Direito Comparado

Argentina promulga seu novo Código Civil e Comercial (parte 3)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

5 de novembro de 2014, 9h55

Spacca
Os leitores acompanharam, nas duas últimas colunas (clique aqui e aqui para ler), o desenvolvimento de uma análise sobre o novo Código Civil argentino. Nesta semana, prosseguir-se-á com o exame do Direito de Família.

O Livro Segundo do Código de 2014, que é sugestivamente intitulado de “Relações de Família”, abre-se com um título relativo ao matrimônio, que se rege pelos princípios da igualdade e da liberdade (artigos401-402). Em síntese, essas disposições declaram que: a) não se reconhece pretensão para se exigir o cumprimento de promessa de casamento e nem para se “reclamar perdas e danos decorrentes de sua ruptura, sem prejuízo da aplicação das regras de enriquecimento sem causa ou da restituição das doações”; b) não é admitido interpretar ou aplicar norma para limitar, restringir, excluir ou suprimir a igualdade de direitos e obrigações dos integrantes do casamento, e os efeitos que este produza, independentemente do sexo dos nubentes.

O código argentino manteve o instituto da nulidade matrimonial, em decorrência de violação dos impedimentos absolutos e relativos (artigos 424 e seguintes).

Os deveres conjugais também são conservados. São eles:

a) Dever de assistência, que consiste no compromisso em se desenvolver um “projeto de vida em comum baseado na cooperação e no dever moral de fidelidade”, com a obrigação de se “prestar assistência recíproca” (artigo 431);

b) Dever de alimentos, que existe entre os cônjuges durante a vida em comum e na separação de fato. Após o divórcio, a prestação alimentar só é devida nos casos previstos no código ou por efeito de acordo entre as partes (artigo 432). Os casos legais de deve de prestar alimentos pós-divórcio estão indicados no artigo 434, destacando-se a situação de enfermidade grave pré-existente ao divórcio, que impossibilita o ex-cônjuge de se auto-sustentar e em favor de quem não dispõe de recursos próprios para se manter. Neste último caso, a duração dos alimentos não pode ser superior ao número de anos de duração do matrimônio e não é devida quando o alimentando já recebe a “compensação econômica” prevista no artigo 441 (sobre a qual se cuidará adiante).

Vê-se que a fidelidade permaneceu como um dever nascido das relações matrimoniais. No entanto, ela foi qualificada como um dever moral e não jurídico.

A extinção do casamento é devida a três causas específicas: a) a morte de um dos cônjuges; b) a sentença declaratória de ausência, com presunção de morte e c) o divórcio declarado judicialmente. Não se cuida da culpa dos cônjuges na extinção do casamento.

O que a doutrina nacional tem chamado de “alimentos compensatórios” foi adequadamente denominado de “compensação econômica” no artigo 441 do Código argentino. Essa verba, dita “compensação”, será devida ao cônjuge que vier a sofrer os efeitos de um “desequilíbrio manifesto”, que implique “piora de sua situação”, cuja causa adequada seja o “vínculo matrimonial e sua ruptura”.

A compensação do artigo 441 pode consistir em uma renda por tempo determinado ou, de modo excepcional, por prazo indeterminado. É possível pagá-la em dinheiro, “com o usufruto de determinados bens ou de qualquer outro modo no qual as partes estejam de acordo ou decida o juiz”.

Quanto aos regimes de bens, o Código argentino a eles se refere sob a rubrica “regime patrimonial do matrimônio”. O artigo 446 enumera o objeto dessas “convenções matrimoniais”, equivalentes, no Direito brasileiro, aos pactos antenupciais, que poderá ser exclusivamente este: a) a descrição e a avaliação dos bens que cada um traz para o matrimônio; b) a relação das dívidas; c) as doações que eles tenham feito entre si; d) a opção que tenham feito por algum dos regimes de bens previstos no Código. O artigo 447 é expresso ao considerar nula todo acordo conjugal relativo a “qualquer outro objeto relativo a seu matrimônio”.

De modo atécnico, surge no capítulo do regime de bens o “dever de contribuição”, quando os demais deveres conjugais estão concentrados nos artigos431-434. Segundo o artigo 455, os cônjuges acham-se vinculados ao dever de contribuição ao sustento do casal e dos filhos, “em proporção a seus recursos”. Esse dever, em caso de incumprimento, pode ser objeto de ordem judicial (artigo 455).

Outro ponto de interesse é a formalização da responsabilidade solidária entre os cônjuges pelas obrigações contraídas por um deles para fazer frente às necessidades ordinárias do lar, ao sustento e à educação dos filhos comuns. Sendo certo que “fora desses casos, salvo disposição em contrário do regime matrimonial específico, nenhum dos cônjuges responderá pelas obrigações do outro (artigo 461).

O “regime de comunhão” é o regime legal na Argentina, o qual se aplicará a todos, desde o momento da celebração do casamento, salvo outra opção, objeto de pacto antenupcial (artigo 463). O outro regime é o de “separação de bens”, no qual cada cônjuge conserva a livre administração e disposição de seus bens pessoais, salvo o imóvel de habitação familiar (artigo 505).

A união estável é denominada de “união convivencial” (artigo 509), que se define como “a união baseada em relações afetivas de caráter singular, pública, notória, estável e permanente de duas pessoas que compartilham um projeto de vida comum, sejam do mesmo sexo ou de diferente sexo”. Seus requisitos são: a) a maioridade de ambos os conviventes; b) não exista entre eles vínculo de parentesco em linha reta em todos os graus, nem colateral até o segundo grau; c) não estejam unidos por vínculos de parentesco por afinidade em linha reta; d) não possuam impedimento e não exista outra convivência registrada de modo simultâneo; e) o período da convivência deve ser não inferior a 2 anos.

Fica nítido que o novo código argentino não admite as uniões estáveis simultâneas ou aquelas em paralelo ao casamento. Tal noção é reforçada pelos artigos511 e 512, pois não é admitido o registro de nova união estável sem que a anterior haja sido cancelada. Ademais, a prova da união estável é livre, no entanto, o registro é “prova suficiente de sua existência”.

Os conviventes podem celebrar um “pacto de convivência”, cujo objeto compreende: a) a contribuição de cada um para a vida convivencial; b) a divisão dos bens obtidos pelo esforço comum, na hipótese de ruptura da união estável (artigo 514). Sendo certo que, à semelhança com os pactos antenupciais, esses acordos não podem ser violadores do princípio da igualdade entre os conviventes, muito menos “afetar os direitos fundamentais de qualquer dos integrantes da união convivencial” (artigo 515).

A união estável também poderá dar causa, após sua extinção, à “compensação econômica”, nos mesmo termos que a referida no artigo 441 para o casamento. Os requisitos são homólogos.

Quanto às regras de filiação, o código argentino prevê espécies: a) filiação natural; b) filiação derivada de técnicas de reprodução assistida e c) filiação por adoção. Seus efeitos são idênticos, mesmo que a filiação por reprodução assistida ocorra de modo extramatrimonial. A parte final do artigo 558, que descreve essas espécies, declara que “nenhuma pessoa pode ter mais do que 2 vínculos filiais, qualquer que seja a natureza da filiação”.

Ainda quanto à filiação por reprodução assistida, é necessário que o centro médico encarregado receba um documento com o “consentimento prévio, informado e livre” das pessoas que se submeterão aos procedimentos. Esse consentimento deve ser renovado “cada vez que se proceda à utilização de gametas e embriões” e sua revogação é possível enquanto não tenha sido “produzida a concepção na mulher, ou nela implantado o embrião” (artigo 560).

Admite-se a “gestação por substituição”, vulgarmente conhecida por “barriga de aluguel”, conforme o artigo 562. A filiação, nessa hipótese, é estabelecida entre a criação nascida e as pessoas que se utilizaram do útero alheio para esse fim, desde que a gestante tenha plena capacidade e boa saúde psicofísica, bem como ela não tenha: a) recebido pagamento por sua participação; b) contribuído com seus gametas. É vedado à gestante participar de mais de dois processos de gestação por substituição. Ao menos um dos contratantes, que serão os pais do filho gerado por substituição, devem ter fornecido seus próprios gametas.

O Código Civil de 2014 estabelece regras de determinação da maternidade. O “princípio geral” é o de que, na filiação natural, “a maternidade estabelece-se com a prova do nascimento e a identidade do nascido” (artigo 565).

Quanto à determinação da filiação matrimonial, conserva-se a antiga norma do Direito Romano quanto à presunção de que são filhos do cônjuge aqueles nascidos depois da celebração do matrimônio até os 300 dias posteriores ao ajuizamento da ação de divórcio ou de anulação do casamento, da separação de fato ou da morte. Essa presunção é inaplicável às filiações decorrentes de técnicas de filiação assistida (artigo 566).

A determinação da filiação extramatrimonial é determinada “pelo reconhecimento, pelo consentimento prévio, informado e livre quanto ao uso das técnicas de reprodução humana assistida, ou pela sentença em juízo de filiação, que a declare como tal” (artigo 570).

Uma das maiores inovações no campo da adoção encontra-se no artigo 596, que contempla o “direito a conhecer as origens”, reconhecido em favor do adotado, que tenha idade e grau de maturidade suficiente, para que “conheça os dados relativos a sua origem e possa ter acesso, quando o requeira, ao órgão judicial e administrativo no qual se tramitou sua adoção”. Esse direito é extensível a qualquer outra “informação que conste dos registros judiciais ou administrativos”.

A adoção no Direito argentino conserva os tipos romanos de adoção plena e adoção simples. A primeira “confere ao adotado a condição de filho e extingue os vínculos com a família de origem, com a exceção de que subsistem os impedimentos matrimonais”. O adotado, em relação à família adotiva, tem os mesmos direitos e obrigações de todo filho (artigo 620). A segunda espécie de adoção, dita simples, atribui a condição de adotado, mas não cria vínculos jurídicos nem com os parentes, nem com o cônjuge do adotante, exceto quanto ao disposto no código (artigo 620).

No entanto, o Código de 2014 criou uma nova espécie, dita “adoção de integração”, que se dá quando a adoção recai sobre o filho do cônjuge ou do convivente, mas mantém o vínculo de filiação, e todos os seus efeitos, entre o adotado e seu progenitor de origem, cônjuge ou convivente do adotante” (artigo 630). A adoção de integração gera os seguintes efeitos entre o adotado e o adotante (artigo 631): a) se o adotado tem um único vínculo filial de origem, ele se insere na família do adotante com os efeitos da adoção plena. Neste caso, as regras sobre a titularidade e o exercício da “responsabilidade parental” aplicar-se-ão às relações entre o progenitor de origem, o adotante e o adotado; b) se o adotado tem duplo vínculo filial de origem, o juiz decidirá quanto aos efeitos da adoção, levando-se em conta as circunstâncias e atendendo ao interesse superior da criança (com remissão ao artigo 621).

O pátrio-poder, atualmente denominado de poder familiar no Brasil, é denominado de “responsabilidade parental”, definida como “o conjunto de deveres e direitos que correspondem aos progenitores sobre a pessoa e os bens do filho, para sua proteção, desenvolvimento e formação integral enquanto seja menor de idade e não se tenha emancipado” (artigo 638). Indicam-se como princípios gerais da responsabilidade parental (a) o interesse superior da criança; (b) a autonomia progressiva do filho, conforme suas características psicofísicas, atitudes de desenvolvimento e (c) o direito da criança ser ouvida e a que sua opinião seja tido em conta segundo sua idade e grau de maturidade (artigo 639).

No exercício da responsabilidade parental, há alguns atos que dependem do consentimento de ambos os cônjuges, como: a) a autorização para seu ingresso em comunidades religiosas, nas Forças Armadas ou de segurança; b) a autorização para sair do país ou para mudar, em caráter definitivo, sua residência para o exterior; c) a autorização para estar em juízo; d) a administração dos bens dos filhos, com exceções relativas a casos de delegação dessa administração. Em hipótese de negativa de consentimento ou de divergência entre os pais, caberá ao juiz decidir a questão. Se o ato envolver filhos adolescentes, será necessário seu consentimento expresso (artigo 645).

Essas são as principais inovações no Direito argentino em matéria de família. Nas próximas colunas, prosseguir-se-á no estudo das mudanças introduzidas pelo Código Civil de 2014.

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    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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