Diário de Classe

Literatura de Grossman mostra como não há um monopólio da maldade

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15 de novembro de 2014, 7h00

Spacca
Hoje vou pedir licença a André Karam Trindade para falar sobre literatura e, talvez, um pouco sobre Direito. Motiva-me um certo êxtase, raro de se sentir, que vivenciei quando tive contato com o livro do romancista russo Vassili Grossman intitulado Vida e Destino, publicado recentemente em português pela editora Alfaguara[1]. Trata-se de uma tradução feita diretamente da língua originária e assinada por Irineu Franco Perpetuo que classificou o romance como sendo “o último preso político da era soviética.”[2] De fato, apreendido pela KGB em fevereiro de 1961 por ser considerado “difamatório” e “perigoso para o Estado e para o povo soviético”, o manuscrito original somente foi “libertado” em 2013.

Acredito que, além de meu entusiasmo com a obra, o fato de estarmos rememorando a queda do muro de Berlin faz com que o tema venha mesmo a calhar. Acho divertida essa coisa quase transcendente que existe em torno de números redondos… E, já que é assim, no ano que vem falaremos muito sobre a Segunda Guerra Mundial, uma vez que o seu encerramento com a vitória dos aliados completará 60 anos. Também por esse motivo, o livro de Grossman aparece na ordem do dia, pois, além de estar ambientado no regime soviético (no auge do stalinismo), ele pode ser encarado como uma espécie de Guerra e Paz do século XX que, ao invés de narrar a invasão da Rússia por Napoleão Bonaparte, descreve a invasão da União Soviética pelo exército alemão, com close up na sangrenta batalha de Stalingrado (da qual o escritor efetivamente participou, como correspondente de jornal e lutando ao lado do exército soviético).

No prefácio que faz à edição brasileira, o tradutor esclarece algo importante para anteciparmos uma compreensão, ainda que precária, sobre o todo do livro. Afirma ele que a conjunção “e” contida no título não deve ser lida com sentido aditivo (vida + destino), mas, sim, adversativo (vida vs. destino). Vida, então, ganha o sentido de liberdade ou, heideggerianamente falando, de estar jogado no mundo; ao passo que destino seria o inevitável, a certeza da morte, o esmagamento do indivíduo pelo Estado, a privação, enfim, da liberdade. Dessa tensão, a narrativa retira a energia que a movimenta.

Nota-se, portanto, que o texto possui espessura filosófica. Ele nos coloca ainda a refletir sobre a origem do mal no ser humano, sem cair em reducionismos antropológicos ou etnológicos. Algo que lembra muito outro romance de iguais dimensões e profundidade. Uma obra que também flerta com Tolstoi e que se passa igualmente no ambiente do front soviético, porém na perspectiva de um membro da SS nazista. Trata-se de As Benevolentes de Jonathan Littell. Nos dois livros está presente a ideia de que todas as coisas pavorosas e todas as atrocidades vivenciadas nesse período sombrio da Europa foram obras do ser humano. Estranho? Explico: não existe essa coisa da desumanidade ou a ideia de que a maldade extrema é fruto de algo bestial, não civilizado. Algo que, diga-se de passagem, está presente na cultura ocidental desde a cisão entre helênicos e bárbaros e que, na modernidade, o otimismo iluminista, plasmado na crença do progresso e do aperfeiçoamento dos costumes, transferiu para o terreno vago do chamado humanismo.

Nesse ponto, a obra de Littell remete inevitavelmente à Nietzsche: não existe o desumano… existe apenas o humano e o demasiado humano! Para ilustrar, eis uma primorosa passagem do monólogo da personagem principal de Littell, o SS-Obersturmbannfürer Max Aue. O cenário é o seguinte: uma sala de escritório, décadas distantes dos acontecimentos vivenciados durante a guerra. Em determinado momento, temos a seguinte reflexão:

Eckhart escreveu: um anjo no Inferno voa na sua própria nuvenzinha de Paraíso. Sempre compreendi que o inverso também deveria ser verdade, que um demônio no Paraíso voaria no seio de sua própria nuvenzinha de Inferno. Mas não me julgo um demônio. Para o que fiz havia sempre razões, boas ou más, não sei, em todo caso razões humanas. Aqueles que matam são homens, assim como os que são mortos, é isso o terrível. (…) Vou vivendo, faço o que é possível, é assim com todo mundo, sou um homem como os outros, sou um homem como vocês.[3]

Grossman, por sua vez, mostra como a maldade não era privativa dos alemães. Como acontece em As Benevolentes, Vida e Destino mostra que entre o nazimo e o stalinismo não haviam diferenças substanciais. Mas, nesse ponto em específico, surge um traço distintivo para com o niilismo presente no texto de Littell. Há momentos em que, através de personagens anônimos, Grossman parece revelar uma certa convicção humanista, sem perder de vista, contudo, a ultrapassagem dos reducionismos maniqueístas. Há um momento de Vida e Destino em que um prisioneiro russo de um campo alemão afirma: “a história dos homens não é a batalha do bem tentando vencer o mal. A história do ser humano é a batalha do grande mal para destruir a semente do humanismo”.

Algo que não passou despercebido por Elio Gaspari que, em resenha publicada no jornal Folha de S. Paulo, afirmou o seguinte: “[Vida e Destino] É um livro sobre a Segunda Guerra no qual os nazistas não têm o monopólio da maldade. A mãe de Chtrum [personagem central do livro que, ao que tudo indica, representa uma espécie de alter ego do próprio Grossman — acrescentei] manda-lhe uma carta contando a entrada dos alemães na sua cidade da Ucrânia, com a disposição de matar todos os judeus. Uma vizinha aplaudida a ideia. Outra tomou-lhe o quarto. Ela foi mandada para o gueto, com direito a levar consigo 15 kg de pertences. Duas mulheres disputavam seus móveis e quando ela se despediu ambas choraram”.

Além de todos esses elementos, o livro vale ser lido pelo périplo por que passou para chegar a ter sua publicação devidamente realizada. Uma obra magistral, que ocupou seu autor por uma década, demorou mais três para que pudesse vir a lume em todo o seu esplendor. O texto de Grossman foi brutalmente tomado dele pelo serviço de inteligência do regime soviético e, contrabandeado para o ocidente, sofreu embargo também no chamado “mundo livre”. Neste último, o problema não foi as verdades ditas a respeito do satalinismo, mas, sim, as inviabilidades editoriais e dúvidas sobre o interesse do público pelo livro. Isso porque o denso texto de Grossman rivalizava, em alguns aspectos muito específicos, com o Arquipélago Gulag de Aleksandr Soljenítsin. Críticos e “especialistas” entenderam que o livro de Soljenítsin — que fora laureado com o Prêmio Nobel de Literatura — já havia esgotado o tema da denúncia do stalinismo.[4]

A história da saída dessa cópia precária e contrabandeada, que atravessou a União Soviética em direção ao ocidente, é também um caso à parte. Possui ela um enredo que poderia muito bem ter saído de um blockbuster hollywoodiano sobre a Guerra Fria. Enfim, uma obra sobre a liberdade, a maldade, a corrupção dos seres humanos e, acreditem, esperança.

Leitura obrigatória para esses nossos dias atuais. Vejam, por exemplo, aquilo que vivenciamos por conta do recente embate eleitoral. Gente que ama demais ao partido e que (ainda) acredita numa espécie tosca de realpolitik. Por outro lado, gente que sai às ruas para bradar por intervenção militar e um retorno a um regime ditatorial. Sem esquecer dos idiotas que descobriram a solução dos problemas nacionais no separatismo. A todos, sem exceção, recomendo a leitura dos livros aqui citados. Mas, especialmente, Vida e Destino. Há muito ali sobre essas questões. E lembro a todos, igualmente sem exceção, de que se hoje podemos defender as ideias mais absurdas e ainda publicá-las, é porque vivemos em um regime democrático, que protege nossas liberdades.

Noutros tempos e lugares, pessoas que escreveram verdades relevantes tiveram seus livros defenestrados da vida pública. Um editor de Grossman teria dito à ele por ocasião da leitura de seu Vida e Destino: “entre nós, é proibido publicar a verdade”.[5] 

A essa altura, alguém perguntaria: mas o que tem o direito haver com tudo isso? Respondo laconicamente: tudo! Às vezes não é preciso escrever sobre o direito para falar sobre ele.   


[1] Cf. Grossman, Vassili. Vida e Destino. Tradução de Irineu Franco Perpetuo. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2014, Kindle Edition.
[2] Idem, ibidem, pos. 339.
[3] Cf. Littell, Jonathan. As Benevolentes. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2012, pos. 33.
[4] Cf. Perpetuo, Irineu Franco. “Prefácio” de Grossman, Vassili. Vida e Destino. Tradução de Irineu Franco Perpetuo. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2014, pos. 339.
[5] Idem, Ibidem.

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