Reabertura democrática

"Com consolidação da democracia, é natural que sociedade se divida"

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15 de novembro de 2014, 8h52

Spacca
Quando assumiu a presidência do Tribunal Superior Eleitoral, em abril de 1989, o ministro Francisco Rezek sabia da missão que o aguardava nos meses seguintes: chefiar as primeiras eleições presidenciais do Brasil depois de 25 anos de ditadura. E, neste sábado (15/11), completam-se exatos 25 anos que o país ia às urnas pela primeira vez desde a abertura “lenta, gradual e segura” para escolher seu presidente da República.

Depois de um quarto de século de repressão, foi em um feriado de Proclamação da República que 82 milhões de brasileiros puderam escolher entre 21 candidatos, das mais diferentes correntes e tendências ideológicas. A eleição foi para o segundo turno, Fernando Collor venceu Lula e o resto é história.

Rezek vê a democracia brasileira como algo irreversível, mas precisa de alguns ajustes nos meios que a consagram. As ponderações do ex-ministro não param por aí. Ele acha que o Brasil precisa de uma reforma política, embora não nutra grande simpatia pelo plebiscito prometido pelo governo — um referendo ao trabalho legislativo do Congresso funcionaria melhor, diz. Identificou nas manifestações de junho de 2013 uma aversão aos partidos políticos, apesar de temer que qualquer restrição à criação de novas legendas prejudique o pluralismo.

Foram cinco horas de uma conversa que não cabe em um único texto — clique aqui para ler a segunda parte. A importância de efeméride impõe o óbvio recorte sobre a história política recente. Mas sua área de especialidade é o Direito Internacional: como chanceler, ajudou a formatar o Mercosul junto com seus colegas da Argentina, Uruguai e Paraguai. Como juiz, atuou na Corte Internacional da Haia por dez anos, até 2006.

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Seja como ministro do Supremo Tribunal Federal ou das Relações Exteriores — cargo que assumiu já no governo Collor, em 1990 — Francisco Rezek sempre esteve próximo do poder naquela agitada virada de década. O que aconteceu antes, durante e depois daqueles anos, e como o Brasil vem caminhando desde então, ele conta nessa entrevista exclusiva à revista Consultor Jurídico.

Leia a entrevista:

ConJur — Como foi o ano de 1989 para o senhor?
Francisco Rezek — Costumo referir-me a 1989 como a primeira eleição realmente livre e democrática da história do Brasil: a primeira em que não havia nenhuma proibição constitucional ideológica, e todas as variantes do espectro político brasileiro puderam estar ali representadas. Até mesmo as mais frágeis. O tribunal vivia dias de entusiasmo, você não imagina o clima no Tribunal Superior Eleitoral naqueles momentos. Todos os principais candidatos nos visitaram. Leonel Brizola era nosso mais frequente visitante. Volta e meia vinha do Rio trazendo seus assessores, com sugestões e alertas relacionados à apuração e à totalização — muito por conta do velho episódio Proconsult. Gato escaldado tem medo de água fria. Quase tudo que ele sugeriu foi aceito. Lula foi lá uma ou duas vezes mas a equipe de jovens advogados petistas presentes nas sessões públicas do tribunal era de uma atenção absoluta, todos sempre na primeira fila. O vice de Lula, José Paulo Bisol, era um jurista ilustre e tinha diálogo mais frequente conosco. Fernando Collor foi à corte uma única vez, sozinho, e isso chamou atenção do tribunal à época.

ConJur — Como foi esse encontro?
Francisco Rezek — A visita de Fernando Collor tinha um objetivo único e claríssimo: ele disse que andavam circulando queixas contra sua campanha, de que ele era agressivo. Ele queria demonstrar que se outros candidatos tinham queixas dele, ele tinha razões maiores para também se queixar. Disse que tinha na pasta recortes de jornais, revistas e publicações dos mais variados pontos do país e que gostaria que o tribunal tomasse conhecimento disso, não para fazer algo, mas para que não ficasse na memória da corte uma injustiça contra ele.

ConJur — Foi uma campanha dura.
Francisco Rezek — Nós atendemos a vários pedidos de direito de resposta. O maior deles foi já na reta final, de cinco minutos — o que, em televisão, é uma eternidade — concedidos ao candidato Lula. Foi por conta do episódio Miriam Cordeiro, quando a propaganda de Fernando Collor pôs no ar a moça dizendo que engravidou, que ele quis pressioná-la a fazer um aborto e coisas do gênero. Não havia ali nenhuma falsidade. Era difícil falar em algo calunioso, sequer injurioso, na medida em que puseram no ar uma moça queixando-se de um drama familiar da juventude. Mas nossa conclusão foi a de que nos pareceu de tal maneira cafajeste o uso daquilo na propaganda eleitoral que era preciso conceder um tempo de resposta. Consideramos aquele procedimento reprovável ao extremo, odioso mesmo. Mas Lula usou muito mal o tempo concedido, diga-se de passagem. Ele se limitou a aparecer na tela com cara queixosa dizendo “essa mulher quis me prejudicar, essa mulher isso e aquilo”. Achamos uma lástima o uso inabilidoso que ele fez daqueles cinco gigantescos minutos.

ConJur — O episódio Sílvio Santos também ficou marcado.
Francisco Rezek — Foi o mais importante de todos. Certo Partido Municipalista Brasileiro queria substituir a candidatura de Armando Corrêa, com sua concordância, pela de Sílvio Santos. Quando circulou essa notícia foi ao tribunal para perguntar quando seria possível saber se ele seria candidato ou não. Estávamos a duas semanas do primeiro turno e anunciei que o tribunal iria deliberar na sessão seguinte. A substituição era prevista em lei, mas os demais partidos impugnavam aquela candidatura. Veja qual era a equação jurídica na época: Qualquer conhecedor da Constituição sabia que o problema essencial estava no candidato, dono e regente de um meio de comunicação de massa, e por isso inelegível. Era então um impedimento constitucional. Mas surgiu outro problema em nível de lei ordinária. Os outros partidos descobriram que o PMB estava em situação irregular. Eu não queria que o eleitorado atravessasse o último fim de semana anterior ao primeiro turno sem saber quem era e quem não era candidato. Essa irregularidade do partido afinal foi uma benção: se ela fosse comprovada, o partido não poderia sequer continuar com a candidatura de Armando Corrêa e muito menos substituí-la.  A questão termina no TSE, sem recurso possível ao Supremo, que levaria a incerteza até a véspera do pleito. Todos chegamos à mesma conclusão, que era óbvia: o partido realmente estava em situação irregular.

ConJur — O senhor mencionou o caso Miriam Cordeiro. O que achou do posicionamento recentemente adotado pelo TSE de julgar se as campanhas no horário gratuito da TV estão sendo propositivas ou ofensivas?
Francisco Rezek — Tenho muita dificuldade em reprovar isso. Achei que o tribunal quis ser construtivo e, pelo que sei, conseguiu até um acordo entre os dois candidatos [Dilma Rousseff e Aécio Neves] no sentido de baixar o tom. Claro que o tribunal se expõe quando ele dá ares de proceder como um bedel de escola antiga. Acho que o tribunal manifestou boa vontade, tentou ser construtivo e obteve sucesso na medida em que ele fez realmente baixar o tom.

ConJur — Não se aproxima de alguma forma de censura?
Francisco Rezek — Não, porque foi algo perfeitamente acordado entre as partes. De censura acusou-se determinado ministro por conta da questão da publicidade da capa da revista Veja do último fim de semana da campanha.

ConJur – Como o senhor avalia esse episódio?
Francisco Rezek – Não sei. É difícil a posição de um magistrado quando se vê diante de um pedido de liminar em uma hora crítica como essa. Eu não teria cerceado nenhuma forma de publicidade, mas também não acho que seja uma coisa indefensável o que ele fez.

ConJur – Os debates de hoje são criticados por serem vazios de conteúdo político. Dizem também que os candidatos ficam muito amarrados pelas regras eleitorais e pelas orientações dos marqueteiros. Concorda?
Francisco Rezek – Não sei se eu diria isso. Recordo um debate na eleição de 2006 entre Alckmin e Lula, o debate do segundo turno, em que eles se movimentavam de pé. Pelo menos a coreografia do debate revelava uma espontaneidade maior. Não creio que não seja possível tirar do debate uma série de conclusões a respeito da qualidade de cada candidato. Quanto à eficácia dos marqueteiros, creio muito mais nessa eficácia no que diz respeito às campanhas de rua, à contratação ou aliciamento gratuito de pessoas que podem de algum modo ajudar na campanha. O marqueteiro aí tem um papel importantíssimo, mas não acho que no debate ele seja decisivo.

ConJur – As emissoras deveriam poder deixar de convidar candidatos de menor expressão?
Francisco Rezek – Sem dúvida, mas isso pode ser feito mudando a lei.

ConJur – A Justiça Eleitoral interfere demais na vontade do eleitor, na imprensa?
Francisco Rezek – Não acho que, como gerente, ela seja muito invasiva. Ela se contém na justa medida. Os erros que ela comete, comete como julgadora.

ConJur — Por exemplo?
Francisco Rezek — Falando como advogado, e não como juiz que fui, a maior decepção que a Justiça Eleitoral me causou foi quando o Tribunal Superior Eleitoral cassou o mandato, já então exercido pela metade, do doutor Jackson Lago, governador do Maranhão, para oferecê-lo numa bandeja à senhora Roseana Sarney, segunda colocada — o nome exato é perdedora da eleição. Fui advogado de Jackson Lago, que afinal sucumbiu diante do trator que é a oligarquia Sarney. Não me lembro de nenhum erro tão clamoroso.

ConJur — O que aconteceu, na sua avaliação?
Francisco Rezek — O caso Jackson Lago retratou a disfunção que é possível na Justiça Eleitoral. Em parte por obra do acaso, em parte por obra da falta de lógica no comportamento da própria Justiça Eleitoral e do Ministério Público. Parecia que o Ministério Público Eleitoral daquele momento estava, de algum modo, pautando a agenda do TSE. Porque se ele não o estivesse fazendo, ele poderia, com pareceres dados em momentos certos e simultâneos, deixar que o tribunal examinasse ao mesmo tempo as reclamações que a candidata perdedora tinha contra o vencedor e vice-versa. Na pior das hipóteses para Jackson Lago, e na melhor das hipóteses para Roseana Sarney, ele teria seu mandato suprimido, não em favor dela mas em favor da convocação de novas eleições. Pretendo escrever um dia sobre o que foi aquele episódio.

ConJur – O ministro Toffoli disse recentemente que as campanhas deveriam ser encurtadas. O que acha dessa ideia?
Francisco Rezek – Acho que poderia ser menos tempo. E creio que o ministro Toffoli se inspira no exemplo de outras democracias que têm um calendário eleitoral mais compacto. Se o período de campanha fosse mais concentrado do que é no Brasil, as sequelas que ficam para os dois lados seriam menores.

ConJur — A Lei Eleitoral é suficiente para as manifestações na internet?
Francisco Rezek — Esse fenômeno não atinge só o processo eleitoral. Não vejo com muita facilidade um caminho. Nós temos um valor constitucional a preservar, que é a liberdade de manifestação do pensamento e o Estado não pode se entregar a uma atividade de censura permanente. É possível que dentro do próprio cenário eletrônico se desenvolva um sentido de autocrítica, de sensatez, e a coisa tenda a se corrigir por si mesma com o abandono, a condenação coletiva de tudo aquilo que existe de mais estúpido, às vezes, não sob anonimato, mas com cara e nome do delinquente que está ali escrevendo, quase sempre mediante pecúnia.

ConJur – Acha que isso tem funcionado?
Francisco Rezek – Não. Isso vai acontecer quando chegarmos a um ponto de saturação. As coisas ainda vão piorar um pouco mais.

ConJur – Mas a matriz disso é a mesma de 1989.
Francisco Rezek – Sim, mas o alcance que isso tem hoje com a internet é muito maior.

ConJur – O período eleitoral impõe uma série de restrições à administração pública. Como evitar que isso seja um empecilho para o funcionamento do Estado? Isso não está mal equalizado?
Francisco Rezek – Isso exige um trabalho inteligente do Congresso Nacional, que ele até hoje não teve tempo de fazer.

ConJur – Não teve tempo ou vontade?
Francisco Rezek – O Congresso não teve como fazer porque não considerou isso prioritário. A maior força de pressão para corrigir essas disfunções legais é aquela que virá sempre do governo, que não quer se ver proibido de governar por causa do calendário eleitoral. É possível administrar isso com sensatez, estabelecendo normas inteligentes. Nós sabemos que, em período eleitoral ou não, a corrupção está sempre à espreita e os meios de coibi-la devem ser permanentes.

ConJur – Voltando no tempo, antes de chegar a 1989, por que a Emenda Dante — que buscava a eleição direta já em 1985 — não passou? Quem trabalhou contra?
Francisco Rezek – Aquela derradeira manifestação de poder pelo regime militar, que não queria as diretas tão cedo, contou com a acomodação da oposição quando esta se deu conta de que uma última eleição ainda pelo Congresso resultaria em algo muito parecido com o que mostrariam as urnas se a eleição fosse direta.

ConJur — Então a oposição achou mais seguro aquilo que um enfrentamento maior?
Francisco Rezek — Sabiam que o candidato de oposição era o mesmo que se sagraria das urnas se as eleições fossem diretas. Ninguém acha que Lula da Silva seria eleito numa eleição direta naquele momento. Se não tivesse havido a eleição indireta de Tancredo Neves, que efetivamente aconteceu, teríamos uma eleição direta e o eleito seria o próprio.

ConJur – O sinal que ficou não foi se que o Congresso virou as costas para o clamor popular?
Francisco Rezek – O Congresso não via como fazer diferente, e deve ter achado prudente não chutar o balde.

ConJur – Falando de oposição, como o senhor avalia o quadro hoje?
Francisco Rezek – Só nestes últimos meses se viu levantar uma frente de oposição, gerando um debate acalorado e concentrado na crítica ao poder estabelecido há 12 anos. Até poucos meses atrás todos diziam que não existe oposição neste país. Ante um governo falho, de duvidosa competência, de duvidosa honestidade, ainda assim não tínhamos oposição.

ConJur – Porque está assim?
Francisco Rezek – Nunca se entendeu. As candidaturas de Marina Silva e de Aécio Neves, na reta final, levantaram um sentimento oposicionista que andava adormecido, sabe Deus por quê. Nada teria sido mais fácil do que fazer oposição nos últimos doze anos. Mas tenho a impressão de que a negligência, a preguiça, foram os fatores dominantes. Talvez por achar-se que o Poder Judiciário, no contexto do processo penal repetidamente instaurado contra a administração petista, já seria a força de resistência bastante que inspiraria a classe política, no que restou de oposição dentro dela, ao fim de um desses mandatos petistas. Não aconteceu.

ConJur – Vamos falar de reforma política. O que é possível ser feito?
Francisco Rezek – Antes de mais nada, não acho que seja necessário tanto dinheiro nas campanhas políticas. Já temos a garantia do horário gratuito nos meios de comunicação, o maior e mais poderoso dos instrumentos de campanha eleitoral que existe, e é administrado de um modo correto. Além disso, do que é que precisamos? Talvez de recursos para que o candidato não dependa de pagar táxi aéreo em seus deslocamentos dentro de um país tão grande. Se a Força Aérea concedesse aos candidatos o transporte de que necessitam com segurança para se deslocar nas suas aparições, acho que em matéria de custeio pelo tesouro público das campanhas isso seria o bastante.

ConJur — Qual modelo o senhor acha que seria o ideal para escolha do Legislativo?
Francisco Rezek – Existem várias ideias. Não sou um grande entusiasta, como tantos parecem ser, do voto distrital ou do voto distrital misto. Acho que pelo modo como a campanha se faz ainda hoje no Brasil é possível que em cada unidade federada as escolhas sejam feitas em função daquilo que o eleitor reconhece no candidato como representativo dele. Não sentiria nenhuma necessidade premente de ver meu voto circunscrito a uma representação da minha região. Mais importante, e ao mesmo tempo mais delicado que o tema da metodologia distrital ou proporcional é a questão da representatividade por quociente eleitoral.

ConJur — Esse modelo não funciona mais?
Francisco Rezek — Ele funciona. A questão é saber se ele é justo ou não. Já temos uma representação igualitária no Senado. A Câmara dos Deputados não deveria ser um pouco mais fiel ao quociente eleitoral de cada unidade federada? Não estou afirmando nada, apenas penso que esse tema deveria preocupar mais que o do voto distrital.

ConJur — Tem um método de apuração que seria melhor?
Francisco Rezek — Um inteligente equacionamento do sistema resolveria. Não teríamos o deputado Tiririca carregando consigo tantos outros. Ele tem a preferência de muitos brasileiros, quaisquer que sejam as razões, e tem direito a sua cadeira. O problema é ele arrastar consigo outros nomes desconhecidos do eleitorado, não desejoso de consagrar tais nomes.

ConJur – Mas então por que o senhor não tem grande empolgação pelo voto distrital?
Francisco Rezek – Apenas acho que o outro problema deve ser encarado com seriedade maior, porque é igualmente importante e mais sensível. É daqueles problemas que deixam a classe política contra a parede, com receio de dizer o que pensa, a questão da representatividade de cada estado.

ConJur — Do que eles têm medo?
Francisco Rezek — De incidir no politicamente incorreto, como dizer hoje que um eleitor do Paraná ou do Rio Grande do Sul deveria ter seu voto tão valorizado quanto um eleitor do Amapá.

ConJur — O que senhor acha da reforma política por meio de um plebiscito?
Francisco Rezek — É difícil chamar o eleitorado a um trabalho de elaboração legislativa. Difícil conceber uma consulta plebiscitária, porque ou ela seria superficial — pretendendo concentrar em uma, duas ou três perguntas uma imensidão de temas — ou seria uma consulta desmesuradamente extensa, a que pouquíssimos eleitores brasileiros estariam dispostos a atender.

ConJur — O que seria o ideal, então?
Francisco Rezek — A ideia do referendo parece boa. Sim ou não a um projeto que não fosse resultado do puro e simples trabalho do Congresso Nacional. Não é difícil conceber isso. Temos, no governo e na oposição, universitários ilustres prontos a apresentar propostas do que seria uma reforma política completa e idônea, pondo isso na mesa do Congresso Nacional para exame e debates. Daria muito menos trabalho que uma constituinte. Pode-se até pensar num método em que o Congresso, diante de vários projetos, apresentasse duas ou três fórmulas para, na maior simplicidade, pedir-se ao eleitor que escolhesse uma delas.

ConJur — O senhor acredita nessa necessidade ou parece ser mais um discurso para mostrar alguma sintonia com as ruas?
Francisco Rezek — A classe política não parece apaixonada pela ideia de reforma política, mas sabe que ela tem de ser feita. Daquilo que foi difícil identificar com precisão em junho de 2013, no clamor das ruas, uma coisa parece certa: todos querem a mudança de hábitos, de costumes na política brasileira. Por isso pareceu tão desastrada a iniciativa que a Presidente da República tomou meses atrás de baixar um decreto relacionado aos tais conselhos populares. Não sei quem terá sido o trapalhão que a aconselhou a fazer aquilo. Quem terá sido o insolente, o desonesto que pôs na cabeça da presidente da República a ideia de que aquele decreto seria uma resposta ao clamor das ruas em junho de 2013. O decreto é um aparelhamento ostensivo e notório, agora da suposta vontade popular vocalizada pela opinião dos áulicos do partido governante. O que as ruas de junho de 2013 fizeram com maior energia foi expulsar a pontapés os que ali apareceram com bandeiras de partido.

ConJur — Essa rejeição aos partidos não seria de certa forma antidemocrática? Porque eles são necessários para a democracia…
Francisco Rezek — Não do modo como estavam ali, tentando galopar em cima de um movimento espontâneo das ruas. Aquilo era uma tentativa vergonhosamente oportunista do Partido dos Trabalhadores e de alguns partidos de esquerda radical. Não era a opinião deles que as ruas de 2013 estavam pedindo.

ConJur — O Brasil tem 28 partidos com representação no Congresso. A criação de partidos precisa ser inibida?
Francisco Rezek —
 Esse quadro torna a tarefa das lideranças políticas no Congresso mais difícil. Torna a habilidade negocial do governo um requisito mais importante.  Mas não creio que seja um mal o fato de termos partidos. Talvez uma cláusula de barreira devesse expurgar aqueles que não conseguiram sequer fazer-se representar. Mas acho pouco democrática a tentativa de extinguir alguns dos existentes.

ConJur — Mas e em relação à criação de novos partidos
Francisco Rezek —
 Qual o problema se temos um partido sem representação no Congresso, com seus líderes discursando para quem quiser ouvir? O partido pode ter representação regional e direito ao fundo partidário. Mas receio assumir uma posição de que depois me arrependa por pouco democrática, pouco condizente com o ideal pluralista.

ConJur — O senhor prefere acreditar que a sociedade vai saber lidar com isso?
Francisco Rezek —
 Como no caso da bandidagem internáutica. Acredito que chegaremos a um ponto de saturação e que a partir daí uma autocrítica severa nos vai levar a bom termo.

ConJur — Como deve ser o financiamento de campanhas
Francisco Rezek —
 Sempre fui contra o financiamento de campanhas por empresas de qualquer natureza, especialmente por saber que as empresas que mais se empenham em financiar campanhas são ostensivamente aquelas que esperam alguma compensação por isso.

ConJur — E o financiamento por pessoas físicas?
Francisco Rezek — O particular poderia ajudar de várias maneiras além de contribuir com dinheiro. O comício é uma coisa gratuita desde que o candidato esteja lá, e para isso ele precisa de transporte. Cartazes eleitorais, bandeiras e símbolos diversos, tudo isso pode ser provido espontânea e individualmente pelo militante.

ConJur – O senhor é a favor do fim da reeleição?
Francisco Rezek – Acho melhor. Com o mandato único, a preocupação do governante deixa de ser a reeleição e passa a ser um exercício tão brilhante quanto possível do mandato único, para que ele possa entregá-lo orgulhoso do que fez, garantida sempre a rotatividade.

ConJur – E o Brasil está preparado para abrir mão do voto obrigatório?
Francisco Rezek – Não. O voto facultativo fica bem em nações como os Estados Unidos e muitas das democracias europeias, onde as diferenças entre os partidos são tão poucas, tão cosméticas que o eleitor que fica em casa sabe que nada vai mudar substancialmente na condução dos assuntos de estado em função do resultado eleitoral. Não é o nosso caso. Somos um país ainda em evolução política e ideológica. Se o voto não for entendido como um dever da cidadania, a política deixa de ser um domínio de todos os brasileiros e passa a ser um domínio apenas da militância. Seria uma desgraça se isso acontecesse.

ConJur — Mesmo com o argumento de ser antidemocrático obrigar a pessoa a fazer alguma coisa?
Francisco Rezek — Esse discurso é tolo. Não custa nada ir votar, e a sanção do não comparecimento é pouco mais que simbólica. É a mesma coisa que as vacinas. É antidemocrático lembrar às pessoas que a vacinação é obrigatória?

ConJur – O senhor considera a democracia brasileira madura?
Francisco Rezek –
 Sim, madura no sentido de irreversível. As ideologias são suscetíveis de crítica — e depurá-las é o objetivo da sociedade neste momento. Mas esta é uma democracia definitiva, sem a menor dúvida, e isso eu já dizia ao final dos anos 1980. Ela é sólida, não está sujeita a golpes de estado como os que já enfrentamos no passado ___ nem a golpes sinuosos como aqueles que alguns vizinhos nossos deram, ou tentaram dar, mudando a própria Constituição para se eternizarem no poder.

ConJur — Ganhou força a ideia de uma intervenção militar. O senhor vê isso com alguma gravidade?
Francisco Rezek —
 Não. Isso é tão periférico, tão mínimo, que não deve ser levado a sério. A melhor maneira de responder a certos rompantes neofascistas desse gênero é não levar a sério.

ConJur – Quais diferenças o senhor vê na Justiça Eleitoral entre a situação em 1989 e hoje?
Francisco Rezek – Houve um notável aprimoramento tecnológico. A velocidade da apuração é incrível. A Justiça Eleitoral continua trabalhando com muita energia e dando satisfação ao país. Na administração do processo eleitoral não mudou nada. O procedimento da Justiça Eleitoral continua sendo exemplar — vez por outra critica-se, talvez com razão, o TSE quando estabelece alguma norma por delegação do Congresso. No julgamento de casos concretos, pré-eleitorais e pós-eleitorais, a Justiça Eleitoral tem trabalhado com muita correção e as disfunções são excepcionais.

ConJur – Mas a sociedade também mudou desde 1989?
Francisco Rezek – Ela é mais participativa, reivindica, protesta. Também é mais dividida.

ConJur – Essa divisão é boa?
Francisco Rezek –
 Essa divisão é inevitável. Em 1989, no primeiro ano de eleição presidencial depois do regime militar, ainda estávamos todos unidos na busca da consolidação da democracia. Como hoje isso se dá por consumado, é natural que a sociedade se divida. É também natural que exista uma enorme controvérsia sobre a correta administração do dinheiro público. Em qualquer resenha da política brasileira da segunda metade do século 20, aqui e no exterior, você verá Fernando Collor lembrado como o primeiro presidente a sofrer impeachment na história do Brasil ___ por corrupção. Se um jovem curioso vai pesquisar para saber o que chamaram de corrupção, a justificar o impeachment, verá que foi uma irrisão frente ao que veio a acontecer nos últimos anos.

ConJur — O senhor fala do mensalão?
Francisco Rezek —
 A divisão que hoje antagoniza os brasileiros é entre aqueles que acham que não houve nada de muito sério e os que acham que houve. O próprio Lula da Silva disse em certa entrevista que é assim mesmo, todo mundo faz. Bom, se ele acha que todo mundo faz eu creio que ele deveria ser chamado às falas para dizer se essa teoria se aplica a valores tão diferentes. Porque naquilo que é o polo oposto à sua política, os casos identificados de corrupção são mínimos.

ConJur – Então o Lula teria sido alvo de impeachment da mesma forma que foi Collor?
Francisco Rezek – O que quero dizer é que por menos que aquilo que foi atribuído a Lula, Fernando Collor caiu em desgraça política. Eu deixei o governo em março ou abril de 1992. Recebi no Itamaraty no início de 1992 a visita de William Harding, então ex-embaixador do Reino Unido no Brasil. Ele tinha uma coisa a me contar, pois estava agendado para a manhã seguinte com o presidente da República. Queria minha opinião sobre falar ao presidente ou não. Contou que alguém ligado ao presidente estava tomando dinheiro de empresários, quase todos estrangeiros, incluindo compatriotas britânicos, sob o argumento de conseguir a simpatia do governo. Esse homem não prometia nada, tampouco os empresários teriam qualquer favor a pedir ao governo.

ConJur – Esse homem era o PC Farias.
Francisco Rezek –
 Sim. Fiz aquela pergunta retórica: esse cavalheiro ligado ao presidente da República detém alguma função pública? Ele respondeu o óbvio: que não detinha. Recapitulando o fato, ocorre-me que conta pontos em favor de Collor, ele nunca instalou PC Farias em cargo público.  Então eu disse que não era só direito, mas dever dele dizer isso ao presidente da República. Despedimo-nos e creio que dois dias depois ele voltava à Inglaterra. Depois de desencadeada a crise, tive uma conversa com William Harding por telefone e perguntei se ele tinha feito o que me anunciou, caso no qual eu me perguntaria por quê o presidente não fez alguma coisa. Harding me disse que esperava ser recebido a sós, mas foi recebido com várias pessoas ao lado do presidente, entre civis e militares, de modo que não dera para tocar em assunto tão sensível. Talvez Collor só se tenha alertado quando seu irmão Pedro falou à imprensa. Se ele então tivesse mais humildade e sensatez poderia — acredito, pode não ser — ter ido à imprensa, tomado uma atitude oriental e pedido desculpas ao povo brasileiro por aqueles acontecimentos. Ao invés disso ele deixou que inventassem a operação Uruguai, aconselhado pelo que havia de pior no círculo das suas amizades. Essa trama foi desmentida por aquela secretária aqui de São Paulo, que denunciou a operação, e as coisas tomaram o rumo que lembramos. De todo modo, é pouco perto de tudo o que foi feito depois.

ConJur — Por que o senhor acha, então, que o Lula não caiu em desgraça política?
Francisco Rezek — A situação de Lula no Congresso Nacional é totalmente diferente. Ele sempre teve ampla maioria, nunca sofreu da orfandade em que Collor foi deixado. Aliás, Collor nunca teve uma situação de conforto dentro do Congresso.  Já a base de Lula, embora oscilante, sempre foi densa e fiel.

ConJur – O senhor acha que Dilma pode ter problemas com esse novo Congresso que foi eleito?
Francisco Rezek – Não creio. Primeiro porque não creio em culpas diretas dela, segundo porque penso na mudança de rumos que ela anuncia dever imprimir ao seu governo, nas novas diretrizes.  Não acho que ela corra algum risco.

ConJur – Mas o senhor não vê ela muito isolada?
Francisco Rezek – A psicologia do Partido dos Trabalhadores é uma coisa difícil de entender. Acho que a preocupação maior da presidente era não atrair sobre si as cóleras do partido, mais do que manter-se no poder. Não acho Dilma Rousseff uma pessoa ambiciosa, sempre acreditei nas boas intenções dela e na não participação direta dela em qualquer coisa de mais reprovável que a simples leniência. Mas ela é parte de um esquema, de uma organização à qual não consegue resistir.

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