Senso Incomum

Que maldição estaria por trás da interpretação do direito em Kelsen?

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13 de novembro de 2014, 7h00

Spacca
caricatura lenio luis streck 02 [Spacca]Bula
Esta coluna atende pedidos de alguns leitores da ConJur. É um texto conceitual e “acústico”. No nível em que se encontra a doutrina e a operacionalidade do direito, penso que não terá muita utilidade. Enfim…

A confusão sobre positivismo
Passei por essa experiência várias vezes (e ainda passo). Com efeito, de há muito as minhas críticas têm tido como alvo o positivismo pós-exegético, isto é, aquele positivismo que superou o positivismo das três vertentes (exegese francesa, pandectística alemã e jurisprudência analítica da common law). Ou seja, sempre considerei muito simplista limitar a crítica do direito a uma simples superação do deducionismo legalista (e os nomes que a isso se dê). Portanto, tenho apontado minhas baterias contra a principal característica do positivismo pós-exegético, a discricionariedade (nem vou me referir ao voluntarismo[1] que se forjou nos últimos anos nas escarpas e estepes do direito). Curiosamente, juristas das mais variadas facções diziam (e isso ainda acontece): se você é contra a discricionariedade dos juízes, então defende o legalismo, o juiz boca da lei… E complementa(va)m, com ar superior: aceitamos a discricionariedade, mas não a arbitrariedade… Ora, é como se os limites semânticos tivessem contornos “tão definidos” como pretendem especialmente certas matrizes analíticas do direito. Vã esperança. Ledo engano. Um jusfilósofo muito conhecido chegou a me acusar, em Congresso realizado além mar, que eu estava defendendo “a proibição de interpretar”.

Na verdade, confesso que cometi um equívoco: não me dei conta, até pouco tempo, de que os juristas brasileiros (e nisso se incluem os neoconstitucionalistas de além mar e aquém mais que não abrem mão da discricionariedade judicial) contenta(va)m-se com o menos, isto é, limita(va)m-se a superar as velhas formas de exegetismo, entregando, entretanto, todo o poder ao intérprete (em especial, aos juízes), a partir de uma série de fórmulas do tipo “menos-regras, mais-princípios, menos-subsunção, mais-ponderação”, etc. Ora, essa “delegação de poder” já estava no velho Movimento do Direito Livre (que deve ser entendido em dois níveis: primeiro, na reivindicação da liberdade de investigação do direito, superando o deducionismo conceitualista em favor de uma espécie de sociologismo; segundo, e como consequência, no modo de resolver o problema das lacunas que, ao final, acaba entregando aos juízes a possibilidade de corrigir os vazios legislativos, adaptando a legislação à realidade social que, nos casos mais estremados, admitia, inclusive, decisões contra legem), na jurisprudência dos interesses, que representa algo como um dissidência do Movimento do Direito Livre, no sentido de se constituir como uma ala moderada frente aos exageros libertários, e se aprimorou na jurisprudência dos valores (sem considerar os movimentos realistas no interior da common law). Portanto, não surpreende quando, volta e meia, lê-se bordões do tipo o direito, em última análise, é aquilo que os tribunais dizem que é, como é possível ver, por exemplo, no voto do ministro Roberto Barroso na Recl 4.335/AC, bem recentemente. Como demonstrarei na sequência, isso é bem kelseniano, por mais estranho que possa parecer. Ou melhor, faz parte da “herança maldita do lado ‘b’ da TPD” (interpretação feita pelos juízes — e tribunais — é um ato de vontade).

Vou tentar explicar isso melhor. Kelsen e Hart promovem, em sistemas jurídicos distintos, uma virada no positivismo. Importa mais para mim, aqui, a viragem kelseniana, que — paradoxalmente — acabou proporcionando um voluntarismo judicial sem precedentes. Derrotar o positivismo (exegético) e entregar as decisões a um voluntarismo de segundo nível (não mais ligado ao legislador, mas, sim, ao juiz) é uma vitória de Pirro. Por isso, minha luta contra os sintomas dessa “segunda viragem positivista”. Não posso concordar com o fato de que a crítica contemporânea não consiga fazer mais do que já fizera a jurisprudência dos interesses ou a jurisprudência dos valores. Na verdade, houve simplesmente uma troca de sinais: se antes a teoria do direito ficava refém de um assujeitamento-a-uma-estrutura-de-caráter-objetivista (filosoficamente falando), passou-se para a fase em que se fica refém do “assujeitamento-da-estrutura-a-um-sujeito-solipsista”. Do “aprisionamento” da lei a um sistema racional-conceitual, passamos ao império da vontade (do poder — a Wille zur Macht), último princípio epocal da modernidade. Não é por nada que, para Kelsen, a interpretação feita pelos juízes é um ato de vontade.

Indo mais a fundo, lembro que as primeiras décadas do século XX viram crescer, fortemente, o poder regulatório do Estado — que se intensificará nas décadas de 30 e 40 — e a falência dos modelos sintático-semânticos de interpretação da codificação se apresentaram completamente frouxos e desgastados. O problema da indeterminação do sentido do Direito aparece, então, em primeiro plano. É nesse ambiente que aparece Kelsen. Por certo, ele não quer destruir a tradição positivista que foi construída pela Begriffjurisprudence (jurisprudência dos conceitos). Pelo contrário, é possível afirmar que seu principal objetivo era reforçar o método analítico proposto pelos conceitualistas de modo a responder ao crescente desfalecimento do rigor jurídico que estava sendo propagado pelo crescimento da Jurisprudência dos Interesses e da Escola do Direito Livre — que favoreciam, sobremodo, o aparecimento de argumentos psicológicos, políticos e ideológicos na interpretação do direito.[2] Isso é feito por Kelsen a partir de uma radical constatação: o problema da interpretação do direito é muito mais semântico do que sintático.

Aqui, de pronto, torna-se necessário registrar um esclarecimento: quando falo em uma ênfase semântica, estou me referindo explicitamente ao problema da interpretação do direito tal qual é descrito por Kelsen no fatídico capítulo VIII de sua Reine Rechtslehre. Para compreendermos bem essa questão, é preciso insistir em um ponto: há uma cisão em Kelsen entre direito e ciência do direito que irá determinar, de maneira crucial, seu conceito de interpretação. De fato, também a interpretação, em Kelsen, será fruto de uma cisão: interpretação como ato de vontade e interpretação como ato de conhecimento. A interpretação como ato de vontade produz, no momento de sua “aplicação”, normas. A descrição das normas de forma objetiva e neutral — interpretação como ato de conhecimento — produz proposições.

Assim, dado à característica relativista da moral kelseniana, as normas exsurgidas de um ato de vontade terão sempre um espaço de mobilidade sob o qual se movimentará o intérprete (ele mesmo diz que não há qualquer método pelo qual se possa encontrar uma resposta correta). Esse espaço de movimentação é derivado, exatamente, do problema semântico que existe na aplicação de um signo linguístico — através do qual a norma superior se manifesta aos objetos do mundo concreto, que serão afetados pela criação de uma nova norma. Por outra banda, a interpretação como ato de conhecimento — que descreve no plano de uma metalinguagem as normas produzidas pelas autoridades jurídicas — produz proposições que se relacionam entre si de uma maneira estritamente lógico-formal. Vale dizer, a relação entre as proposições são, estas sim, meramente sintáticas.

Minha preocupação, contudo, não é dar conta dos problemas sistemáticos que envolvem o projeto kelseniano de ciência jurídica. Minha questão é explorar e enfrentar o problema lançado por Kelsen e que perdura de um modo difuso e, por vezes, inconsciente no imaginário dos juristas: a ideia de discricionariedade do intérprete ou do decisionismo presente na metáfora da “moldura da norma”. É nesse sentido que se pode afirmar que, no que tange à interpretação do direito, Kelsen amplia os problemas semânticos da interpretação, acabando por ser picado fatalmente pelo “aguilhão semântico” de que fala Ronald Dworkin.

De todo modo, em um ponto específico, Kelsen “se rende” aos seus adversários: a interpretação do direito, no plano da aplicação, é eivada de subjetivismos. Para ele, esse “desvio” é impossível de ser corrigido. No famoso capítulo VIII, Kelsen chega a falar que as normas jurídicas — entendendo norma no sentido da TPD, que não equivale, stricto sensu, à lei — são aplicadas no âmbito de sua “moldura semântica”. O único modo de corrigir essa inevitável indeterminação do sentido do direito somente poderia ser realizado a partir de uma terapia lógica — da ordem do a priori — que garantisse que o Direito se movimentasse em um solo lógico rigoroso. Esse campo seria o lugar da Teoria do Direito ou, em termos kelsenianos, da Ciência do Direito. E isso possui uma relação direta com os resultados das pesquisas levadas a cabo pelo Círculo de Viena.

Esse ponto é fundamental para podermos compreender o positivismo que se desenvolveu no século XX e o modo como encaminho minhas críticas nessa área da teoria do direito. Sendo mais claro: falo desse positivismo normativista, não de um exegetismo que já havia dado sinais de exaustão no início do século passado. Kelsen já havia superado o positivismo exegético, mas abandonou o principal problema do direito — a interpretação no nível da “aplicação”. E nisso reside a “maldição” de sua tese. Não foi bem entendido, quando ainda hoje se pensa que, para ele, o juiz deve fazer uma interpretação “pura da lei”…! O “pomo de ouro” disso é que — e me permito insistir nisso — Kelsen não separou o direito da moral e, sim, a ciência do direito da moral. Nisso está o holding de sua pureza metódica. E isso faz toda a diferença nas incompreensões da obra do mestre.

Isto porque há dois níveis da e na linguagem kelseniana. Sem essa compreensão ocorrem muitos equívocos na teoria do direito. Kelsen tem no neopositivismo lógico a sua fonte de inspiração para fugir do paradoxo do cretense. Por isso é que a TPD é uma metalinguagem (ciência) de uma linguagem objeto (o direito).[3]

Por que a má compreensão do positivismo se proliferou?
Vejamos: as teorias críticas do direito — me refiro àquelas sustentadas na analítica da linguagem (caso específico, por exemplo, da teoria da argumentação jurídica) — não conseguem fazer mais do que superar o positivismo primitivo (exegético), ultrapassando-o, entretanto, apenas, no que tange ao problema “lei=direito”, isto é, somente alcançam o “sucesso” de dizer que “o texto é diferente da norma” (na verdade, fazem-no a partir não de uma diferença, mas, sim, de uma cisão — semântico-estrutural —, cortando qualquer amarra de sentido entre texto e sentido do texto — veja-se o ovo da serpente representado pelo pamprincipiologismo).

Para isso, valem-se da linguagem, especialmente calcados na primeira fase do linguistic turn, que conhecemos como o triunfo do neopositivismo lógico. Na especificidade do campo jurídico, as teorias analíticas tomaram emprestado do próprio Kelsen o elemento superador do positivismo exegético, que funcionava no plano semiótico da sintaxe, indo em direção de um segundo nível, o da semântica, o que se observa ainda hoje na “crítica do direito”. Que a lei não dá conta de tudo, Kelsen já havia percebido, só que, enquanto ele chega a essa conclusão a partir da cisão entre ser e dever ser, com a divisão entre linguagem objeto e metalinguagem, as teorias analíticas e seus correlatos chegam à mesma conclusão. Ocorre, entretanto, que essa “mesma conclusão” vem infectada com o vírus do sincretismo filosófico, uma vez que mixaram inadequadamente o nível da metalinguagem com o da linguagem objeto, isto é, do plano da ciência do direito (pura) e do direito (eivado do solipsismo próprio da razão prática). Bingo.

Paro por aqui. Tem muito mais coisa. Mas reconheço que está pesado. Haverá uma sequencia: “Kelsen e a salvação da pureza metódica – a missão”! Nele contarei como Kelsen disse que os juízes fazem política jurídica.


[1] O que está por trás disso? Explico: Heidegger, Wittgenstein e Gadamer foram os corifeus da libertação da filosofia da mão de ferro do racionalismo moderno, nas palavras de Charles Taylor. Essa libertação, que não está ainda terminada, é feita de muitos sofrimentos e sempre está sob a ameaça da reversão. Essa ameaça vem da “concepção dominante do agente pensante”, um agente desprendido como ocupante de uma sorte protovariante da “visão a partir do nada”, na sugestiva frase de Thomas Nagel. Na realidade, as diferentes variantes do pensamento moderno, sustentadas nesse “agente pensante”  buscam fazer um “modelo de nós mesmos como agentes pensantes”, de onde se pode dizer que o Selbstsüchtiger, o sujeito solipsista é a figura mais presente no campo da interpretação do direito na contemporaneidade. Aqui, inclusive, cabe uma reflexão sobre a própria tradução da expressão alemã, que “literalmente” é “sujeito-viciado-em-si”. Daí aos julgamentos conforme a consciência foi/é um pulo.

[2] Aliás, um parêntesis: bem “novo” isso, não? Olhemos um pouco para o lado em terrae brasilis e veremos como estamos fazendo coisas que já se faziam há mais de cem anos, com a diferença de que achamos, sinceramente, que “estamos descobrindo a pólvora”.

[3] Quem melhor tratou disso no Brasil foi Luis Alberto Warat. Também Leonel Severo Rocha contribuiu sobremodo para uma melhor compreensão da obra de Kelsen. Mais recentemente, a imperdível obra de Gabriel Nogueira Dias, Positivismo Jurídico e a Teoria Geral do Direito. Recomendo também o livro Diversidade do Pensamento de Hans Kelsen, 2013, coordenado por Elda Coelho De Azevedo Bussinguer e Julio Pinheiro Faro, bem como a melhor obra introdutória ao estudo do direito, intitulada Introdução à Teoria e à Filosofia do Direito, de Rafael Tomás de Oliveira, Georges Abboud e Henrique Garbellini. Recomendo, ainda, a Autobiografia de Hans Kelsen, 2012, com estudo introdutório feito por Otavio Luiz Rodrigues Junior e José Antonio Dias Toffoli; e tradução feita por Gabriel Nogueira Dias, José Ignácio Coelho Mendes Neto. 

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