Segunda Leitura

Eleições diretas para presidentes de tribunais, de sonho a pesadelo

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

16 de novembro de 2014, 8h12

Spacca
Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Emenda Constitucional 187/12, do deputado Wellington Fagundes (PR-MT), que permite a todos os juízes vitalícios votarem e elegerem os presidentes dos Tribunais de segunda instância.

A reforma atingiria  27 tribunais de Justiça, 5 tribunais regionais federais, 24 tribunais regionais do trabalho e 3 da Justiça Militar Estadual, totalizando 59.  Os tribunais superiores, com sede em Brasília, e os tribunais regionais eleitorais ficariam fora da reforma. Ela traz consigo o simpático título de “democratização interna do Poder Judiciário”.

A PEC trata de assunto interno da magistratura, reivindicação das associações de classe. A resistência a esta transformação fica por conta apenas de parte dos atuais desembargadores dos tribunais de segunda instância. Não há resistência da Ordem dos Advogados do Brasil,  Ministério Público,  Advocacia Geral da União, Defensoria Pública e outros órgãos.

Mas será que isso é bom?

O assunto é polêmico, nele penso há mais de dez anos e sempre com dificuldades de chegar a uma conclusão. Um “to be or not to be” shakespeariano, vestido com a toga da magistratura.

Para os 16 mil magistrados brasileiros, certamente a resposta é um enfático sim. E 98% deles fazem esta afirmativa com plena convicção de que os tribunais seriam administrados com mais eficiência, por gente mais jovem e adaptada aos novos tempos. Os 2% restantes apoiam, de olho na possibilidade de serem eleitos, já que, por não estarem no topo da lista de antiguidade, as eleições diretas seriam a única maneira de se chegar à cúpula.

O argumento a favor seria a má administração por alguns presidentes de Tribunais.  Realmente, até poucos anos atrás respeitáveis senhores à beira da aposentadoria compulsória assumiam o comando do Tribunal como uma homenagem que lhes era prestada ao fim da carreira. E lá ficavam a repetir práticas seculares, opondo-se às inovações tecnológicas e às mudanças da sociedade.

Hoje isto não corresponde à verdade. Os tribunais mudaram, alguns por força da imposição do CNJ, outros simplesmente por pressão da sociedade. Todos abriram-se mais à sociedade, criaram ouvidorias, setores de comunicação social, sites mais modernos, Justiça itinerante, enfim, uma série de medidas que os colocam em consonância com o século XXI.

Os presidentes não são mais provectos senhores de ternos pretos, óculos de aro, barba branca e bengala. São administradores mais novos, afinados com as mudanças da sociedade, cheios de vontade de acertar. Se alguém disto duvida, basta citar três exemplos: Renato Nalini no TJ-SP, Guilherme Gomes no TJ-PR e José Aquino no TJ-RS.

Mas o que haveria contra a eleição direta por todos os juízes?

Primeiro, a politização em um Poder de Estado que não deve ser politizado. A candidatura de um pretendente significaria campanha. E lá iria o desembargador a percorrer o seu estado em visitas aos eleitores, muita festa, churrasco, promessas, compromissos de lutar por isso ou por aquilo. O vínculo criado com os apoios certamente o tornaria refém de concessões de vantagens. Alguns exemplos: “vamos aumentar o percentual de 1/3 de férias para 50%, instituiremos o auxílio-educação, criaremos um setor de apoio psicológico aos magistrados depressivos, o valor das diárias será elevado, as férias poderão ser partilhadas e, se não gozadas, pagaremos em dinheiro, lutaremos para que as metas do CNJ tornem-se mais flexíveis e outras tantas benesses que a criatividade humana (não só dos juízes) possa imaginar.

Segundo, os resquícios das eleições. Claro que na campanha haveria ataques pessoais. Isto faz parte de qualquer campanha. Passadas as eleições, ficariam abertas as feridas, ressentimentos por toda uma vida.

Terceiro, a inevitável desforra dos vencedores. Assim que houvesse oportunidade, o vencedor ou o seu grupo, mesmo contra a sua vontade, cairia na tentação de dar um tratamento mais severo (perseguir?) àquele que bancou a campanha do opositor. Seus pedidos seriam encarados com o rigor proporcional ao empenho na campanha do adversário. Afinal, magistrados são humanos e sujeitos a todos os defeitos, ainda que possa haver um ou outro que se considere Deus.

Quarto, os serviços judiciários sofreriam enorme prejuízo. Sim, porque mal fosse eleito um para o mandato de dois anos já se iniciaria a campanha pela sucessão. Telefonemas, viagens, redes sociais, e-mails, tomariam as tardes de boa parte de juízes e desembargadores. E os processos ficariam à espera de melhor oportunidade. Evidentemente, isto jamais seria mensurado, certamente nem discutido. Correria por conta do atraso da Justiça, cujas razões nunca são estudadas em profundidade, resumindo-se na surrada menção a muitos processos e poucos servidores.

Quinto, campanhas implicam em dinheiro. Imagine-se um candidato a presidente do TRF percorrendo vários estados, subseções do interior. Um candidato a presidente do Amazonas percorrendo enormes distâncias de barco. Ou o candidato do TRT da 3ª Região (MG), atravessando do Triângulo Mineiro ao Vale do Jequitinhonha. Quem arcaria com os custos dessas campanhas? Será que o candidato se valeria da estrutura do Tribunal ? Por exemplo, o diretor da Escola da Magistratura faria viagens desnecessárias, com direito a transporte e diárias, para o fim de conquistar votos?  Os partidos políticos dariam apoio aos seus candidatos? Afinal, ao governador interessa ter um presidente de tribunal aliado. E os bancos, teriam seus candidatos? Os movimentos sociais? E as organizações criminosas, sabidamente bem mais organizadas que o Estado, dariam sua parcela de colaboração?

Sexto, não me consta que algum país do mundo adote tal sistema. Na maioria deles a indicação é feita pelo Poder Executivo. Em alguns, como a Espanha e a Itália, por Conselhos de Justiça. Muito embora possamos nos orgulhar de sermos um povo criativo, inovador, merece reflexão o fato de que da hibernal Finlândia ao acalorado Moçambique ninguém tenha adotado este sistema de eleição.

Sétimo, se a justificativa é a democratização interna do Poder Judiciário, o que justifica a proposta de apenas os juízes votarem? Os servidores também fazem parte do sistema, para não falar dos terceirizados ou dos estagiários. A passar a proposta, incluindo os juízes de primeira instância, na semana seguinte virá a reivindicação de sindicatos de servidores no mesmo sentido. E também será inevitável discutir a eleição de juízes, pondo fim aos concursos.

O que tudo isto pode resultar é uma politização de um Poder de Estado que não deve, nem pode, ser politizado, que precisa ser e aparentar ser imparcial. Obviamente nenhum juiz é absolutamente neutro, mas, nos limites do possível e da falibilidade humana, ele deve procurar ser neutro. E isto exige uma postura diferente da dos políticos, uma postura que não é melhor nem pior, só é e tem que ser diferente.

Nem se argumente com a experiência do Ministério Público estadual, que elege seus procuradores gerais. A uma, porque nunca vi demonstração de que isto tenha sido bom. A outra, porque promotor ou procurador da República não são juízes, pertencem a carreiras mais livres, são partes ou fiscais da lei, não decidem.

Em suma, aí está a minha opinião. É evidente que a eleição de presidente de tribunal não pode mais recair no mais antigo, como aliás já não vem sendo feita nas cortes maiores. Mas, daí a passar por eleições gerais é cair no outro extremo. Com esta manifestação, que sei ser polêmica, desejo apenas colaborar para o aprofundamento do tema, fugindo do imenso e crescente rol dos que nada dizem, nada fazem e depois reclamam.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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