STF como promotor da política e das liberdades na obra de Victor Nunes Leal
25 de novembro de 2014, 9h35
Em tempos de judicialização da política, crise de representatividade e transformação da teoria do direito em teoria do direito constitucionalizada, ou seja, marcada pela centralidade da constituição e de sua força normativa irradiante aos diferentes campos jurídicos, salta aos olhos a atualidade do pensamento do grande humanista e democrata acerca da separação dos poderes e do papel do STF na sociedade brasileira.
A partir da leitura dos textos compilados na coletânea Problemas de direito público e outros problemas[2], é possível encontrar grandes lições de fortalecimento da política inclusiva, com lúcida análise das instituições estatais, dentre as quais o Poder Judiciário que, ao agir como garantidor das liberdades, acaba promovendo-as.
Crítica à rígida separação dos poderes
A questão da separação de poderes possui um papel central nos problemas levantados pelo autor ao longo dos seus artigos. A título de exemplo, pode ser citado o artigo Lei e regulamento[3], no qual o autor discute as diferenças entre lei e regulamento, a partir das disposições da Constituição de 1937, que teria alterado substancialmente a distribuição da competência legislativa[4], atribuindo ao chefe do Executivo “uma preeminência incontrastável no regime político”[5].
No desenvolver do texto, Nunes Leal aborda um ponto de suma importância para a compreensão da ideia de separação de poderes, qual seja, a de que a sua concepção clássica, nos moldes desenvolvidos por Montesquieu em O Espírito das Leis, embora sirva como um parâmetro para avaliação, deve ser interpretada em situações reais, isto é, diante de constituições existentes.
Tal questão parece evidente quando o autor afirma que “continua verdadeira a asserção de que a lei é a norma editada pelo poder legislativo, mas poder legislativo não significa, neste caso, um órgão específico, mas uma competência constitucional”.[6]
No mesmo sentido, o autor se manifestou em outro artigo da coletânea[7], ao tratar das delegações legislativas por oportunidade dos trabalhos da Constituinte de 1946, dizendo que não seria necessário trazer à baila os argumentos teóricos relacionados à separação dos poderes quando a constituição é expressa no sentido de fixar a competência de cada um dos Poderes sobre determinado tema, sendo que “em tais condições, o problema, no seu valor intrínseco, se transpõe do plano jurídico para o político, e cabe então verificar se o legislador constituinte foi feliz ou infeliz em sua posição.”[8]
Embora o ponto defendido pelo autor esteja ligado à relação entre Executivo e Legislativo[9] – e tenha sido escrito na década de 1940 sob a Constituição de 1937 -, a ideia apresentada no texto se torna atual na medida em que serve na análise de alguns fenômenos jurídicos que causam certa perplexidade e desafiam novas soluções por parte dos teóricos do direito.
No campo do direito constitucional e da teoria política, por exemplo, o fenômeno da judicialização e o problema do seu caráter antidemocrático é solucionado com a argumentação de que tal questão é devidamente equacionada nos termos da Constituição da República de 1988, que atribuiu ao Poder Judiciário a prerrogativa de defesa dos interesses constitucionalmente tutelados (direitos fundamentais) e que, portanto, não haveria nenhuma violação ao princípio da separação dos poderes[10].
Fortalecimento da política e papel do STF
Ao analisar de modo mais profundo a teoria da separação dos poderes sob uma perspectiva sócio-político-histórica, Nunes Leal toca em um ponto que parece central para a compreensão do problema da representação na atualidade. Tal é a leitura das ideias lançadas em A divisão de poderes no quadro político da burguesia[11] que descortina o problema e, a partir de então, permite enfrenta-lo de modo mais aberto.
No citado artigo, Nunes Leal assinala o caráter teleológico das construções políticas, dentre elas a teoria da separação dos poderes, tendo sido essa construída como arcabouço necessário para a ascensão da burguesia como força política e a manutenção desse status, com a proteção de seus direitos de propriedade e liberdade[12].
Nessa linha de raciocínio, a técnica de divisão dos poderes, com o seu sistema de freios e contrapesos, serve à burguesia como um modo de debilitar as possibilidades de atuação do Estado, sobretudo do Legislativo, evitando que os seus inimigos – a classe dos assalariados – viessem a “dominar os órgãos do Estado, para fazer funcionar o governo em seu favor”[13] (grifos no original), já que tal intento poderia ser realizado por meio do mecanismo da representação.
Nesse sentido, a análise realizada por Nunes Leal, ainda na década de 1950, adianta um ponto que é enfatizado por teóricos da democracia e da participação na atualidade, o de que os próprios mecanismos internos do Estado liberal – ao não permitirem uma ação mais efetiva e eficiente por parte do poder público em prol da classe dos cidadãos, apesar de sua possibilidade de se fazer representar, induzem uma descrença dos representados para com os representantes, abalando, assim o próprio sistema representativo.
Nesse contexto de crise, o autor entende que a teoria da divisão dos poderes está condenada, na medida em que não atende a necessidade de proteção das liberdades do homem e do cidadão, sendo necessário o desenvolvimento de uma nova técnica para a garantia dessas liberdades[14].
No entender do autor, contudo, tais instrumentos deveriam ser construídos fora do âmbito do Estado, ou seja, pela sociedade por meio da política. Todavia, como o autor deixa claro em texto posterior, em que retoma essas ideias, não pode ser descartada completamente a possibilidade de proteção das liberdades humanas dentro do próprio Estado com o fortalecimento do Poder Judiciário[15].
Partindo das premissas do pensamento de Nunes Leal, as lições que se sobressaem é que o Poder Judiciário, em especial o STF, deve atuar como um promotor auxiliar da política e garantidor da efetiva liberdade ao cuidar para que os cidadãos tenham acesso aos direitos básicos, que permitam a sua participação política. Isso, entretanto, não pode significar governo dos juízes ou indevida e desorganizada intromissão em políticas públicas, mas antes deve se concentrar no constrangimento aos demais poderes para que cumpram as determinações constitucionais e na forte guarda do procedimento democrático e do processo legislativo.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!