Direitos autorais

Venda de produtos piratas não pode ser tolerada pelo Judiciário

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13 de novembro de 2014, 6h25

A Constituição da República estabeleceu de maneira clara a proteção do direito autoral, bem como do direito de imagem, assegurando também o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras (artigo 5º, incisos XXVII, XXVIII, alíneas “a” e “b”).

O Código Penal traz a descrição típica da violação do direito autoral, no seu artigo 184, que sofreu alteração no ano de 2003, para fazer frente à nova realidade da prática de tal crime como atividade econômica em grande escala.

O avanço tecnológico da comunicação, a existência de rede mundial de internet, a diminuição de preço e a disponibilidade de aparelhos de gravação, os arquivos digitais disseminados, acarretaram uma nova realidade de violação do direito autoral. Milhares de cópias baratas de discos em todos os formatos possíveis ou de arquivos digitais são disponibilizados por um exército de vendedores, gerando a violação em massa do direito autoral.

Tal realidade acaba se refletindo nas varas criminais e nos tribunais, que julgam um grande número de processos penais de violação do artigo 184 do Código Penal. Este tema poderia não resultar em maior polêmica mas o fato é que há corrente de pensamento jurídico, também presente nos tribunais, que hesita ou se nega aplicar o Direito Penal aos vendedores da ponta da linha da cadeia de produção e comercialização dos produtos “piratas”.

É evidente que repressão penal da violação em massa do direito autoral deveria produzir trabalho de investigação que tivesse como prioridade os produtores e distribuidores dos discos e arquivos falsificados, os verdadeiros chefes do crime, não raro situados em país vizinho. No entanto, a tolerância com o conjunto de vendedores de varejo tornaria impossível o controle da atividade criminosa que assume proporção enorme e escala empresarial.

Inúmeros obstáculos à persecução penal são opostos pela corrente de pensamento jurídico que gostaria de evitar a punição do varejista da violação do direito autoral. A tese da aplicação do princípio da adequação social sustenta que a conduta seria atípica pois socialmente tolerada, não pode ser aceita. Não é aceitável a tese de que o fato seja materialmente atípico ou a invocação do princípio da adequação social. A venda de produtos “piratas” é notoriamente crime praticado por uma rede de pequenos vendedores mas tem na sua origem organizações criminosas que se dedicam a lesar em escala industrial os titulares dos direitos autorais.

Socialmente adequado é cumprir a lei e não viola-la de maneira consciente, com prejuízo também para o fisco e a sociedade como um todo. A propósito do tema o Superior Tribunal de Justiça, em decisão relatada pelo ministro Gilson Dipp fixou entendimento contrário à tese da adequação social, com argumentos impossíveis de serem respondidos:

Acórdão HC 150901 / MG HABEAS CORPUS

CRIMINAL. HABEAS CORPUS. VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL. COMPRA E VENDADE CD’S E DVD’S "PIRATAS". ALEGADA ATIPICIDADE DA CONDUTA. PRINCÍPIODA ADEQUAÇÃO SOCIAL. INAPLICABILIDADE. INCIDÊNCIA DA NORMA PENALPREVISTA NO ART. 184, § 2º, DO CÓDIGO PENAL. ORDEM DENEGADA.
I – Os atos praticados pelo paciente não foram negados em qualquer fase da tramitação processual; ao revés, foi dito expressamente que o paciente sobrevive da economia informal e "ganhava sua vida HONESTAMENTE vendendo Cd’s e DVD’s, copiados através de computador".
II – A conduta se enquadra na hipótese prevista no art. 184, § 2º, do Código Penal, não podendo ser afastada a aplicação da norma penal incriminadora, tampouco alegar-se que a conduta é socialmente adequada ou que o costume se sobrepõe à lei neste caso.
III – O combate à pirataria é realizado por órgãos e entidades, governamentais e não-governamentais, a exemplo do Conselho Nacional de Combate à Pirataria, vinculado ao Ministério da Justiça, e de órgãos de defesa da concorrência e defesa dos direitos autorais, da INTERPOL, entre outros.
IV – Há relação direta entre a violação de direito autoral e o desestímulo a artistas e empresários, inclusive da indústria fonográfica, e a burla ao pagamento de tributos, acarretando prejuízos de grande monta ao Poder Público e à iniciativa privada e, por vezes, incitando a prática de outros delitos.
V – Ordem denegada. 

Igualmente o acórdão do Colendo STF, relatado pelo ministro Ricardo Lewandowski, ao decidir sobre caso de “pirataria”, lembrou que: “Não se pode considerar socialmente tolerável uma conduta que causa enormes prejuízos ao Fisco, pela burla do pagamento de impostos, à indústria fonográfica nacional e aos comerciantes regularmente estabelecidos” (HC 98.898/SP, julgado em 20/4/2010).

Outra dificuldade constantemente imposta em algumas decisões é exigir que os titulares dos direitos autorais sejam identificados e ouvidos pela polícia para confirmar que não autorizaram ou cederam o seu direito autoral para que certa pessoa vendesse a sua obra em discos feitos de maneira precária, nas feiras ou nas esquinas de qualquer cidade.

Tal exigência é absurda pois uma vez encontradas dezenas ou centenas de produtos visivelmente falsificados e fora dos padrões de identificação da indústria fonográfica ou de filmes, impossível é fazer a prova negativa, de que não os direitos não foram cedidos.

Ao contrário, quando se apreende produto visivelmente falsificado e fora do padrão sendo comercializado, cabe a quem pratica a conduta provar que tinha autorização, o que não ocorre pelo fato da mesma não existir. A exigência do depoimento dos titulares do direito autoral inviabilizaria totalmente a persecução penal, sendo desnecessária em ação penal que, como regra, é pública incondicionada.

Mesmo com a existência do artigo 530-H do Código de Processo Penal, o qual dispõe sobre a assistência de acusação por parte das associações de titulares de direito do autor, a exigência da presença destes ou de seus representantes em centenas de delegacias de Polícia espalhadas pelo Brasil afora, tornaria inviável a efetiva proteção penal do direito autoral, levando-se em consideração ainda que somente parte dos crimes praticados chegam à Justiça.

Outra questão usada para tentar levar ao insucesso a ação penal diz respeito a impugnar o laudo de exame de corpo de delito que examinou um pequeno número de discos falsificados por amostragem e não as centenas de produtos apreendidos com todos os sinais de falsificação.

Óbvio está que é necessário o exame pericial em crime que deixa vestígios mas o fato é que basta uma perícia apta numa quantidade de discos menor do que apreendida, para que o crime fique comprovado.

Não se deve dizer, tal como alegado, que a proteção penal do direito autoral simplesmente gera a criminalização da pobreza. Tal argumento também poderia ser usado em relação ao tráfico de drogas ou ao jogo ilegal, e isso acarretaria uma situação de imunidade penal inexistente, sendo que toda atividade criminosa praticada em massa traz danos inegáveis ao bem que precisa ser protegido.

Também não se diga que a persecução penal acarreta a prisão indevida dos autores de tais delitos. A pena de dois a quatro anos de reclusão permite a sua substituição por penas restritiva de direitos e o regime aberto. O encarceramento não é normalmente a solução adequada nesses casos.

O que a sociedade e os aplicadores do Direito precisam considerar é que a proteção penal do direito autoral é legítima e deve ser feita, não podendo o Poder Judiciário negar a aplicação da lei quando provado o delito e sua autoria. É verdade que o histórico de impunidade dos crimes de alta corrupção somente agora está sendo alterado no Brasil e que o Direito Penal nunca poderá resolver tudo.

Também é verídico que num país desigual como o nosso, o sistema de aplicação da lei penal acaba reproduzindo em alguma medida essa desigualdade. É profundamente frustrante que somente em tempos mais recentes o Poder Judiciário esteja apreciando ações penais contra apontados grandes criminosos econômicos, corruptos e corruptores. No entanto, não se constrói um país civilizado sem a disposição de cumprir a lei e garantir direitos.

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    é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Foi Procurador Geral de Justiça nos biênios 1996/1998, 1998/2000 e 2002/2004 e Secretário da Justiça e Defesa da Cidadania do Governo do Estado de São Paulo no período de 2007/2010.

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