei não é inconstitucional (e elenca mais cinco hipóteses), então é um dever do juiz aplicar…  Também disse que ‘decisão não é escolha. Ele mesmo um positivista”. Ouço esse ronronar, esse ruído, esses resvalos de significação se espalhando por aí. Falatório. Ambiguidade. Curiosidade. Eis a decaída. Minha sugestão? Criar um novo princípio do tipo “princípio do não entendi”. Ou “não entendi um ovo do que ele falou mas preciso fazer um selfie de minha ignorância”. Ou um ainda mais novo: Princípio do selfie!

Essa (pseudo)pós-modernidade está liquidando com o que resta da cultura (jurídica ou não). Instantaneidade. Eficiência. Efetividades quantitativas. Gestão. ISO 14.001. Procedimentos. Algo como o Hotel Ibis. Não tem nem toalhas de rosto. Quando você enxugar certas partes do corpo, cuidado: há ainda que enxugar o outro lado com a mesma toalha; tem frigobar, mas não tem nem água. Mas é eficiente. E barato. “Otimizado”. Eis as palavras mágicas. E não esqueçamos de encolher as petições. Nada de erudições. Nada de filosofia. Vivamos a facilitação. Direito Facilitado. Resumido.  Plastificado. Resumos de resumos. Direito mastigado. Vendamos ilusões. A malta compra.  

Vi no shopping uma mãe com seu filho. Passou uma amiga e disse: “Que lindo”! E ela disse: “Mas você precisa ver o álbum de fotos dele”! Bingo! And I rest my selfie!

Post Scriptum 1: como um remanescente da modernidade e odiador da pós-modernidade, arrisco a dizer: indigno-me; logo sou![3] E complemento: só-sou-onde-me-indigno!

Post Scriptum2: quero compartilhar com todos os milhares de leitores a felicidade de ter dois livros na lista dos dez finalistas para o Prêmio Jabuti deste ano (ler aqui): são eles o Compreender Direito – Como o Senso Comum pode nos Enganar (Revista dos Tribunais) e Comentários a Constituição do Brasil, em parceria com J.J. Gomes Canotilho, Gilmar Mendes e Ingo Sarlet (Saraiva). Agradeço sobremodo a parceria de Léo leoncy — que foi o executivo do projeto — e dos mais cem juristas que colaboraram na obra. Sem eles — e devo grifar isso à saciedade — o projeto de um livro de quase 2,5 mil páginas não seria possível!! Obrigado a todos!!! Como um ouriço que sou, adoro jabutis. Para mim, estar entre os dez é como ser indicado ao Oscar. O que mais eu quero?

Post Scriptum3: e não esqueçam que a coluna é conceitual e autoral.


[1] Estagiário levanta a placa para informar: ele está se referindo aos juristas que são adeptos do woodstock do direito. São de várias tribos: tem a dos pamprincipilogistas, dos niilistas, dos “é proibido proibir”, dos “não há verdades” e dos “isso é assim mesmo porque sempre foi assim”.

[2] “combinar com os russos” é uma alusão ao craque Garrincha, que era anti-relativista. Explico: Feola deu toda a instrução tática do que o time deveria fazer até Pelé marcar o gol na URSSS. Garrincha levanta a mão e pergunta: “o senhor combinou isso tudo com os russos?”.

[3] Para fazer jus ao “troféu água mineral”, cito a fonte: blog Falcão de Jade.

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