Comoção social

Penas descalibradas e leis nascidas do casuísmo exigem malabarismo de juízes

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17 de novembro de 2014, 6h31

O tipo previsto no artigo 273 do Código Penal, punindo as condutas de falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais sofreu séria alteração em seu preceito secundário por conta da chamada Lei dos Remédios — Lei 9.677/98, aprovada pelo Congresso Nacional em 2 de julho de 1998 — quando passou a estabelecer uma pena de reclusão de 10 a 15 anos, além de multa (na redação anterior, o tipo estabelecia uma pena de 1 a 3 anos de reclusão, além de multa) para quem viesse a praticar aqueles núcleos descritos.

Não fosse a substancial alteração trazida em sua nova roupagem condenatória, talvez sua aplicabilidade não despertasse tanta perplexidade como se detecta hoje na comunidade formada pelos aplicadores da lei, de uma forma geral, e também por especialistas. De fato, com a edição daquela lei, no ano de 1998, a pena mínima desse ilícito passou a ser elevada em dez vezes e a máxima em cinco, circunstância merecedora de efetiva reflexão.

A Lei dos Remédios foi concebida num momento de especial comoção social, quando a empresa Schering do Brasil veio a produzir determinado lote do medicamento anticoncepcional, o Microvlar, de conteúdo totalmente ineficaz.  Tudo teve início quando, em 20 de maio de 1998, esta empresa recebeu uma carta anônima, na qual se lia que um lote de seu produto mais vendido, o citado anticoncepcional Microvlar, havia saído da fábrica com as pílulas adulteradas. A carta foi acompanhada por uma cartela, com os tais remédios. Pela explicação técnica, eram remédios neutros, sem componentes ativos, ou seja, sem os hormônios que impedem a gravidez. Eram pílulas de farinha.

Como previsível, após a ingestão regular do medicamento adulterado, um determinado número de mulheres acabou por engravidar, o que ocasionou o ajuizamento de várias ações de indenização contra a empresa Schering.

De qualquer forma, ao lado deste caso, inúmeros outros medicamentos vendidos em nosso país também sofreram falsificações em suas fórmulas (Trioxina, Tandrilax e outros). Tendo em vista, pois, o combate a estas práticas é que foi editada a Lei 9.677/98, a qual passou a prescrever elevadas sanções para as condutas acima descritas, quais sejam falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais.

O casuísmo, concebido aqui como o envolvimento emocional da população acerca de fatos ocorridos e divulgados, num determinado momento histórico, foi um fator determinante para a edição de muitas normas, inclusive penais.

Lembramos aqui a própria lei 8.072/90, que dispõe sobre os crimes hediondos, cujo projeto original — Projeto de Lei 5.281/89 — estabeleceu o regime integralmente fechado para determinados crimes, como o de extorsão mediante sequestro, vedando, ainda, o livramento condicional, a anistia, a graça e a possibilidade fiança.

Os importantes meios de comunicação da época e a opinião pública passaram a exigir do Congresso maior rigor no combate a estes delitos, particularmente após o sequestro dos empresários Abílio Diniz (1989) e Roberto Medina (1990). A edição daquela lei pretendeu ser uma resposta a esse clamor manifestado amplamente pela mídia.

O crime de homicídio doloso, por sua vez, de incidência visivelmente recorrente nas classes mais pobres da população, de outro lado, passou a ter tratamento jurídico exasperado por conta da aprovação de um projeto de lei, no ano de 1994, que veio a alterar a Lei 8.072/90 — cujas assinaturas foram capitaneadas pela autora Glória Perez — alteração esta que fez incluir, entre os crimes hediondos, o homicídio qualificado (mediante paga ou promessa, por motivo fútil ou pelo emprego de meios cruéis).

De volta ao tema, ao estabelecer uma pena mínima de 10 e uma máxima de 15 anos de reclusão para o artigo 273 do CP, o legislador aproximou estes dois limites de privação de liberdade de tal forma que na verdade os diluiu, tornando-os inócuos.

No homicídio simples (artigo 121), por exemplo, a pena mínima é fixada em seis anos, o que faz gerar certa perplexidade quando nos debruçamos sobre o bem jurídico protegido por estes dois tipos penais. A pena mínima do homicídio qualificado — reclusão de 12 anos — também se aproxima daquela encartada na lei dos remédios.

Por outro prisma, a apenação mínima firmada pela lei 1.343/06, reprimindo o tráfico de entorpecentes, estabelece um patamar correspondente à metade daquela em estudo.

Efetivamente, o crime de tráfico de substâncias entorpecentes também passou a ter novo tratamento em nosso contexto jurídico. No que diz respeito ao dispositivo sancionatório, verificamos que Lei 6.368/76 estabelecia, em seu art. 12, pena de 03 a 15 anos de reclusão, além da multa. A lei revogadora — Lei 11.343/06 de 26 de Agosto de 2006 — veio a exasperar a pena mínima deste sério delito, passando, então, a fixar uma condenação de cinco a 15 anos de reclusão, além da mencionada multa.

O aumento vertiginoso do tráfico de entorpecentes na última década, impulsionado por estruturadas organizações criminosas — camuflando a prática ilícita com a lavagem de ativos na aquisição imóveis urbanos e rurais, aeronaves, gado e outros bens valiosos — acabou por despertar na sociedade a expectativa direcionada à elaboração de uma legislação penal mais firme e, ao mesmo tempo, mais abrangente do ponto de vista da política criminal, resultando, assim, na edição da citada Lei 11.343/06.

A par deste grave panorama estampado, podemos constatar que a nova lei acabou por aumentar a pena mínima do delito do tráfico de entorpecentes em apenas dois anos (de três para cinco anos de reclusão), mantendo, entretanto, a máxima no patamar original, ou seja, no mesmo da lei revogada.

Ainda que a exasperação da pena mínima possa transparecer, a princípio, como de pouca monta, por outro ângulo, somos forçados a reconhecer o caráter flexível daquele texto penal especial, quando viabiliza a individualização da pena do agente em razão da quantidade ou qualidade da droga (artigo 42); da transnacionalidade do tráfico (artigo 40, inciso I), ou mesmo por meio de inúmeras outras contingências, como a prática do delito em estabelecimentos de ensino ou em transportes públicos (artigo 40, inciso III).

Esta lei prevê, ainda, a possibilidade de amenização da situação penal do agente, seja pelo expediente da delação premiada (artigo 41) — quando colaborar voluntariamente com a investigação policial ou processual na identificação de outros autores, com a redução da pena de 1/3 a 2/3 — ou também daquele transportador eventual da droga, como se dá em relação às denominadas mulas, fixando o parágrafo quarto, do artigo 33, uma fração móvel de 1/6 a 2/3 como causa de diminuição da pena, caso não integre organização criminosa e nem se dedique a atividades criminosas. Normatiza, de igual forma, a situação do dependente químico, quando constatado, isentando-o de pena (artigo 45).

Ou seja, esta legislação antidrogas municia efetivamente o magistrado a dosar, de forma justa e criteriosa, o enquadramento criminal do agente, mediante a utilização de mecanismos ínsitos no próprio texto, estabelecendo, destarte, o adequado equilíbrio na individualização da pena.

Realmente, não se busca apenas no aspecto quantitativo da pena o único meio eficaz à repressão do delito praticado. Isto se faz efetivar, sim, pelo caminhar racional do processo dentro do tempo razoável de duração, e também pela adequação da reprimenda ao caso sob análise, no prisma do ordenamento penal-constitucional.

Por isso, não é demais destacar que esta legislação especial (11.343/06), a par de todas as saudáveis críticas, possui também virtudes indiscutíveis.

Retornando à análise do aspecto incriminador do artigo 273 do Código Penal, é fácil perceber que a equivocada técnica legislativa de seu preceito secundário — firmando pena de 10 a 15 anos de reclusão — não se traduz, tão somente, por infração à ordem constitucional, com violação aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade.

Este dispositivo penal em estudo (artigo 273) também peca por não prever necessárias causas especiais, sejam de diminuição ou aumento, ou qualquer outro mecanismo jurídico que venha permitir ao aplicador da lei uma adequada individualização da pena do agente, redundando, em verdade, no “engessamento” da análise judicial.

Com razão, sem meios técnicos para calibrar adequadamente a condenação final daquele agente que importou remédios ou cosméticos em quantidade irrelevante socialmente, restará ao aplicador da lei a prolação de uma sentença tecnicamente petrificada, ferindo as garantia do devido processo legal (CF, artigo 5º, inciso LIV).

De se observar que a norma em comento não estabelece qualquer conseqüência jurídica em caso de lesão corporal ou mesmo de morte, causadas pelo uso de medicamento ou cosméticos adulterados ou falsificados. O texto é aberto e empobrecido de critérios.

A redação do próprio dispositivo em exame nos apresenta outras situações postas à serena reflexão: no parágrafo 1º-A, ficam incluídos entre aqueles produtos sujeitos à apenação mínima de dez anos de reclusão os cosméticos.  Ora, cosméticos, pelo léxico, “são substâncias ou tratamentos aplicados à face ou a outras partes do corpo para alterar a aparência, para embelezar ou realçar o atrativo da pessoa”.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no que tange aos cosméticos, possui listas dos produtos que têm autorização para sua comercialização, especificando-os e descreve, ainda, seus variados tipos: Produtos de 1º Grau (água de colônia, aromatizante bucal, baton labial, corretivo facial, creme, loção e gel para o rosto, desodorante axilar e outros) assim como Produtos de 2º Grau (blush, bronzeador, condicionador anticaspa, depilatório químico, desodorante de uso íntimo, esmalte para unhas infantil e outros). 

Com a devida propriedade, René Ariel Dotti adverte que “a possibilidade, ao menos em tese, de se punir a adulteração de um produto para a limpeza de pele com pena de reclusão de dez a 15 anos, além de multa, chega às raias do absurdo. (Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre, v. 1, p. 51, maio de 2000).

O grande problema que se enfrenta em relação a normas com esta configuração técnica é o contraponto a se fazer quanto à aplicação das garantias constitucionais postas ao agente, a fim de que sua pena reste devidamente individualizada.

Como solução paliativa, alguns órgãos do judiciário desclassificam este delito para a figura do contrabando ou aplicam, em caso de condenação, o preceito secundário verificado nos crimes de tráfico de entorpecentes e substâncias ilícitas, cuja pena mínima é da metade.

Não é demais lembrar, neste passo, que o delito narrado neste caput do artigo 273 do CP — assim como o contido no parágrafo 1º-A, onde se inserem os cosméticos — é tido como crime hediondo, assim capitulados na Lei 8.072/90, inciso VII-B (Lei dos Crimes Hediondos), obtendo, por isso, um tratamento mais rigoroso por nosso ordenamento processual penal.

É sabido que uma sociedade para ser considerada justa pressupõe, necessariamente, que todas as normas e demais atos expedidos pelos Poderes Constituídos sejam dotados de razoabilidade, racionalidade e proporcionalidade. Esta é, aliás, a essência substancial da garantia do processo legal.

Vê-se, pois — diferentemente do que sempre ocorre em situações normais — que o afogadilho legislativo da época possa ter comprometido, de alguma forma, o sentido punitivo desta norma penal, com expectativa de caráter duradouro e eficaz.

Penas descalibradas e em confronto com o contexto penal geral, trouxeram à tona a reflexão sobre a real efetividade de leis nascidas do casuísmo ou do impulso emotivo da população, num dado momento histórico. O juiz, em casos tais, exerce o malabarismo jurídico que o contexto histórico exige, na tentativa de resguardar a qualquer custo seu ofício técnico, mesmo que algemado por textos legais por vezes intransponíveis.

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