Equívoco oligofrênico

Dívida com a mentecapta que destinou o epíteto macaco a um atleta

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2 de outubro de 2014, 8h31

Efetivamente, trata-se de uma repetida oportunidade da conveniência expositiva da configuração social brasileira. A comum do povo que destinou ao atleta visitante o epíteto “macaco” está sendo exposta, desarrazoadamente, à execração pública.

Em primeiro lugar, a nacional torcedora, ao gritar com a força histérica da estupidez o que a semântica vernacular considera menoscabo, fez como faz uma considerável parcela da população brasileira, no atuar imbatível da autodestruição original. Figuras de realce no Brasil tentaram apagar os laivos de africanidade (é melhor do que africanismo) na constituição demográfica, simplesmente, eliminando-lhe vestígios, às vezes a fogo, ou providenciando o embranquecimento da população, com a entrada de imigrantes caucasianos.

É isso mesmo. Embora com outros vocábulos mais eufêmicos, o pensamento de um contingente incomensurável da rede demográfica tupiniquim repete diariamente a fórmula. Ora é o crioulo, ora o preto, ora, dependendo do abrandamento do vocativo, nego, neguinho, neguim, negão.

O que, talvez, deva ser dito mais uma vez, é que a comum do povo é uma comum do povo. Ou seja, uma qualquer, representante dos mais comuns do povo.

Que a fanática oligofrênica se ponha em sossego. Tudo passará, dentro em pouco. O horário eleitoral está aí, bem como a inflação e o desesperador decréscimo de nossas expectativas quanto ao andar do PIB.

Em seguida, que se lembre a agente da sintomatologia de oncogêneses incuráveis de que os da sua iguala já desenvolveram sistemática adaptadora do mal-estar que se sente, quando, inadvertidos, deixam escapar uma modulação de tom, para frases como “nega-do-cabelo-duro” e “samba do crioulo doido”, quando em presença de afrodescendentes. O pensamento dito, como a flecha lançada e a oportunidade perdida, não engatam marcha de retorno.

A nossa urticante pruriginosa pode descansar, o sol raramente surpreende raridades. Daí, a irreversibilidade dos procedimentos da espécie, comuns no cenário. É uma igual a quase toda gente. É esse particular que não se deve perder de vista: a indignada metástase popular de aguerrido palavrório é tão só uma eficiente porta-voz do ódio remanescente entre a casa grande e a senzala. Nada de maior. O mesmo de sempre.

Por essas razões, não se podem antecipar punições à digna embaixadora das nações preconceituosas, às vezes racistas, ao estilo nazifascista; às vezes, como parece ser o caso, meros desprovidos da oportunidade adequada para o desenvolvimento neuronal. Nisso, senhores, estamos muito bem servidos. É o que não nos falta. Na melhor das hipóteses, o contingente avassaladoramente significativo é de débeis mentais. Imbecis e idiotas estão em minoria.

Quem sabe “símios” como Lupicínio Rodrigues e Gilberto Gil; “macacos”, da espécie de Luther, Mandela e Obama, não devessem ser reexaminados. Afinal, “preto, quando não suja na entrada, suja na saída”, haveria de nos lembrar a neoplasia tumorosa disfarçada de figura humana a ocultar ofídica agressividade. Que mãe será ela? Que papel desempenhará numa relação afetiva? O que dirá aos cidadãos, macacos (se não os houver, diga, por favor, será quadro para as fantasias televisivas domingueiras, em busca de situações que lhes justifiquem o título) ou não de sua vizinhança, a um vendeiro amulatado (que expressão infeliz! Parecida com “preto de alma branca”, do acanalhamento intelectual) que a atenda, a um colega negro de bancos escolares (que escola terá frequentado mais essa patologia ebólica endêmica?)?

Também não há muita razão para preocupações causticantes. Nossa personagem, ferida purulenta imposta ao e pelo tecido social, não só do Brasil, mas dos Continentes Americanos, não está só, no imenso oceano das mediocridades, em que o pior não está nessa chaga de arquibancada, repetidora da desgraça humana que atende pelo apelido de hipocrisia. Piores são os “semissímios” da sociedade nacional que, disfarçados por alguma claridade de pele e abrandamento da rigidez capilar, na tentativa de fugir da adversidade, vergastam com o látego do recalque a sua própria história, agindo exatamente como comanda o figurino da vociferante mentecapta. E, não raro, com mais vigor.

De toda sorte, não utilizemos de radicalismos neste episódio. De certa forma, é-nos favorável. Entusiasma o debate. Revela instâncias ocultas do trato acadêmico. Estimula o estudo mais franco de nossa sociologia. Tudo a crédito do comportamento desprezível da hincha (não por acaso odio o enemistad, em espanhol), que se serve do partidarismo futebolístico para vomitar suas frustrações e dificuldades psicossociais.

Desculpe-nos, torcedora inconformada por ter de dividir seu espaço vital com tão inferiores pseudo-humanos. Obrigado, cidadã, (cujo direito de se manifestar está garantido, desde que constitucionalmente assuma as consequências de sua prerrogativa, que a Carta Magna preserva) pela oportunidade de nos fazer ver a realidade tão de perto. O rei está nu.

Já termináramos este excerto, quando os jornais da manhã de ontem reproduziam notícias confirmadoras das previsões otimistas esboçadas por nós, quanto a vizinhos e amigos. É muito reconfortante — e surpreendente lição para o exemplar protozoário das exaltadas reações de mediocridade — saber que afrodescendentes das relações da cidadã (é bem assim, cidadã e, como tal, digna de tolerância e compreensão) amébica já partiram em defesa da amiga censurada, explicando, com a fidalguia dos seres superiores, o equívoco oligofrênico da conhecida ou até mesmo amiga. Que lição magnífica!

Os quase cem milhões de símios conterrâneos da agressora, entre negros; mestiços (evito o termo mulato, acima criticado, pelas suas origens semânticas, que nos tiram do seio dos primatas e nos lançam na ordem dos híbridos muares); índios de certas tribos de pele muito escura; cafuzos, todos, incluídos muitos, muitos, muitos brancos, conscientes ou não, ofendidos pela forma — não exatamente pelo termo — utilizada pela criatura representante do nacional mediano irrecuperável, devem estar pensando em como livrá-la das consequências do crime de racismo, mesmo integrantes de um tecido social carcomido, hipócrita, estúpido, que não nos distingue, e, quando o faz, pratica as atrocidades hoje identificadas na sociologia norte-americana como microagressões (eufemismo que pertence à espécie do “politicamente correto” embora o conceito tenha saltado “… das sombras dos escritos acadêmicos para a claridade da luz das conversas em geral…” como esclarece John MacWhorter, na edição de 14 de abril deste ano, da Revista Time, pag. 15, para a definição: são frequentemente desrespeitos inintencionais, racistas ou sexistas, que fazem com que a pessoa se sinta subestimada com base na cor ou no gênero).

Para abrandamento do tom verrineiro do desabafo, e já ingressando nos caminhos do perdão, de acordo com a índole nacional, não me parece tão ofensiva a comparação com o simpático e buliçoso mico-leão-dourado.

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