Ideias do Milênio

"Defender um cliente não significa defender sua conduta criminosa"

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21 de novembro de 2014, 11h45

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Abbe Smith [Reprodução]Entrevista concedida pela defensora criminal nos Estados Unidos Abbe Smith ao jornalista Luís Fernando Silva Pinto, para o programa Milênio, da GloboNews. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira com repetições às terças-feiras (11h30 e 17h30), quartas-feiras (5h30), quintas-feiras (6h30 e 19h30) e domingos (7h05).

Dentro dos tribunais, há todo tipo de julgamentos, desde uma simples discussão de trânsito até crimes tão cruéis e violentos que desafiam a ficção. É difícil imaginar o argumento usado para defender alguém que jogou gasolina e ateou fogo em um outro ser humano, ou a consciência do advogado que usa todo o seu domínio da lei para manter em liberdade um traficante violento. Há quem se pergunte, quem se presta a defender gente assim? A pergunta não tem resposta simples. Advogados muitas vezes apenas cumprem uma obrigação, são requisitados pelos tribunais para defender assassinos, estupradores, terroristas e fornecer a cada acusado o direito de defesa como manda a lei. Porém, advogados também aceitam espontaneamente clientes que destruíram vidas em atos premeditados, que são reincidentes e sádicos nos seus crimes ou que são uma soma de tudo isso. Peças fundamentais no funcionamento do sistema de Justiça, os advogados de defesa muitas vezes enfrentam questionamentos morais em seu trabalho. Mas, segundo a jurista americana Abbe Smith, mesmo o acusado mais temido tem sua parcela de humanidade e muitas vezes a diferença entre ele e o resto da sociedade não é tão grande. Professora de Direito e diretora de um dos mais respeitados programas de assistência legal dos Estados Unidos, a clinica de defesa criminal e advocacia para prisioneiros da Universidade George Town em Washington, Abbe Smith é uma defensora criminal de primeiro time e na entrevista defende a lei como algo mais complexo do que apenas penalidades estabelecidas por cada jurisdição. Para ela a lei é feita de seres humanos, de condições de vida e muitas vezes da sorte do momento.

Luís Fernando Silva Pinto — Você editou um livro no qual 16 advogados criminalistas explicam ou contam por que representam criminosos. Por que os advogados querem explicar isso?
Abbe Smith —
É uma ótima pergunta. É porque parece fazer parte do trabalho dos criminalistas ter que responder muitas vezes a essa pergunta. Na verdade, temos um apelido para ela: “a pergunta” ou “a pergunta dos jantares”. Chamamos assim porque é nessas situações que ela surge, mas pode ser em qualquer evento social. Quando descobrem que você é advogado criminalista, inevitavelmente perguntam: “Como pode defender essas pessoas?”, referindo-se aos culpados, principalmente a pessoas que cometeram crimes hediondos. Os colaboradores do livro têm perfis bem diferentes. 50% dos autores são mulheres, 25% são negros, sua idade varia entre 20 e tantos anos até mais de 80 e eles têm especialidades diferentes. Há defensores públicos, advogados criminalistas famosos, especializados em pena de morte, administradores de organizações sem fins lucrativos. São perfis variados. E todos os artigos são muito reflexivos, alguns são muito engraçados, outros são muito pungentes e acho que cumprem muito bem a tarefa de responder a essa pergunta onipresente.

Luís Fernando Silva Pinto — Mas e quanto àquilo que eles fizeram, – quando fizeram?
Abbe Smith —
Boa pergunta. Muitas vezes, eles representaram criminosos terríveis, mas pesquisam sobre seus clientes e descobrem que, invariavelmente, quem pratica atos terríveis foi vítima de atos terríveis. Ninguém nasce para se tornar um criminoso. Quase sempre, quem pratica os piores crimes são pessoas estruturalmente desequilibradas. Essa é uma das explicações.

Luís Fernando Silva Pinto — É uma explicação social, ou circunstancial.
Abbe Smith — É verdade.

Luís Fernando Silva Pinto — E do ponto de vista moral? Como a sua mente lida com isso quando você sabe que a pessoa que defende fez o que fez e que você pode livrá-la da punição?
Abbe Smith —
A intenção do advogado criminalista é defender os interesses de seu cliente. Então, se o cliente diz: “Eu quero me livrar apesar de ser culpado”, esse é o seu trabalho. Você não pode ser tanto juiz como advogado. A questão moral é interessante. Alguns já sugeriram que os criminalistas são amorais, que nos agarramos ao nosso papel no sistema acusatório e interpretamos um papel decididamente fora do sistema moral. Eu não enxergo assim, mas distinguiria o regime ético no qual os advogados operam do que ficou conhecido como valores e moral comuns. São duas coisas diferentes, e eu tenho a minha ética profissional. O papel que eu interpreto é essencial para o funcionamento do sistema acusatório de Justiça. Esse sistema não funcionaria se não houvesse advogados capazes em ambos os lados. Existe uma virtude moral em ficar ao lado de um ser humano em necessidade e com medo. E isso pode ser considerado moral. É o meu pequeno papel no sistema. Até do outro lado há pessoas clamando por justiça.

Luís Fernando Silva Pinto — O sistema de justiça americano funciona?
Abbe Smith —
Às vezes. Trata-se de uma questão complicada. Alguns lugares fornecem serviços advocatícios de alta qualidade em casos criminais. A esfera civil é diferente. Não há direito a advogado em causas cíveis. Eu não diria que o sistema funciona bem para todos no tribunal civil, porque há causas que são tão importantes para as pessoas quanto as criminais. Causas nas quais o réu pode perder a guarda dos filhos, pode enfrentar deportação ou tratamento mental involuntário. São causas cíveis sem direito a advogado, mas são muito importantes, e a própria liberdade está em risco. Mas, infelizmente, isso varia, e não varia de uma forma estereotipada. Há áreas do norte do estado de Nova York e de Ohio e Pensilvânia onde a qualidade dos advogados é abaixo do padrão.

Luís Fernando Silva Pinto — Você é contra a pena de morte? Por quê?
Abbe Smith —
Sou, por motivos morais. Acho errado o Estado matar pessoas. É uma punição permanente, acho incivilizado. Já superamos isso. Não consigo acreditar que em pleno século 21 o poder público sinta que tirar uma vida é justificável. Há esse motivo e também acho que há algo de aleatório e de injusto na imposição da pena capital. Supostamente a impomos aos piores entre os piores, mas não é o que acontece. Ela é imposta, às vezes aleatoriamente, em casos comuns, em homicídios comuns. Às vezes quando a vítima é simpática e cativante, às vezes porque o julgamento acontece em regiões nas quais os júris são especialmente punitivos, e a forma de escolha dos júris nesses casos é problemática. Tendemos a excluir pessoas que têm dúvidas em relação à pena capital. Dizemos que não seriam imparciais. E acho que seriam. Não acho que um júri à favor da pena de morte deveria julgar esses casos.

Luís Fernando Silva Pinto — A escolha do júri é responsabilidade dos dois advogados, da defesa e da promotoria. Então os advogados são os responsáveis.
Abbe Smith —
Os advogados e os juízes.

Luís Fernando Silva Pinto — Lamento interromper, mas o sistema toma parte?
Abbe Smith —
Com certeza. As pessoas comparam o sistema acusatório a uma espécie de esporte. Isso é fazer pouco dele, mas é um sistema muito competitivo. É acusatório, portanto há advogados dos dois lados, defendendo fervorosamente sua posição. E isso às vezes se assemelha a um esporte e a um jogo, principalmente na seleção do júri. Mas a impugnação peremptória existe desde muito antes do século 13 na Inglaterra. E, desde o século 14 na Inglaterra, os tribunais ingleses decidiram que só os réus poderiam impugnar. Só os acusados poderiam dispensar jurados, pelo motivo que fosse ou sem motivo, se não se sentissem à vontade, porque quem enfrenta uma acusação do Estado deve participar da decisão de quem o julga. Antes disso, na Inglaterra, havia abusos, por parte do rei, na escolha dos júris. Nos EUA, há um problema bem documentado com promotores impugnando jurados negros e latinos, principalmente. Então há alguns municípios com 80% de negros mas com júris 100% brancos. Isso ainda é um problema, principalmente no Sul atrasado.

Luís Fernando Silva Pinto — Se penitenciárias particulares não funcionam bem, se penitenciárias federais não funcionam bem, o que fazer? Qual é a solução para o problema que o ser humano tem em lidar com os elementos criminosos de uma sociedade?
Abbe Smith —
É uma pergunta relevante, e devo dizer que os criminalistas não são a favor do crime. Nós não comemoramos a perpetração de um crime. O fato de lutarmos por nossos clientes e encontrarmos a humanidade deles não significa que defendamos a conduta criminosa de nossos clientes. Não sou ingênua a ponto de achar que ninguém precisa ser preso. Alguns precisam ser separados da sociedade, confinados de alguma forma, mas acho que poderíamos ter outras opções a esta altura da nossa história, no século 21, em vez de engaiolar pessoas, como fazemos com muitas pessoas. Mas o que acho incrível nesses mais de 30 anos nos quais advogo é que esse tempo acompanha exatamente a curva de encarceramento em massa nos EUA. Quando comecei a advogar… Foi nesses 30 anos que passamos a prender se não me engano três vezes mais pessoas do que no final da década de 1970. Comecei a advogar no início da década de 1980. Não é possível que se cometam muito mais crimes hoje do que há 30 anos. Não acredito nisso.

Luís Fernando Silva Pinto — Mas o que fazer? Se as penitenciárias não são a única resposta, então o quê? Tem um plano, uma solução?
Abbe Smith —
Tenho. Acho que, nos Estados Unidos, principalmente nas instâncias mais baixas, processamos e prendemos pessoas por motivos ridículos. Ontem mesmo, um homem de 64 anos sem antecedentes criminais e com um perfil interessante — escreveu alguns livros e compôs canções — é dono de armas na Pensilvânia. Ele tem permissão para portar, sempre portou uma arma e nunca foi preso, mas cometeu o erro de ir a Washington para uma conferência e deixar a arma no carro. Um policial perguntou a ele, que estava estacionado perto do Capitólio, se o carro era dele. Estava bem estacionado. Nem sei por que o abordaram, mas ele é honesto e admitiu que tinha uma arma e que estava no porta-luvas. Ele foi preso e acusado de portar pistola sem licença, de posse de arma e munição sem registro… Acredito na nossa legislação. Não sou fã de armas e acho que a violência praticada com armas contribuiu para inúmeros males em nossa sociedade, mas esse cara precisava mesmo ser processado criminalmente? Ele foi preso e passou dois dias na penitenciária de DC. Quando saiu, sob fiança, seu carro havia sido rebocado, eram US$ 200 para retirá-lo. Já estava tão tarde que ele teria de dormir, mas não tinha dinheiro, então passou a noite num abrigo para sem-teto. Voltou para a Pensilvânia, conseguiu um bom defensor público participante do meu programa, mas o governo só estava interessado na condenação dele. Aceitaram trocar a acusação de crime para delito leve, mas às vezes penso: “Sério? Não há outra alternativa?” Ele ia morrer com orgulho de ter vivido corretamente, de ter sido uma boa pessoa, sem ficha criminal, e agora… Às vezes, acho uma besteira. Deveríamos decidir com a cabeça mais fria.

Luís Fernando Silva Pinto — No livro, você fala da importância da apelação e cita dois casos: um é o de Kelly, a garota que não cometeu um crime. E o outro é o da Srta. Cooper, que, apesar de talvez ter sido culpada, era extremamente cativante. Pode me contar sobre esses dois casos?
Abbe Smith —
A história de Patsy Kelly Jarrett, que contei num livro anterior chamado Case of a Lifetime, foi um dos casos mais importantes na minha formação. Eu ainda era estudante quando a conheci. Era uma mulher da classe trabalhadora da Carolina do Norte sem antecedentes criminais que tirou suas únicas férias com um cara que não conhecia bem no norte do estado de Nova York. Depois do fim da viagem, dois anos e meio depois, bateram na porta do trailer dela na Carolina do Norte. Era a polícia de NY perguntando onde ela estava em 11 de agosto de 1973, e ela respondeu: “Utica, NY.” Perguntaram se estivera num posto de gasolina, mostraram a foto, e ela disse que talvez. Ela foi presa e acusada de cumplicidade no homicídio e roubo de um jovem frentista. Foi um assassinato brutal. Ele foi degolado para facilitar o roubo de uns U$ 200 num posto de gasolina isolado às margens de uma rodovia. As provas contra ela eram principalmente duas: o fato de ela ter viajado com esse sujeito muito suspeito e uma testemunha, que tinha estado no posto perto da hora do crime e avistado um carro do outro lado da bomba. Dois dias depois do crime, a polícia pediu que ele descrevesse os ocupantes do carro. Ele disse que não sabia se a pessoa no carro era homem ou mulher, o penteado o tinha impedido de ver o rosto da pessoa, não sabia o sexo nem esclareceu nada sobre constituição, cor da pele, nada…

Luís Fernando Silva Pinto — Era só uma pessoa no carro.
Abbe Smith —
Só isso. Três anos e meio depois, ele identificou Patsy Kelly Jarrett. O júri, por algum motivo, acreditou nele. Eu acho essa identificação surreal. É uma das piores identificações de que tenho notícia. A pessoa não teve nenhuma chance de observar. Se a polícia me pedisse hoje para identificar alguém enchendo o tanque na minha frente num posto, eu seria incapaz de identificar precisamente a pessoa. Mas com base no testemunho e no fato de ela conhecer o suspeito, ela foi condenada por homicídio e roubo e sentenciada à prisão perpétua. Ela cumpriu 28,5 anos. No 1° ou 2° ano, como esses casos às vezes avançam no sistema muito lentamente, recebi um telefonema da professora com quem eu havia trabalhado no caso, que me disse: “Ótima notícia: o pedido de Habeas Corpus que fizemos quando você estava na faculdade foi apreciado e vencemos. Um juiz federal de NY decidiu em nosso favor que o testemunho daquele homem que mal viu a pessoa no carro não deveria estar nos autos nem ter sido aceito como prova, e o tribunal ordenou que o governo de NY ou repetisse o julgamento de Patsy ou a libertasse.” Então havia uma janela de oportunidade antes que o governo decidisse repetir o julgamento ou…

Luís Fernando Silva Pinto — Então ela foi libertada.
Abbe Smith —
Não foi.

Luís Fernando Silva Pinto — Por quê?
Abbe Smith —
Continuou presa porque o governo solicitou. Porque a justiça é muito lenta, resumindo. Mas no intervalo entre a nossa vitória e o governo decidir entrar com um recurso na instância superior, o Tribunal Federal de Apelações, o estado de NY fez uma oferta a ela: se ela se declarasse culpada, a sentença dela mudaria para pena já cumprida.

Luís Fernando Silva Pinto — Ela seria solta.
Abbe Smith — Àquela altura, ela havia passado dez anos num presídio de segurança máxima. Portanto sabia exatamente o que significava estar presa. É muito tempo de encarceramento. E ela recusou. Acho que isso é uma prova da inocência dela, porque nenhum culpado que já representei recusaria a oferta de assumir a culpa e ser libertado. Nenhum culpado recusaria isso. Por quê? Seria libertado!

Luís Fernando Silva Pinto — Mas um inocente poderia.
Abbe Smith —
Um inocente poderia. Há um paradoxo profundo e terrível nisso. Por um lado, é de se tirar o chapéu. É admirável. Ela estava disposta a cumprir mais 18,5 anos, quase 30 anos no total, por princípio, por ser inocente.

Luís Fernando Silva Pinto — E a Srta. Cooper?
Abbe Smith —
A Srta. Cooper é o outro lado da moeda. Uma de minhas clientes preferidas até hoje. Ela era acusada de prostituição, e os fatos do caso eram notórios e jamais foram postos em dúvida. A Srta. Cooper teria se oferecido para praticar sexo oral num policial disfarçado em troca de frango frito. Só que ela estava em condicional por algum outro delito, e a condenação nesse caso de prostituição seria uma violação da condicional e resultaria em prisão. Então nos esforçamos para colocá-la num programa alternativo, para passá-la para um tribunal de saúde mental, que desvia o caso do tribunal comum e permite que a pessoa receba tratamento mental e fique longe de encrencas.

Luís Fernando Silva Pinto — Como uma apelação.
Abbe Smith —
Mais ou menos. Para sair do sistema, mas ela vivia vacilando no programa, que exigia exames de drogas, manter compromissos… E ela era reprovada nos exames, uma vez foi acusada de ter bebido muita água para invalidar o exame, mas os examinadores sabem disso. Então ela não se enquadrava e o juiz foi perdendo a paciência até que ordenou que o caso voltasse à justiça comum e revogou os benefícios do tribunal de saúde mental. Pobre Srta. Cooper… Eu gostava muito dela. Ela era um amor, e isso mostra que há uma pessoa por trás do crime. Eu sei que esse não era um crime muito grave, não era hediondo, então não fui desafiada da forma como outros advogados são, mas a Srta. Cooper ilustra como muitos criminalistas funcionam. Eu realmente gostava dela. Você simpatiza com certas pessoas. Há pessoas boas e más em todas as áreas, em todas as profissões, e ela era um amor. Sempre me recebia com um abraço apertado e me chamava de “Srta. Abbe”, como se eu fosse uma senhora de escravos. E dizia que já me conhecia, que eu era conhecida como uma ótima advogada. Duvido. Ela certamente nunca tinha ouvido falar de mim. Não sou esse tipo de advogada, mas ela era encantadora. No final, o oficial da condicional dela não incluiu o novo crime no relatório. Acho que a Srta. Cooper também o conquistou. E a juíza do tribunal criminal também não mandou prendê-la, apenas deu uma sentença probatória. E acho que a Srta. Cooper também a conquistou. Às vezes a vida é complicada, as pessoas são complicadas.

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