Limite Penal

Quando a delação premiada funciona
como máquina de lama

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

21 de novembro de 2014, 7h00

Spacca
A coluna é uma homenagem ao livro A Máquina da Lama: histórias da Itália de hoje (Companhia das Letras, 2012), de Roberto Saviano, o mesmo de Gomorra. Mas pode ser, quem sabe, a metáfora do que se passa nos dias atuais. Narra, como de costume, histórias de máfia, regadas a delações, esquemas de vingança e retaliações, com repressão estatal, processos performáticos e controle social ineficaz. O pano de fundo é a Itália e suas contradições, permeada por organizações criminosas adornadas no ambiente político e operadoras de grandes somas de recursos.

Berlusconi é o capo de toda uma lógica midiática que manipula a opinião pública a partir das dez estratégias denunciadas por Chomsky, ou seja: distração; método problema-reação-solução; gradação; sacrifício futuro; discurso para crianças; sentimentalismo e terror; valorizar a ignorância e a mediocridade; desprestigiar a inteligência; incentivar e incutir a culpa e monitoração. Não somente na Itália. Por aqui são construídas figuras que congregam os atributos do violento, do delinquente, do corrupto e do assassino moral[1], as quais operam no imaginário coletivo e devolvem a sensação de que tudo pode continuar como antes. E os juristas telepopulistas se apressam a nos salvar…  

O processo penal do espetáculo objetiva “esculachar” qualquer um dos indiciados e/ou acusados e, ainda que promova a responsabilização aparente da classe vip, traz consigo a espetacularização, com maior vigor, dos crimes que estão próximos do sujeito. Não raro devolvem a responsabilidade do que se passa pelo compartilhamento do “jeitinho brasileiro”, das pequenas infrações praticadas por todos, “como se”, com esse estratagema, todos fossem “farinha do mesmo saco”. Busca a cumplicidade de que “somos todos sujos” e, por isso, ninguém pode falar de ninguém. Diz Saviano: “Que não há esperança. Esse jogo quer nos convencer de que ‘assim caminha a humanidade’, de que só é possível ter êxito nas coisas mediante acordos e concessões, porque no fundo todos se vendem, se quiserem chegar a algum lugar.”

Precisamos, de fato, falar sobre o que se passa no Brasil contemporâneo, sobre a criação do efeito lama nas reputações, antes de qualquer processo, da máfia instalada no poder, na política, do voto obrigatório e dividido em sessões (nas quais se monitora a votação em cidades menores; os candidatos podem conferir se foram votados em sessões de menos de 100 eleitores, por exemplo), bem assim da comissão para elaboração de projetos em nome do financiamento de campanhas e tudo o que isso implica. Não poderemos falar de todas as questões.

Nosso papel como professores de Processo Penal é mostrar que a instrumentalização do processo penal como mecanismo do poder, em suas diversas faces, encontra, atualmente, na exposição a priori, o mecanismo de barganha do que se oculta. Para além das delações e de um silêncio ensurdecedor de boa parte do corpo político, dado o medo de que seu telhado de vidro seja quebrado, existe hoje um grande arranjo silencioso que pretende justamente omitir. Pisa-se em terreno movediço, espinhoso, silenciado, e os silêncios, contudo, sempre dizem. Sustenta Orlandi: “Se a linguagem implica silêncio, este, por sua vez, é o não-dito visto do interior da linguagem. Não é o nada, não é o vazio sem história. É o silêncio significante.”[2]

Não queremos a construção de salvadores, vingadores, vigilantes, nem muito menos de caudilhos. Nisso Ferrajoli está correto ao afirmar que não temos outro meio que não apostar no Direito, desde que ele não seja instrumentalizado por interesses pessoais/ideológicos e, muito menos, pelo ego de alguns protagonistas que posam de salvadores da nação: telepopulistas. Todos que se colocam como Salvadores, mais cedo ou mais tarde, mostram a faceta autoritária em nome da causa, da necessidade, do Estado de Exceção. Percebem as regras processuais como uma barreira que deve ser transposta em nome da necessidade.

O discurso da corrupção coloca sob o mesmo signo todos que se arriscam e erram, mesmo sem que sejam corruptos, mediante o estratagema de lançar a máquina de lama sobre sua pessoa, reputação e família, sendo utilizada, para tanto, a prisão temporária. Todos sabemos que a prisão temporária foi exigida pela mentalidade inquisitória que prende para depois investigar e serve de mecanismo de pressão midiática e psicológica para obtenção de delações, no que a teoria dos jogos e o dilema do prisioneiro são os expedientes manejados. Cuida-se da “eficientização” do processo penal, jogando sujeira para todos os lados.

A ilusão de que basta prender temporariamente alguns chefes e eventuais operadores da máquina do crime organizado é o leitmotiv de quem não se deu conta de que o modelo capitalista criminoso encontra novas estratégias. É justamente a lógica que precisa ser enfrentada. Exemplo disso é o reconhecimento pelo HSBC de lavar dinheiro sujo de drogas e terrorismo, na lógica de Vespasiano: pecunia non olet (o dinheiro não tem cheiro). De escândalo em escândalo pune-se os operadores e não se toca na lógica. Talvez possamos dizer que se pode descobrir algumas coisas interessantes com o aprofundamento da investigação, inclusive envolvendo políticas públicas recentes e que, aparentemente, não guardam pertinência com os escândalos divulgados, bem assim que, tal qual a máfia italiana, o dinheiro sujo tenha se transformado em pedras preciosas, guardadas nos cofres de bancos, nos quais não é preciso declarar o seu conteúdo. Tanto no Brasil como no exterior. Aliás, a máfia italiana há muito usa esse estratagema e não seria novidade estarem procurando no lugar errado ou mesmo no lugar em que se deixou rastros propositais. Assim, com o bloqueio de bens e patrimônio, acredita-se que tudo estaria resolvido. Um sorriso de canto de boca pode surgir em cada um dos leitores. Ou não.

Devemos pensar nas consequências das consequências. A delação, vista como traição no costume cotidiano, ainda terá os efeitos desconhecidos. Por ela e a partir dela teremos a difamação como o grande agente constrangedor. O delator recebe a “aura” de arrependido e colaborador, indicando o caminho pelo qual o Estado irá perseguir os não arrependidos. Surgem as máquinas de dossiês, dos jornais alinhados, dos políticos interessados e interesseiros, destruindo a reputação de quem se atravessa no caminho. Advogados são acusados de prejudicar o esclarecimento da verdade, como se a Constituição e o direito de defesa fossem o empecilho da salvação nacional. A investigação e o processo passam a ser o meio difamatório generalizado, com notícias parciais e inimigos vendidos ao mercado da mídia imaginária e manipuladora. Ninguém que se oponha passa ileso. A cruzada moral não respeita regras.

Tal qual Saviano, queremos falar aos que pretendem restaurar a confiança nas instituições e não em pessoas singulares, as quais agem em nome de meios e não na garantia da democracia. Pode-se plenamente punir dentro das regras processuais e com respeito constitucional. Não podemos aceitar que se criem regras de exceção dentro do jogo processual, tolerando a criação de regras de transgressão ao devido processo legal substancial por personagens instalados no Poder Judiciário. O sentido de Justiça e de equidade se perde quando, em nome dos resultados, vale tudo. Interceptações sem prazo, nem fundamentação, delações de gaveta, informação subtraída da defesa, enfim, toda uma série de questões que deveriam ser submetidas ao contraditório. Acusação e defesa deveriam ser tratadas em igualdade de condições. Mas não são.

Queremos falar aos que sonham, sem se envergonhar, em chamar seu país de um lugar bom para morar e que respeitam as regras do jogo, punindo quem se deva punir, no limite do devido processo legal. Aceitar o contrário resvala para o jogo sujo da lama lançada para todos os lados. Saviano pode servir de inspiração, embora não concordemos com sua visão de combate ao crime instalado no poder, ao afirmar: “Mas a Itália é vítima de uma maldição secular: ainda não estamos totalmente convencidos de que as leis contidas na Constituição sejam as nossas leis. Aqui, ainda encaramos o Estado e a legalidade com desconfiança, como se fossem um obstáculo à realização pessoal. Mas defender a Constituição é, ao contrário, defender algo que é vacina e sonho, vacina contra aquilo que não permitiremos que aconteça de novo e sonho a ser realizado através de um progresso contínuo.” Precisamos de um Judiciário comprometido com as regras processuais impostas pelo processo civilizatório, com punições conforme o devido processo legal garantido. Democraticamente se pode e deve punir. Não de qualquer jeito. O tempo dirá.  


[1] SUSCA, Vicenzo. Trad. Taís Ferreira. Porto Alegre: Sulina, 2007.
[2] ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: UNICAMP, 1997, p. 23.

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