Segunda Leitura

Pensando sobre um Congresso Brasileiro de Fracassos Jurídicos

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

23 de novembro de 2014, 10h13

Spacca
Mas que título estranho, todos pensarão. Terá o Alzheimer alcançado o articulista? Tranquilizem-se, não é o caso. Encontro-me muito bem disposto, acabo de vir do Crato (CE),  uma viagem de 6 horas de avião, sem nenhum problema. Explico, assim, em plena sanidade física e mental, a razão de um congresso de fracassos.

Nós, da área jurídica, gostamos de relatos de vitórias. Todos conhecem advogados que narram suas vitórias em causas difíceis, promotores que contam casos de sucesso na punição de criminosos ou professores que fazem questão de explicar aos alunos, detalhadamente, como foi sua participação no último congresso na Europa. Faz parte. O Direito impulsiona a pessoa para o conflito e a todos agrada ser o vencedor.

No entanto, nem mesmo no mais restrito círculo de amizades alguém conta seus fracassos. Como se fôssemos heróis de filmes de ficção científica, exteriorizamos nossos sucessos e escondemos nossas derrotas a sete chaves.

Vale aqui citar Brené Brown, para quem “máscaras e armaduras são as metáforas perfeitas para as ferramentas que usamos no intuito de nos protegermos do incômodo da vulnerabilidade. Com as máscaras nos sentimos mais seguros, mesmo quando elas nos sufocam. Com as armaduras nos sentimos mais fortes, mesmo quando ficamos cansados de carregar tanto peso nas costas.” (A coragem de ser imperfeito, Sextante, página 86).

Reportagem de Claire Martin, no jornal The New York Times do dia 18 de novembro, chamou-me a atenção para iniciativa tomada no Vale do Silício, Califórnia (EUA). Observando seguidos fracassos de empreendedores daquela rica região, Cassandra Phillipps fundou a FailCon, que nada mais é do que um congresso que se realiza em São Francisco, durante um dia inteiro, a preços que variam de US$ 100 a US$ 350, nos quais uma média de 450 pessoas  que tiveram insucesso nos negócios narram suas histórias para uma plateia que as ouve para não repetir os erros.

Que tal seria fazer-se algo parecido no Brasil, só que destinado a estudantes e profissionais do Direito?

Não se suponha que seria um congresso de perdedores, de lamurientos derrotados que ficariam a lastimar-se e a atribuir a culpa de seu insucesso aos pais, à universidade, ao Estado ou a quem quer que seja. Não, absolutamente. Muito ao contrário, seria um momento de vencedores mostrarem que também já cometeram erros, narrá-los sem qualquer vergonha e, disto tudo, todos tirarem proveito. Em um exercício de imaginação, imaginemos situações de fato — obviamente inexistentes —  que poderiam amoldar-se ao pretendido.

A entidade promovente ideal seria uma universidade. Evidentemente, o público alvo mais interessante seriam os estudantes de Direito. Mas não só eles, com certeza. O formato seria uma conferência magistral e depois painéis. Nestes, os participantes ouviriam os relatos e, nos 20 minutos posteriores, formulariam perguntas, de forma a  discutir-se o que poderia ter sido feito para evitar o erro ou remediar o dano causado. Às 8h30, a entrega de credenciais; às 9h, palavras de abertura pelo decano da Universidade e, às 9h30, a conferência inaugural.

Para iniciar seria convidado um ministro do Supremo Tribunal Federal, de preferência aposentado. O STF tem pessoas que, além de grandes ministros, teriam a grandeza e a humildade de contar algum erro profissional. Após a conferência magistral, surpresos os presentes em constatar que ministros do STF também são humanos e sujeitos a erros, ouviriam o primeiro painel que poderia intitular-se: “Meu maior fracasso profissional”.

Nele, um desembargador destacado no mundo jurídico narraria que cometeu grave equívoco ao ser corporativo, por ter conseguido evitar a punição disciplinar de um juiz substituto relapso o qual, mais tarde, criou enormes problemas para a magistratura, envergonhando seus colegas. Um advogado poderia contar que participou da campanha pelo fim das férias forenses nos tribunais, sem imaginar que isto só traria confusões, com a mudança constante da composição das câmaras, convocando-se juízes, além de aumentar em 6 dias as férias dos desembargadores. Um  cartorário confessaria que colocava as petições dos advogados que não gostava no último lugar da pilha, prejudicando, com isto, parte na ação  que nem conhecia.

Intervalo para o almoço. Às 14h, outro painel: “Minha arrogância foi o meu erro”. Neste, um procurador da República, um delegado de Polícia e um advogado da União contariam suas mazelas pessoais. O primeiro poderia dizer de uma ação de improbidade administrativa pela qual, por orgulho e para mostrar poder, submeteu uma autoridade honesta a um processo de 12 anos. O segundo poderia contar uma prisão em flagrante desnecessária, cujo auto foi lavrado só porque o suspeito era rico e que, com isto, quis mesmo provar que tinha poder. O terceiro poderia falar do mal causado a um autor, por ter interposto recursos especial e extraordinário em uma causa proposta há décadas por um idoso, cuja tese era vitoriosa nas Cortes Superiores, fato que retardou a definição do conflito em anos.

Coffee break.  Conversas tensas e divertidas simultaneamente, todos mais soltos por saber que não eram os únicos que erravam.

Vem o terceiro e último painel: “Paguei por ser vaidoso”. Um defensor público relataria que propôs uma ação civil pública de alta repercussão na mídia, mais do que tudo pela divulgação de seu nome. Um  estudante confessaria a sua vaidade ao liderar um abaixo-assinado contra o velho professor que acabou sendo afastado, porque esta vitória lhe daria notoriedade que o levaria a vencer as eleições do diretório acadêmico. Por estarmos na época da interdisciplinariedade, um jornalista seria convidado e, constrangido, mencionaria uma acusação a um juiz cuja fonte não era confiável e que, por não corresponder à realidade,  gerou problemas de saúde no magistrado.

Às 18h o decano da Universidade encerraria o Congresso, convidando todos a meditarem sobre os depoimentos, sobre as soluções e, principalmente, sobre a necessidade de todos não esquecerem que seres humanos são falíveis, que os fracassos não constituem, por isso mesmo, uma vergonha e que, divulgados,  podem auxiliar terceiros a não repeti-los. Alguém se habilita a realizar esse hipotético e audacioso Congresso?

Autores

  • é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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