Direito do casal

Regulamentação da separação consensual no Novo CPC merece aplausos

Autores

  • Lauane Andrekowisk Volpe Camargo

    é advogada no escritório Volpe Camargo Advogados Associados e doutora em Direito Civil pela PUC-SP.

  • Dierle Nunes

    é advogado doutor em Direito Processual professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio do escritório Camara Rodrigues Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.

  • Luiz Henrique Volpe Camargo

    é doutor e mestre pela PUC-SP advogado e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Foi membro das comissões de revisão no Senado e na Câmara dos Deputados do projeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015.

24 de novembro de 2014, 6h52

Em artigo publicado no dia 18 de novembro de 2014 nesta ConJur, o professor Lenio Luiz Streck escreveu que os dispositivos do Projeto do novo Código de Processo Civil que tratam da separação judicial seriam inconstitucionais. Argumenta que a “separação foi varrida do mapa jurídico” em razão da EC 66/2010. Diz, ainda, que o projeto quer “ressuscitar” o instituto “ao mundo dos vivos”. Afirma, também, que a regulamentação do procedimento da separação seria uma violação ao estado laico.

Discordamos do eminente articulista. Seu texto é fundado na premissa de que, no ponto, o projeto do novo CPC seria contrário ao §6º do art. 226, com redação atribuída pela EC 66/2010. Partimos de premissa diversa. A alteração constitucional, aplaudida por todos, acabou com o sistema dual obrigatório que vigorava no Brasil, mas não proibiu, não vedou, não impediu duas pessoas casadas de, apenas, se separarem.

E isto por uma premissa essencial no âmbito do Direito Constitucional de que o Estado não pode invadir a intimidade e privacidade das pessoas. A título exemplicativo, poderíamos indicar a linha de precedentes iniciado na US Supreme Court pelo caso Griswold v Connectictut (381 U.S. 479, 1965), passando por Eisenstadt v. Baird (405 U.S. 438, 1975), Roe v Wade (410 U.S. 113, 1973) em que se consolidou a ratio decidendi, embasada na 14ª Emenda da Constituição daquele país, de que o Estado não poderia invadir a escolha das pessoas no que tange ao controle de sua natalidade. Consolidou-se a autonomia privada e a impossibilidade de que o Estado invada suas escolhas.

Voltando-se ao âmago da questão em comento, o Estado não poderia, especialmente por ser Laico e respeitar a autonomia privada de nossos cidadãos, impedir que as pessoas, por livre escolha, optem pela separação judicial, caso não se sintam preparadas para o divórcio e isto somente diz respeito ao casal e as suas escolhas. E, para demonstrar isto, podemos traçar um breve histórico.

Antes da alteração constitucional os brasileiros eram obrigados a observar o chamado “prazo de dureza”, herdado do Direito Canônico. Tinham, portanto, obrigatoriamente, antes de buscar a extinção do vínculo pelo divórcio, de se submeter à separação, seja a jurídica, seja a de fato.

A EC 66/2010 acabou, sim, com essa obrigatoriedade e, com isso, como diz o articulista, “ponto para secularização”. Mas isso não significa, ao nosso juízo, que a “separação foi banida do mapa jurídico”.

O sistema dual obrigatório foi substituído pelo sistema dual opcional, facultativo. Nesta nova quadra da história do direito brasileiro, o casal pode optar, desde logo, por se divorciar; como também, se essa for a livre vontade comum, optar por, apenas, se separar judicialmente.

Diferentemente do cenário anterior, não existe mais a proibição do imediato divórcio. Mas, isso é fundamental, o novo sistema também não impõe o imediato divórcio. Assim, a separação consensual está mantida. E esta ainda é, com frequência, depois de mais de quatro anos de vigência da  nova redação do parágrafo 6º do artigo 226, utilizada por muitos casais país afora, sendo salutar que, justamente em razão disso, o novo Código de Processo Civil continue a regular o seu procedimento.

O texto constitucional diz expressamente que o divórcio pode ser decretado independentemente da separação prévia. Não diz, contudo, que a separação prévia está proibida. Eis o texto da Constituição: “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.” Esse é o ponto.

O sistema dual obrigatório antes da EC 66/2010 era lamentável, uma verdadeira afronta à autonomia privada das partes, assegurada em nossa Constituição. A principal virtude da alteração do artigo 226 da Constituição foi justamente permitir que as pessoas decidam como e quando irão extinguir o vínculo do casamento.

E é justamente a autonomia privada das partes e a proibição de que o Estado invada a privacidade dos cidadãos que nos impede de concordar com qualquer interpretação do parágrafo 6º do artigo 226 da Constituição que desprestigie o livre querer do casal. Não é admissível que a tal secularização sacrifique a liberdade!

O casal é livre para decidir sua vida. Livre para se divorciar ou livre para se separar. Pensar diferentemente é concordar com a instituição de nova ditadura, inversa daquela existente no passado: a ditadura do divórcio obrigatório.

Repetimos: se o casal, consensualmente, por qualquer razão, até mesmo a religiosa, decidir apenas se separar, a Constituição não proíbe essa opção.

O sistema dual opcional vigora em diversos países como a Bélgica, Portugal, Espanha, França, dentre outros. Há diversos civilistas renomados que sustentam que a separação consensual está mantida mesmo depois da nova redação do parágrafo 6º do artigo 226 da Constituição, como Regina Beatriz Tavares da Silva, Maria Helena Diniz, Youssef Said Cahali e Walsir Edson Rodrigues Jr.

A V Jornada de Direito Civil de 2010, que reúne diversos estudiosos sobre o assunto, aprovou o Enunciado 514 nos seguintes termos: “A Emenda Constitucional 66/2010 não extinguiu o instituto da separação judicial e extrajudicial”.

Até mesmo o CNJ, quando provocado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) para que vedasse aos notários a celebração de escrituras de separação, ressaltou que a separação não foi extirpada do sistema jurídico (pedido de providências 0005060-32.2010.2.00.0000). A consulta a diversos tribunais do país comprova a sua recorrente utilização.

A interpretação mais adequada da EC 66/2010 não é a que prega a proibição da separação consensual. O fim da separação em todas as suas modalidades, seja a obrigatória ou opcional, foi, apenas, mencionada na justificativa da proposta da EC 66/2010.

Mas com todo respeito à obra e à pessoa do admirável ex-deputado federal Sérgio Barradas Carneiro, que deu início a então proposta de alteração legislativa, é consenso que a vontade do legislador (mens legislatoris) não deve prevalecer sobre as demais regras de interpretação do texto constitucional, sem olvidar que as leis vivem um processo de aprendizagem social constante que as desgarram, em sua interpretação, da intenção dos elaboradores dos textos.

Ademais, é de conhecimento geral que o parlamento bicameral funde-se em opiniões múltiplas, de modo que o resultado final do processo legislativo quase sempre é bem distante da vontade originária do autor do projeto.

Dizer que a separação acabou é o mesmo que dizer que as disposições contidas nos artigos 1.571 a 1.578, 1.580 e 1.704 do Código Civil não foram recepcionados pela nova disposição constitucional, assim como o disposto nos artigos 1.120 a 1.124-A do CPC/73. Isso parece um grande exagero.

Ocorre que a interpretação do parágrafo 6º do artigo 226 da CF deve observar o princípio da continuidade da ordem jurídica. E, neste caso, não há como em um passe de mágica se desprezar toda a ordem jurídica infraconstitucional que trata da separação. O princípio da continuidade da ordem jurídica deve ser observado na interpretação da alteração da norma constitucional, como já advertiu Luis Roberto Barroso (Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 141). Em outras palavras, extirpar a separação é ferir o princípio da continuidade, já que a dissolução da sociedade conjugal sempre existiu no Brasil e ainda existe.

Vale lembrar que quando a separação foi tratada pelo CPC de 1973, o texto constitucional proibia o divórcio e nem por isso o diploma processual foi tido como inconstitucional.

As pessoas decidem (apenas) se separar pelas mais diversas razões. Alguns, como já dito, por opção religiosa, outros pela incerteza da decisão. O fato é que o divórcio acaba definitivamente com o casamento, enquanto que a separação põe fim apenas ao regime de bens e aos deveres conjugais.

A separação consensual está viva e a regulamentação do instituto no Projeto do Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados, onde o projeto esteve sob a relatoria do Deputado Paulo Teixeira, merece todos os nossos aplausos.

Prestigiar o direito de liberdade, a autonomia privada dos cidadãos, não ofende a secularização. E por isso mesmo que nenhum texto legislativo proíbe a separação, pois tal dispositivo, este sim se existisse, certamente seria inconstitucional. Talvez, com o passar do tempo, a separação caia em desuso, mas isso será uma resposta natural da sociedade e não uma imposição de legisladores ou intérpretes.

Esperamos que o Senado Federal, prestigiando a liberdade de escolha dos destinatários da norma, no ponto, mantenha a versão apresentada pela Câmara dos Deputados. Daqui, estaremos prontos para dar aos Senadores nossos mais efusivos aplausos.

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