Reforma do código

Parágrafo sobre desistência de recurso do novo CPC gera incômodo

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9 de novembro de 2014, 6h21

Após as discussões nas duas casas do poder Legislativo, o novo Código de Processo Civil aproxima-se da sua aprovação no Senado Federal. Após, para a conclusão de sua análise, restará, tão somente, a sanção presidencial. Durante a relativamente breve tramitação do projeto de lei, diversas modificações, fruto das sugestões dos processualistas de todo o Brasil, ajudaram a moldar a faceta atual do projeto do novo código.

Em uma obra de tamanha envergadura, por óbvio, problemas podem — e devem — ser identificados. Alguns dispositivos merecem reparos, seja por problemas em sua redação, seja em decorrência da inadequação com a própria sistemática recursal, fruto de uma discussão apressada durante a tramitação legal. Várias sugestões para melhora do texto legal emergiram do fórum de discussão, em especial, no Fórum Permanente de Processualistas Civis, que ora caminha para o seu quarto encontro, na cidade de Belo Horizonte.

Neste diapasão, destaca-se grave vício na atual redação do novo CPC, concernente à desistência do recurso. Sobre tal matéria, como leciona Humberto Theodoro Júnior: “Dá-se a desistência quando, já interposto o recurso, a parte manifesta a vontade de que não seja ele submetido ao julgamento. Vale por revogação da interposição.[1] Difere a desistência da renúncia, instituto processual que emerge quando a parte vencida não exercita, oportunamente, o seu direito de recorrer. Ou seja, a desistência pressupõe recurso já interposto.[2]

Não é demais relembrar que a desistência do recurso não se confunde, em qualquer hipótese, com a desistência da ação. Enquanto esta depende a aquiescência da parte contrária (artigo 267, parágrafo 4º do CPC atual; artigo 472, parágrafo 4º do CPC projetado), uma vez que pode ter ela interesse no julgamento da ação; aquela necessariamente beneficiará a parte contrária, que já possui em seu favor uma decisão judicial.

Dispõe o novel diploma processual, no artigo 1.011, que “o recorrente poderá, até a data de publicação da pauta, sem a anuência do recorrido ou dos litisconsortes, desistir do recurso”. Inseriu o legislador limitação temporal para exercício da válida desistência, limitando-a a inclusão do recurso na pauta de julgamento. Na atual redação do CPC, conforme dispõe o artigo 501, inexiste tal limitação: “O recorrente poderá, a qualquer tempo, sem a anuência do recorrido ou dos litisconsortes, desistir do recurso”.

Ao que parece, a limitação da desistência do recurso somente até a data da publicação da pauta restringe, de forma desnecessária, o direito da parte recorrente. Com efeito, até o momento em que foi proclamado o julgamento, não houve decisão judicial sobre o recurso, de modo que manifestamente lícita seria a desistência do recurso.[3]

Entretanto, causa espécie o parágrafo único do artigo 1.011, cuja redação dispõe:

Parágrafo único. A desistência do recurso não impede a análise de questão cuja repercussão geral já tenha sido reconhecida e daquele objeto de julgamento de recursos extraordinários ou especiais repetitivos.

Aqui, pouca margem há para a interpretação: caso seja o recurso escolhido como o paradigma na sistemática dos recursos repetitivos, ou cuja repercussão geral tenha sido reconhecida na via extraordinária, haverá a restrição ao direito de desistência da parte recorrente, independentemente de sua inclusão na pauta.

Entretanto, tal dispositivo está em manifesta rota de colisão com a própria natureza jurídica da jurisdição. Ora, não há qualquer novidade quando se afirma que a jurisdição, entendida enquanto poder do Estado de aplicar a regra jurídica e dirimir as controvérsias,[4] tem o dever de atuar quando validamente provocada pelo jurisdicionado (nemo iudex sine actore, ne procedat judex ex officio). Trata-se da simples aplicação do princípio da inércia da jurisdição. Não há julgamento de ofício.

Por sua vez, o parágrafo único do artigo 1.011 do novo CPC, de forma expressa, autoriza que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça entreguem a prestação jurisdicional ainda que a parte não tenha mais interesse no julgamento do seu recurso. Assim, o julgamento de recurso extraordinário no qual a repercussão geral foi reconhecida, bem como o recurso especial paradigma na sistemática dos recursos repetitivos, será feito de ofício.

Não parece incorreta a conclusão de que tal dispositivo foi incluído para legitimar o posicionamento já adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, oriundo do julgamento do Recurso Especial 1.063.343-RS, que tramitou na 3ª Turma, sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi.

Durante a tramitação do referido recurso na corte especial, em que havia sido escolhido para julgamento como recurso repetitivo, houve a formulação de pedido de desistência pelo recorrente. Em razão disso, a relatora suscitou questão de ordem e levou o caso para a apreciação da corte especial do STJ que, oportunamente, afastou a homologação da desistência. No voto condutor da ministra Nancy Andrighi no julgamento da questão de ordem, a fundamentação lastreou-se na suposta conjugação dos interesses público e privado, bem como na função unificadora atribuída ao STJ pela Constituição Federal. Argumentou, com base em premissas eminentemente práticas, que “não se pode olvidar outra grave consequência do deferimento de pedido de desistência puro e simples com base no artigo 501 do CPC, que é a inevitável necessidade de selecionar novo processo que apresente a idêntica questão de direto, de ouvir os amici curiae, as partes interessadas e o Ministério Público, oficiar todos os tribunais do país, e determinar nova suspensão, sendo certo que a repetição deste complexo procedimento pode vir a ser infinitamente frustrado em face de sucessivos e incontáveis pedidos de desistência. A hipótese não é desarrazoada, por ser da natureza das lides repetitivas que exista uma parte determinada integrando um de seus polos”.

Em seguida, a mencionada decisão serviu de paradigma para o indeferimento do pedido de desistência formulado em outros recursos também submetidos à sistemática dos recursos repetitivos, conforme atestam os Recursos Especiais 1.111.148/SP, 1.129.971/BA, e 689.439/PR.

Cumpre aqui esclarecer que o posicionamento adotado pela corte no precedente 1.063.343-RS, por mais criticável que seja, deve ser combatido por meio da superação da decisão judicial (overruling)[5]. Ou seja, o próprio sistema vigente depurará a decisão em dissonância com a legislação. O que não se pode admitir, em hipótese alguma, é a concessão de poder ao juiz para decidir recursos independentemente do interesse das partes. Até mesmo porque, como afirma Dierle Nunes “a adoção de uma interpretação dinâmica do contraditório dinâmico (artigo 5, inciso LV, CRFB/88), fortalecida no CPC projetado como premissa interpretativa de todo seu sistema comparticipativo/cooperativo (art 7º e 10), exige que seus institutos (todos) permitam a indução de um perfil dialógico entre todos os sujeitos processuais.”[6]

Não se questiona aqui que os elementos de repercussão geral e julgamento conforme sistemática dos recursos repetitivos implicam na identificação de um interesse supraindividual do processo. Ainda assim, o processo depende da provocação da parte interessada. Se a parte recorrente não deseja que seu processo sirva como futuro precedente, não cabe ao tribunal optar pela manutenção do processo quando a parte interessada manifesta que não possui o interesse de que aquele litígio sirva de moldura para decisões posteriores.

Como solução para tal impasse, bastaria, de forma simplificada, que o relator do processo no qual a parte pretende desistir de recorrer, escolha outro recurso para servir de paradigma, ainda que tal medida importe em dispêndio de tempo e esforço para garantir o contraditório e participação de todos os interessados. O que não se pode autorizar, em cenário algum, é a atuação jurisdicional desprovida de qualquer interesse das partes.

Cabe destacar que na atual fase de tramitação do projeto de lei acerca do novo CPC perante o Senado Federal, impossível se torna a inserção de acréscimos no texto. É permitida apenas a retirada parcial ou total de determinado dispositivo. Portanto, diante dos problemas apresentados, melhor seria se o legislador simplesmente retirasse o parágrafo único do artigo 1.011, restringindo tal questão à necessária superação do precedente da corte especial do STJ.

Mesmo porque, o que não se pode ser legislado, parece certo, é a permissão legal para o pronunciamento jurisdicional sem o imprescindível interesse de, ao menos, um dos litigantes.


[1] THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I. 51ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 583.

[2] SOUZA, Bernardo Pimentel. Introdução ao Direito Processual Civil. Volume III – Recursos Cíveis e Ação Rescisória. 9ª edição, 2012, p. 86.

[3] SOUZA, Bernardo Pimentel. Introdução ao Direito Processual Civil. Volume III – Recursos Cíveis e Ação Rescisória. 9ª edição, 2012, p. 90.

[4] THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I. 51ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 44.

[5] Para uma compreensão adequada do tema cf. BUSTAMANTE, Thomas. Teoria do Precedente Judicial: A justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012.

[6] NUNES, Dierle. Afastamento de Precedente não Pode Continuar Sendo Regra. Conjur, 4/6/2014. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-jun-04/dierle-nunes-afastamento-precedente-nao-regra.

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