Natureza administrativa

Prescrição quinquenal é aplicável à prestação de contas dos partidos

Autor

  • Fabrício Juliano Mendes Medeiros

    é advogado mestre em Direito e Políticas Públicas professor em cursos de Especialização no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e no UniCEUB e do curso de graduação em Direito no IDP.

1 de outubro de 2014, 6h28

No ano de 2009, o Congresso Nacional aprovou a Lei 12.034[1], modificando o tratamento normativo de múltiplos temas, dentre os quais a natureza jurídica dos processos de prestação de contas dos partidos políticos — que, de administrativa, passou a ser jurisdicional[2] —, além de haver instituído um prazo prescricional de 5 anos, a contar a apresentação das contas, para aplicação de sanções na hipótese de sua desaprovação.

Os dispositivos legais que veicularam as alterações acima mencionadas foram assim redigidos:

“Art. 37.

§ 3º A sanção de suspensão do repasse de novas quotas do Fundo Partidário, por desaprovação total ou parcial da prestação de contas de partido, deverá ser aplicada de forma proporcional e razoável, pelo período de 1 (um) mês a 12 (doze) meses, ou por meio do desconto, do valor a ser repassado, da importância apontada como irregular, não podendo ser aplicada a sanção de suspensão, caso a prestação de contas não seja julgada, pelo juízo ou tribunal competente, após 5 (cinco) anos de sua apresentação.    
(…)
§ 6º  O exame da prestação de contas dos órgãos partidários tem caráter jurisdicional.”                  

Sem demora, o Tribunal Superior Eleitoral passou a receber provocações de partidos políticos sobre a aplicação do novel regime jurídico, tendo o TSE decidido, no início de 2011, que “o prazo de 5 anos para a imposição da pena de suspensão das cotas do fundo partidário, tal como previsto no § 3º do artigo 37 da Lei 9.096/95, inserido pela Lei 12.034/2009, deve ser aplicado aos processos de prestação de contas pendentes de julgamento, mas contado a partir da vigência da lei nova”[3].

Recentemente, porém, a questão relativa à incidência da prescrição quinquenal nas prestações de contas voltou à baila por ocasião do julgamento da PC 37, relatado pelo ministro Henrique Neves. No caso, as contas do Partido Verde (PV), relativas ao exercício financeiro de 2008, foram apresentadas ao Tribunal Superior Eleitoral no dia 30 de abril de 2009 e somente começaram a ser julgadas em setembro de 2014, há mais de cinco anos de sua apresentação, portanto.

Na prática, o reconhecimento da prescrição quinquenal a que alude o parágrafo 3º do artigo 37 da Lei 9.096/95 acarretaria a própria prejudicialidade do exame das contas, uma vez que nenhuma sanção poderia ser aplicada à agremiação em caso de desaprovação das respectivas contas.

Imperioso aqui ressaltar que os processos de prestação de contas de partidos políticos, especialmente os de seus órgãos nacionais, demandam inúmeras manifestações por parte da agremiação interessada e do órgão técnico-contábil da Justiça Eleitoral, o qual, não raro, põe em xeque a regularidade dos gastos feitos pelo partido político mediante a eleição de critérios outros que não aqueles inscritos na Resolução TSE 21.841/04, que disciplina a prestação de contas dos partidos políticos e a tomada de contas especial.

Assim, a desejada otimização de feitos dessa natureza — o que está diretamente ligado à redução das notórias idas e vindas processuais — poderia ser facilmente alcançada mediante a atualização, pelo Tribunal Superior Eleitoral, da Resolução TSE 21.841/04, de modo a compatibilizá-la com natureza jurisdicional dos processos de prestação de contas, estabelecendo, ainda, critérios objetivos a serem considerados quando da análise das contas partidárias[4], bem como relacionando os documentos que poderiam ser admitidos para fins de comprovação da licitude da arrecadação e do gasto de recursos financeiros pelas greis.

Como dito linhas atrás, não obstante o entendimento a que chegou o Tribunal Superior Eleitoral a respeito da aplicabilidade da prescrição quinquenal aplicável às prestações de contas, o tema foi relançado à apreciação da Corte na questão de ordem suscitada na PC 37. E o certo é que a renovação da discussão se baseou no fato de que, nos precedentes exarados no ano de 2011, o tribunal não havia discutido — até porque não fora à época agitada — a aplicação do princípio da prevalência da norma mais favorável ao administrado.

Em boa verdade, não se discute que, via de regra, em matéria administrativa, aplica-se a lei vigente à época da ocorrência de seu fato gerador por força do postulado “tempus regit actum”, como também é fora de dúvida de que a retroação da lei não poderá atingir, de maneira prejudicial, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Entretanto, isso não significa dizer que uma lei não possa ser aplicada a fatos anteriores à sua vigência, se for para beneficiar o administrado, como é, justamente, o caso da Lei 12.034/09.

O próprio Superior Tribunal de Justiça, aliás, já reconheceu essa possibilidade, conforme se depreende do precedente firmado no julgamento do RMS 19.942, relatado pelo ministro Paulo Medina[5], na parte verbis:

“RECURSO ORDINÁRIO – MANDADO DE SEGURANÇA – MILITARES DO ESTADO DE PERNAMBUCO – APLICAÇÃO DA PENALIDADE DE LICENCIAMENTO A BEM DO SERVIÇO NA VIGÊNCIA DO DECRETO Nº 20.910/32 – POSSIBILIDADE DE REVISÃO NA VIA ADMINISTRATIVA – ART. 40, §§ 1º E 2º, I, DA LEI ESTADUAL Nº 11.817/2000 – APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PREVALÊNCIA DA NORMA MAIS FAVORÁVEL AO CIDADÃO – POSSIBILIDADE DE RETROATIVIDADE DA NORMA ADMINISTRATIVA PARA BENEFICIAR O SERVIDOR – RECURSO PROVIDO.

1. A despeito de as sanções disciplinares terem sido aplicadas na vigência do Decreto nº 20.910/32, cujo art. 1º previa o prazo prescricional de cinco anos para revisão, com fundamento no princípio da prevalência da norma mais favorável ao cidadão, os Recorrentes possuem direito líquido e certo de terem o mérito do seu pedido de revisão apreciado, na via administrativa, com base no art. 40, § 1º e 2º, I, da Lei Estadual nº 11.817/2000.”
(…)”

Importar realçar, ainda, que o caráter jurisdicional dos processos de prestação de contas — também introduzido pela Lei 12.034/09 com a pragmática finalidade de possibilitar o manejo de recursos para as instâncias superiores — não altera a natureza eminentemente administrativa das sanções aplicadas às agremiações político-partidária que experimentarem a desaprovação de suas contas, sabido que a Justiça Eleitoral, no tocante ao gerenciamento, à distribuição, etc. dos recursos do Fundo Partidário, atua como órgão genuinamente administrativo.

Com efeito, não parece haver dúvidas de que a rejeição das contas partidárias representa uma penalidade de natureza administrativo-penal, mormente se considerarmos as consequências que advêm dessa rejeição. Natural, assim, que a lei que haja instituído tais penalidades se submeta às regras de hermenêutica aplicáveis aos diplomas legislativos penais, fiscais e administrativos, sobretudo em relação à regra da retroatividade da lei mais benfazeja.

E foi exatamente nessa linha que se pronunciou o Tribunal Superior Eleitoral ao dar solução à questão de ordem suscitada no seio da pré-falada PC 37, conforme se extrai da notícia veiculada no site institucional da corte[6]:

"Por maioria de votos, o Plenário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu, na sessão desta terça-feira (23), aplicar o prazo estabelecido na Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/1995) para entender que os processos de prestação de contas partidárias, que antes tramitavam como processos administrativos e que a Corte determinou o processamento e o julgamento como jurisdicionais, fiquem prejudicados de análise diante do transcurso de tempo.
(…)
De acordo com o presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, que propôs a questão de ordem, em relação a todos os processos de prestação de contas que tiveram origem como processos administrativos e que desde a sua apresentação já se somou mais de cinco anos, os relatores ficam autorizados a julgar prejudicados, em decisão individual, sem necessidade de levar os autos ao Plenário, sempre dando intimação ao Ministério Público Eleitoral.

O ministro fez a proposta durante o julgamento da prestação de contas do Partido Verde (PV), referente ao período financeiro de 2008. Houve um pedido de vista do ministro Luiz Fux que, na sessão de hoje, concordou com a questão de ordem apresentada pelo presidente do TSE.

O ministro Fux disse entender que a Minirreforma Eleitoral (Lei 12.034/2009) jurisdicionalizou o processo de prestação de contas e o que ‘pretendeu foi trazer segurança jurídica em não deixar que a prestação de contas fosse ad infinitum [até o infinito] objeto de crivo’, concluiu.”

Por outro lado, é preciso levar em consideração que a edição da Lei 12.034/09, estabelecendo o aludido prazo quinquenal para apreciação das contas, representa a abdicação, por parte do próprio Estado, da prerrogativa de exigir o cumprimento de determinada penalidade a partir de procedimentos e parâmetros que ele mesmo excluiu do ordenamento jurídico, não cabendo, pois, à Justiça Eleitoral (que, aliás, também é Estado) deixar de aplicar a lei mais benéfica aos casos anteriores à sua vigência, desde que pendentes de solução final.


[1] Que alterou as Leis 9.096, de 19 de setembro de 1995; 9.504, de 30 de setembro de 1997, que estabelece normas para as eleições, e 4.737, de 15 de julho de 1965.

[2] Alteração que se inspirou basicamente na necessidade de viabilizar o manejo de recurso para a instância superior, permitindo, ao menos em tese, a análise da decisão recorrida por outro órgão integrante da estrutura Justiça Eleitoral.

[3] ED-PET 1628; ED-PET 1459 e PET 1606.

[4] De cujo processo de elaboração poderão participar os partidos políticos, o Ministério Público Eleitoral e o Tribunal Superior Eleitoral, por seu órgão técnico-contábil.

[5] No mesmo sentido: AgRg no RMS 20.430, Rel. Min. Vasco Della Giustina, DJe de 10/05/2012.

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