Diário de Classe

"O passarinho pra cantar precisa
estar preso". Viva a inquisição!

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29 de novembro de 2014, 7h00

Spacca
Estarrecidos, lemos a entrevista e os pareceres do Procurador da República, Manoel Pastana, nos autos da operação “lava jato”. Sem nenhum constrangimento, arvora-se em legislador e estipula uma nova hipótese de fundamentação da segregação cautelar: a prisão preventiva que serve para a delação premiada. Ou seja, a prisão não é exceção, a prisão não tem requisitos constitucionais. Não. A prisão, agora, é para o acusado “abrir o bico”.

Este é um típico problema de um Estado com baixo grau de secularização, em que os desejos morais do agente público passam por cima da lei e da Constituição. Temos escrito amiúde sobre isso (Streck, L. L. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, 4ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, entre outros livros e artigos).

A maior conquista do Direito na contemporaneidade foi o seu elevado grau de autonomia. E o que isso quer dizer? Quer dizer que ele não pode ser corrigido pela economia, pela política ou pela moral. Trata-se de uma predação do Direito. Tentar moralizar o sistema jurídico é dar um tiro no pé. Hoje são os réus da “lava jato”. Amanhã, ninguém sabe quem será. Quem cuidará do guarda da esquina?

Antigamente (mas bem antigamente), a inquisição prendia o “réu” e ele tinha duas opções: se ele confessasse sua condição de herege ou de bruxo(a), iria “apenas para a fogueira”. Caso contrário, seria torturado. Mas a confissão sairia de qualquer modo. A secularização e as conquistas democráticas afastaram qualquer forma de pressão sobre os acusados. Violência nunca mais. Tortura, jamais. A prova ilícita foi varrida do mapa pela Constituição.

Eis que, agora, aparece outro tipo de violência: a violência simbólica que, a reboque da constrição da liberdade, torna-se um “meio de obtenção de prova”. Prende-se para que ocorra a delação. Pressão indevida. Violência psicológica. Tudo em nome da “moralização”, isto é, se o Direito apresenta muitas garantias e “dificulta” o papel e a função das autoridades (polícia e MP), então ele deve ser corrigido “moralmente”, com a aclamação de parcela significativa da população.

Utilizar a prisão como forma de pressionar os acusados para que façam a delação é transformar o Direito Penal em responsabilidade objetiva. Prende-se o acusado para que, depois, este se defenda contando tudo o que a autoridade deveria descobrir por ela mesma. E por que por ela mesma? Pela simples razão de que, no Estado Democrático, o réu não precisa provar nada. Não há inversão do ônus da prova. Simples assim. Quem deve provar é a acusação. Tal função compete ao Ministério Público.

O que mais impressiona é que a declaração — oral e escrita (no parecer) — vem de um agente que integra uma instituição cujo papel é zelar pela Constituição, e não dela se “adonar”. Este é o problema de uma dogmática jurídica que, historicamente, convive com a livre apreciação da prova e o poder discricionário. Os principais manuais de Direito nunca se insurgiram contra isso. Pois é. Só que chega um dia em que tudo isso se volta contra os advogados (e os cidadãos).

Parece que esse dia chegou. Resta saber se, em nome do combate aos malfeitos, podemos trucidar as garantias conquistadas com tanto sacrifício. E isso não é uma frase de efeito. Será que a Polícia Federal e o Ministério Público não têm condições de apurar os fatos criminosos sem violar a Constituição e o Código de Processo Penal? Precisam utilizar a prisão como elemento de pressão? Tal prática não tem guarida em nosso CPP. Da mesma forma, o dispositivo que fala da presunção da inocência não foi, ao menos por enquanto, extirpado da Constituição.

Ora, e numa palavra final, se alguém que é condenado não pode ir para a prisão sem que ocorra o trânsito em julgado, conforme decidiu o STF não faz muito, como justificar que alguém seja preso para que “abra o bico”, nas palavras do Procurador da República Pastana?

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