Embargos Culturais

A candidatura de Amélia Beviláqua
à Academia Brasileira de Letras

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

9 de novembro de 2014, 7h00

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Há fato interessante ocorrido na vida do jurista cearense Clóvis Beviláqua e de sua esposa, a escritora Amélia Freitas, envolvendo a Academia Brasileira de Letras, que suscita pequena nota, em coluna que se dispõe a resgatar e comentar referências de nossa cultura, o que justifica — inclusive — o seu título: embargos culturais. O episódio da candidatura de Amélia Beviláqua à Academia Brasileira de Letras é tratado por quase todos os biógrafos de Clóvis, especialmente por Silvio Meira[1] e por Antonio Joaquim de Figueiredo[2], de onde colho as observações que seguem.

Clóvis foi membro fundador da Academia. Ocupou a cadeira 14, cujo patrono é Franklyn Távora, autor de O Cabeleira, não menos importante representante da chamada Escola do Recife, que radica em Tobias Barreto e em Silvio Romero. A partir de 1906, quando passou a morar no Rio de Janeiro (onde atuou como consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores[3]), Clóvis frequentou o Petit Trianon.

Há uma anedota, de autoria incerta, dando conta de que Clóvis teimava em ir à Academia com a esposa, o que provocava entre alguns outros imortais, algum constrangimento, o que suscitara do jurista uma resposta elegante e altiva: “Lá fora deixo o meu chapéu e a minha bengala. Onde minha mulher não pode entrar, eu também não entrarei!”.

Amélia era culta, escrevia. Filha do desembargador José Marques de Freitas, conviveu na infância e na juventude com literatos que frequentavam a casa do pai, em Recife. Em 1907, publicou, com Clóvis, um livro que tratava de Literatura e Direito. Publicou também textos esparsos, organizou uma revista (Ciência e Letras), ainda que, bem entendido, dois historiadores de nossa literatura, à época, não mencionaram seu nome. Refiro-me a Silvio Romero e a José Veríssimo, o que, relevante, dada a amizade de Romero por Clóvis Beviláqua.

Em 1930, com o falecimento de Alfredo Pujol, Beviláqua teria sugerido à esposa que se candidatasse à vaga então aberta. Essa destemida candidatura, feminina, agitou os imortais. Amélia enviou carta ao presidente da Casa, Aloísio de Castro, propondo candidatura. O regulamento da Casa previa que brasileiros poderiam participar da confraria de letras; a expressão incluía mulheres? Para Clóvis, em artigo de jornal, segundo Antonio Joaquim Figueiredo, a resposta era positiva; Clóvis sustentou essa afirmação com base em parêmia que radicava no Digesto e em Gaio, que nos dá conta que “hominis appellatione tam foeminam quam masculum contineri non dubitatur”.

Laudelino Freire, Adelmar Tavares, Luiz Carlos, Augusto de Lima, Fernando de Magalhães, João Ribeiro e Afonso Celso votaram em favor da candidatura da esposa de Clóvis. Entre os opositores da pretensão, Gustavo Barroso, Rodrigo Octávio, Olegário Mariano, Constâncio Alves, Silva Ramos, Coelho Neto e o próprio Aloísio de Castro. Publicada originariamente no Jornal do Comércio de 1930, a decisão da ABL, informa-nos Antonio Joaquim Figueiredo, foi no sentido de que “na expressão os brasileiros do artigo 2º dos Estatutos só se incluíam indivíduos do sexo masculino”. Clóvis insistia, no entanto, que, “se os estatutos não proíbem, permitem”.

Vencido, Clóvis entendeu altaneiramente a situação, como se lê em carta que escreveu a Laudelino Freire, reproduzida no livro de Antonio Joaquim Figueiredo: “Fecharam, rudemente, as portas da Academia, para Amélia, a quem se não pode recusar o título de fina artista da palavra escrita, à vista de numerosos trabalhos publicados, nos quais o sentimento e a ideia se exprimem por forma correta e límpida. Ainda quando lhe recusem uma cadeira no recinto acadêmico, por não quebrarem a norma rotineira, devia merecer a atenção, e o tratamento delicado, a quem tem direito, como escritora e como mulher da sociedade”. A presença de uma mulher na Academia Brasileira de Letras ocorreu somente em 1977 quando Rachel de Queiroz ocupou a cadeira número 5.


[1] Meira, Silvio, Clóvis Beviláqua, sua vida e obra, Fortaleza: Edições da Universidade Federal do Ceará, 1990, pp. 291 e ss.
[2] Figueiredo, Antonio Joaquim, Aspectos da vida e do estilo de Clóvis Beviláqua, Rio de Janeiro e São Paulo: Freitas Bastos, 1960, pp. 122 e ss.
[3] Tratei desse assunto em meu livro Clóvis Beviláqua- Internacionalista e Pacifista, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2012.

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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