Observatório Constitucional

Uma única e simples inovação
para o Supremo Tribunal Federal

Autor

  • José Levi Mello do Amaral Júnior

    é professor associado de Direito Constitucional da USP professor do mestrado e do doutorado em Direito do Ceub livre-docente doutor e mestre em Direito do Estado procurador da Fazenda Nacional cedido ao TSE e secretário-geral da Presidência do TSE.

29 de novembro de 2014, 7h01

Spacca
Este artigo sugere que se discuta uma única — e simples — inovação para o Supremo Tribunal Federal: expandir a repercussão geral para todo e qualquer processo da competência originária ou recursal da Corte, de modo a permitir que o Tribunal escolha que matérias merecerão — e que matérias não merecerão — a sua atenção. Isso porque é necessário que o Supremo tenha mecanismo que lhe permita disciplinar e racionalizar o respectivo fluxo processual e decisório, concentrando-se na solução dos problemas mais importantes que preocupam a sociedade brasileira.

As últimas décadas têm sido de sucessivas “reformas do Poder Judiciário”. Têm elas por objeto, em boa medida, o enfrentamento do que se tem chamado “crise do Supremo Tribunal Federal”, decorrente do excesso de feitos que chegam à Corte (na casa de dezenas de milhares por ano, como se verá a seguir).

A Emenda Constitucional n. 45, de 2004, não foi a primeira. Foi, apenas, a mais recente reforma constitucional que tratou do Judiciário. Antes dela houve muitas outras.

No Império, a mais alta corte judiciária era o Supremo Tribunal de Justiça.

Com a proclamação da República (e com a adoção da forma federativa de Estado), ainda antes da primeira Constituição republicana, de 1891, o Supremo Tribunal de Justiça foi transformado em Supremo Tribunal Federal, bem como foi introduzido o controle de constitucionalidade de modelo americano por força do Decreto n. 848, de 1890.

O mesmo Decreto criou a Justiça Federal. Foi ela suprimida no Estado Novo, em 1937, recriada pela Constituição de 1946, mas apenas em segunda instância (Tribunal Federal de Recursos). Por fim, o Ato Institucional n. 2, de 1965, recriou a primeira instância.

Por sua vez, a Justiça Eleitoral foi criada em 1932. Também foi suprimida pelo Estado Novo, depois recriada por meio de decreto-lei ainda antes da Constituição de 1946. Permanece desde então.

Várias outras reformas do Judiciário poderiam ser citadas.

Porém, aqui, basta ainda lembrar – pelas inovações trazidas ao modelo de controle de constitucionalidade – a feita pela Emenda Constitucional n. 7, de 1977. No tema, foi ela responsável pela introdução: (i) da arguição de relevância, antecedente da atual repercussão geral; (ii) da representação interpretativa, antecedente da atual ação declaratória de constitucionalidade, inclusive porque, em sua regulamentação regimental, surtia “força vinculante”; etc.

O próprio texto constitucional originário de 1988 trouxe importantes novidades ao Judiciário, na medida em que: (i) reforçou o controle concentrado de constitucionalidade pela ampliação do rol de legitimados ativos à ação direta; (ii) criou o Superior Tribunal de Justiça; (iii) substituiu – como segunda instância Federal – o Tribunal Federal de Recursos por cinco Tribunais Regionais Federais; etc.

Posteriormente, a representação interpretativa foi recuperada, agora como ação declaratória de constitucionalidade, inclusive com efeito vinculante, nos termos da Emenda Constitucional n. 3, de 1993.

Da mesma forma, a arguição de relevância também foi recuperada, agora como repercussão geral, nos termos da Emenda Constitucional n. 45, de 2004 (que muitas outras inovações introduziu no perfil do Judiciário: Conselho Nacional de Justiça, súmula vinculante etc.).

Especificamente no que se refere à repercussão geral, cabem duas anotações.

Primeira. Assim como acontecia com a arguição de relevância, a repercussão geral restringe-se ao recurso extraordinário. Em síntese, permite ao Supremo decidir – escolher – se julgará ou não determinada matéria em sede de recurso extraordinário.

Segunda. A repercussão geral, em sua prática, deu ensejo a um criativo mecanismo decisório. O juízo de admissibilidade (que é a repercussão geral em si) é realizado em ambiente virtual, um “plenário virtual”, eletrônico, em que, durante o prazo comum de vinte dias contado do recebimento da manifestação do Relator, os demais Ministros podem se manifestar sobre o reconhecimento ou não da repercussão geral. Decorrido o prazo sem manifestações suficientes para a recusa do extraordinário (oito votos), reputa-se existente a repercussão geral (cf. art. 324 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal). Só então a questão de fundo agitada no extraordinário (o mérito do recurso) será julgada (claro, de maneira convencional, no Plenário “físico”).

O plenário virtual é uma solução inteligente, mas peculiar à repercussão geral. Com efeito, precisamente porque se trata de juízo de admissibilidade sujeito à avaliação da Corte consigo mesma, em face de critérios constitucionais e legais bastante abertos confiados ao prudente juízo do Tribunal (e sem espaço para recurso), não implica nenhuma ofensa à publicidade exigida pelo inciso IX do art. 93 da Constituição. Por outro lado, o emprego da mesma solução para o julgamento do mérito do recurso extraordinário, em detrimento da via convencional (e da publicidade a ela inerente), implicaria evidente vulneração do inciso IX do art. 93 da Constituição.

Portanto, não parece haver espaço para, por exemplo, cogitar uma expansão do plenário virtual para feitos outros que não apenas a repercussão geral (e, mesmo assim, com evidente exclusão do respectivo julgamento de mérito da questão de fundo implicada no extraordinário).

Muitas medidas podem ser – e têm sido – cogitadas para enfrentar o excesso de processos, realidade que persiste mesmo após a adoção da repercussão geral e da súmula vinculante (ainda que em patamares menos agressivos que aqueles de passado recente). Porém, em geral, pecam pela complexidade.

Neste contexto, talvez seja momento de cogitar uma única e simples inovação para o Supremo Tribunal Federal, de modo a verdadeiramente permitir à Corte processar e julgar número civilizado de processos: aplicar a repercussão geral a todo e qualquer feito da competência, originária ou recursal, do Supremo.

Claro, isso sem prejuízo de não aplicar esse juízo de escolha a algumas poucas – muito poucas – categorias processuais originárias (como, por exemplo, ações penais sujeitas a prerrogativa de foro), cuja natureza – em regra – exige julgamento pelo Supremo. Ainda assim, por exemplo, um mandado de segurança da competência originária poderia muitíssimo bem ficar sujeito ao juízo de escolha: o seu não julgamento implicaria, simplesmente, a manutenção do ato impugnado.

Há décadas fala-se em “crise do Supremo Tribunal Federal”. Isso inclusive nos anos 60 do Século XX, quando a Corte julgava algumas poucas dezenas de centenas de processos…

Em 2006, a Corte contava com acervo processual – entre feitos originários e recursais – de 150 mil processos em tramitação. Em 2013, o acervo caiu para a faixa dos 67 mil processos em tramitação. O estoque revela-se estável nesse patamar desde 2011 (cf. Relatório de Atividades do Supremo Tribunal Federal, edição 2013, p. 23).

Certamente a “melhora” nos números reflete o impacto positivo de inovações como ações diretas com efeito vinculante, repercussão geral e súmula vinculante. Porém, o correto seria que uma alta corte de justiça, como é o Supremo Tribunal Federal, processasse e julgasse, quando muito, algo em torno de um ou dois mil processos por ano.

Para tanto, só há uma solução: permitir ao Supremo Tribunal Federal decidir – escolher – os processos, originários e recursais, que julgará ou que não julgará. Em outras palavras, estender a repercussão geral a todo e qualquer feito da competência do Supremo.

Com efeito, por exemplo, é a amplitude do writ of certiorari (do qual a repercussão geral é sucedâneo) que permite à U. S. Supreme Court decidir em tempo razoável problemas relevantes que efetivamente preocupam a sociedade americana. De modo análogo também se dá em boa parte dos tribunais constitucionais europeus.

Não há, na solução cogitada, nenhum óbice constitucional. O acesso ao Judiciário (Constituição, art. 5o, inciso XXXV) não é por ela prejudicado, pois se trata de direito fundamental que se realiza na primeira e na segunda instâncias. O acesso aos tribunais superiores é – ou deveria ser – uma eventualidade extraordinária (do contrário carece de sentido o nome “recurso extraordinário”). Porém, o acesso – repita-se, que deveria ser uma eventualidade extraordinária – acabou vulgarizado na prática brasileira. Repensá-lo, para o fim de melhor discipliná-lo, é atitude coerente com a natureza das coisas.

Ademais, o Supremo Tribunal Federal já faz, para além do recurso extraordinário, juízo de escolha em alguns outros processos de sua competência. A propósito, importa mencionar dois exemplos bastante claros.

Primeiro. O verbete n. 691 da Súmula do Supremo cria um óbice nítido ao fluxo de habeas corpus para a Corte: "Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de “habeas corpus” impetrado contra decisão do Relator que, em “habeas corpus” requerido a tribunal superior, indefere a liminar."

Não obstante, o próprio Supremo criou uma espécie de válvula de escape, de modo que, a seu critério – à sua escolha – admite afastar o óbice representado pela Súmula 691:

(…) evidencio que o rigor na aplicação da Súmula 691 tem sido abrandado por julgados desta Corte em hipóteses excepcionais em que: a) seja premente a necessidade de concessão do provimento cautelar para evitar flagrante constrangimento ilegal; ou b) a negativa de decisão concessiva de medida liminar pelo tribunal superior importe na caracterização ou na manutenção de situação que seja manifestamente contrária à jurisprudência do STF (…) [STF, HC n. 124.052/PR, Relator o Min. Gilmar Mendes, julgado em 11/11/2014]

Portanto, tem-se, aqui, um juízo de escolha bastante similar à repercussão geral, mas, in casu, aplicável especificamente ao habeas corpus.

Segundo. A arguição de descumprimento de preceito fundamental tem dois mecanismos que, na prática, permitem ao Supremo escolher julgar ou não julgar determinada arguição. Em verdade, para não julgar uma arguição, basta a Corte afirmar que há outro mecanismo capaz de enfrentar o problema suscitado (a arguição só cabe subsidiariamente) ou afirmar que o parâmetro de controle invocado não caracteriza “preceito fundamental”. Em suma, o que se tem, aqui, é juízo de escolha bastante amplo.

Portanto, a escolha sobre processar e julgar determinado processo, para além do recurso extraordinário, já não é estranha à realidade do Supremo Tribunal Federal e, por isso mesmo, pode ser considerada para todo e qualquer feito da competência da Corte.

Enfim, importa lembrar que muitas das inovações mais recentes na competência do Supremo vieram justamente para superar entendimentos jurisprudenciais – ou, até mesmo, normas constitucionais ou legais – de caráter defensivo, ou seja, que pretendiam restringir o acesso à Corte.

Não se deseja, aqui, discutir o acerto ou desacerto das inovações aludidas. Vale, neste ponto, apenas demonstrar que efetivamente existe bom número de “ajustes” nas competências do Supremo levados a efeito até mesmo por lei.

Exemplos nítidos são dados pela já citada arguição de descumprimento de preceito fundamental, configurada que foi – explicitamente – como uma ação direta subsidiária, que cabe quando nenhuma outra ação direta cabe, como se dá nos seguintes casos: (i) impugnação, pela via direta perante o Supremo Tribunal Federal, de lei ou ato normativo municipal em face da Constituição da República (o que, na prática, amplia a primeira parte da alínea “a” do inciso I do art. 102 da Constituição); (ii) discussão, pela via direta perante o Supremo, da recepção ou não de lei ou ato normativo anterior à Constituição (o que supera entendimento firmado na ADI n. 2 no sentido de não ser cabível ação direta na hipótese, porque implicaria revogação, não inconstitucionalidade superveniente); (iii) declaração de constitucionalidade de lei ou ato normativo estadual ou municipal em face da Constituição da República (o que, na prática, amplia a parte final da alínea “a” do inciso I do art. 102 da Constituição).

Portanto, cogitar a expansão da repercussão geral para todo e qualquer processo, originário ou recursal, da competência do Supremo Tribunal Federal (ou, ao menos, para a grande maioria deles), claro, por meio de proposta de emenda constitucional regularmente formalizada, não malfere nenhuma norma constitucional, ao contrário, acena com uma melhor disciplina – quantitativa e qualitativa – do fluxo processual e decisório do Supremo, permitindo-lhe a escolha para julgamento das causas que verdadeiramente importam à sociedade brasileira.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!