A solitária voz de Adaucto Lúcio Cardoso e o processo constitucional brasileiro
8 de novembro de 2014, 7h00
Na linha do desenvolvimento iniciado em 1934 e continuado na Constituição de 1946, com a possibilidade de propositura de representação interventiva, passou-se a entender, após a EC 16/65, que o Procurador- Geral da República poderia oferecer representação de inconstitucionalidade e apresentar, posteriormente, parecer contrário. Essa disciplina foi mantida na Constituição de 1967 e na EC 1, de 1969.
Em 1970, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), único partido da oposição representado no Congresso Nacional, solicitou ao Procurador-Geral da República, titular exclusivo do direito de propositura, a instauração do controle abstrato de normas contra o decreto-lei que legitimava a censura prévia de livros, jornais e periódicos[1]. Este determinou, contudo, o arquivamento da representação, negando-se a submeter a questão ao Supremo Tribunal Federal, uma vez que, na sua opinião, não estava constitucionalmente obrigado a fazê-lo.
O MDB propôs reclamação perante o Supremo Tribunal Federal, pugnando pela obrigatoriedade de o PGR conduzir a representação à apreciação da Corte, mas a ação foi rejeitada. O STF entendeu que apenas o Procurador-Geral poderia decidir se e quando deveria ser oferecida representação para a aferição da constitucionalidade de lei[2].
Ao proferir voto – vencido – no julgamento da Rcl. 849, Adaucto Lucio Cardoso evidenciou sua preocupação histórica com a decisão que se estava a delinear. Em sua percepção, “a conjuntura em que nos vemos e o papel do Supremo Tribunal Federal estão a indicar, para minha simplicidade, que o art. 2º, da L. 4.337, de 1.6.64, o que estabeleceu para o Procurador-Geral da República foi o dever de apresentar ao S.T.F., em prazo certo, a argüição de inconstitucionalidade formulada por qualquer interessado. O nobre Dr. Procurador apreciou desde logo a representação, não para encaminhá-la, com parecer desfavorável, como lhe faculta o Regimento, mas para negar-lhe a tramitação marcada na lei e na nossa Carta Interna. Com isso, ele se substituiu ao Tribunal e declarou, ele próprio, a constitucionalidade do Dl. 1.077-70. Essa é para mim uma realidade diante da qual não sei como fugir.”
O ministro fez referência à Lei 4337/64, que regulou a representação de inconstitucionalidade e, na redação do artigo 2º, previu que “se o conhecimento da inconstitucionalidade resultar de representação que lhe seja dirigida por qualquer interessado, o Procurador-Geral da República terá o prazo de 30 (trinta) dias, a contar do recebimento da representação, para apresentar a arguição perante o Supremo Tribunal Federal.”.
Registre-se ainda que a questão foi inserida ao ordenamento constitucional pela EC/65 (representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral) e sofreu pequena alteração na Constituição de 1967 e de 1967/69 (representação do Procurador-Geral da República, por inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual[3]). Em 1970, o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal[4] positivou, no plano processual, a orientação que balizara a instituição da representação de inconstitucionalidade entre nós e consagrou: provocado por autoridade ou por terceiro para exercitar a iniciativa prevista neste artigo, o Procurador-Geral, entendendo improcedente a fundamentação da súplica, poderá encaminhá-la com parecer contrário (artigo 174, parágrafo 1º).
Nesse contexto, o ministro Luiz Gallotti interpelou Adaucto Lucio Cardoso sobre o Regimento vigente do STF e indicou que, segundo seu texto, o Procurador-Geral poderia encaminhar a representação com o parecer contrário. Retrucou Adaucto, então: “considero o argumento de Vossa Excelência com o maior apreço, mas com melancolia. Tenho a observar-lhe que, de janeiro de 1970 até hoje, não surgiu, e certamente nem surgirá ninguém, a não ser o Partido Político da Oposição, que a duras penas cumpre o seu papel, a não ser ele, que se abalance a argüir a inconstitucionalidade do decreto-lei que estabelece a censura prévia.”.
A discussão prosseguiu e Gallotti questionou se escritores ou empresas não poderiam fazê-lo, já que o caso versava sobre censura prévia de livros, jornais e periódicos, ao que Adaucto ponderou: “V. Excia. está argumentando com virtualidades otimistas, que são do seu temperamento. Sinto não participar das suas convicções e acredito que o Tribunal, deixando de cumprir aquilo que me parece a clara literalidade da L. 4.337, e deixando de atender também á transparente disposição do § 1º, do art. 174 do Regimento, se esquiva de fazer o que a Constituição lhe atribui e que a L. 4.337 já punha sobre seus ombros, que é julgar a constitucionalidade das leis, ainda quando a representação venha contestada na sua procedência, na sua fundamentação, pelo parecer contrário do Procurador-Geral da República. É assim que entendo a lei, que entendo a Constituição, e é assim também que entendo a missão desta Corte, desde que a ela passei a pertencer, há quatro anos.”
Vencido nesse julgamento, ocorrido em 10 de março de 1971, Adaucto Lucio Cardoso, com 66 anos de idade, requereu sua aposentadoria, em 31 de março de 1971.
Após a decisão, o tema continuou na pauta das discussões jurídicas do país. No mesmo ano, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em sessão de nove de julho de 1971, manifestou-se pela correção da posição assumida pelo Supremo Tribunal Federal na Reclamação nº 849. Redator designado para a lavratura da decisão, Raymundo Faoro ressaltou, ao final de seu voto, que “no caso brasileiro, a uma autoridade do Poder Executivo compete, privativamente, o exercício da representação, em atividade voltada à guarda da Constituição”[5].
Autores de renome, como Pontes de Miranda[6], Josaphat Marinho[7] e Themístocles Cavalcanti[8] externaram o entendimento no sentido da obrigatoriedade de o Procurador-Geral da República submeter a questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, ressaltando a impossibilidade de se alçar o chefe do Ministério Público à posição de juiz último da constitucionalidade das leis[9]. Outros, não menos ilustres, como Celso Agrícola Barbi[10], José Carlos Barbosa Moreira[11], José Luiz de Anhaia Mello[12], Sérgio Ferraz[13] e Raymundo Faoro[14], reconheceram a faculdade do exercício da ação pelo Procurador-Geral da República.
A despeito do esforço despendido, o incidente com Adaucto Lucio Cardoso não contribuiu — infelizmente, ressalte-se — para que a doutrina constitucional brasileira definisse a natureza jurídica do instituto da representação de inconstitucionalidade[15].
Não restou assente sequer a distinção necessária e adequada entre o controle abstrato de normas (representação de inconstitucionalidade) e a representação interventiva. Não se percebeu, igualmente, que, tal como concebida, a chamada representação de inconstitucionalidade tinha, em verdade, caráter dúplice ou natureza ambivalente, permitindo ao Procurador-Geral submeter a questão constitucional ao Supremo Tribunal quando estivesse convencido da inconstitucionalidade da norma ou, mesmo quando convencido da higidez da situação jurídica, surgissem controvérsias relevantes sobre sua legitimidade.
O objetivo almejado com a fórmula adotada pela EC 16/65 não era que o Procurador-Geral instaurasse o processo de controle abstrato com o propósito exclusivo de ver declarada a inconstitucionalidade de lei, até porque ele poderia não tomar parte na controvérsia constitucional ou, se dela participasse, estar entre aqueles que consideravam válida a lei.
Se correta essa orientação, parece legítimo admitir que o Procurador-Geral da República tanto poderia instaurar o controle abstrato de normas, com o objetivo precípuo de ver declarada a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo (ação declaratória de inconstitucionalidade ou representação de inconstitucionalidade), como poderia postular, expressa ou tacitamente, a declaração de constitucionalidade da norma questionada (ação declaratória de constitucionalidade).
A falta de maior desenvolvimento doutrinário e a própria balbúrdia conceitual em torno da representação interventiva[16] — confusão essa que contaminou os estudos do novo instituto — não permitiram que essas ideias fossem formuladas com a necessária clareza[17]. A própria disposição regimental era equívoca, pois, se interpretada literalmente, reduziria o papel do titular da iniciativa, o Procurador-Geral da República, ao de um despachante autorizado, que poderia encaminhar os pleitos que lhe fossem dirigidos, ainda que com parecer contrário.
Embora o Supremo Tribunal Federal tenha considerado inadmissível representação na qual o Procurador-Geral da República afirmava, de plano, a constitucionalidade da norma[18] – a iniciativa foi de Sepúlveda Pertence -, é certo que essa orientação, calcada em interpretação literal do texto constitucional, não parecia condizente com a natureza do instituto e com a sua práxis desde a sua adoção pela EC 16/65.
Em substância, era indiferente que o Procurador-Geral sustentasse, desde logo, a constitucionalidade da norma, ou que encaminhasse o pedido, para, posteriormente, manifestar-se pela sua improcedência. Essa análise demonstra claramente que, a despeito da utilização do termo representação de inconstitucionalidade, o controle abstrato de normas foi concebido e desenvolvido como processo de natureza dúplice ou ambivalente.
Se o Procurador-Geral estivesse convencido da inconstitucionalidade, poderia provocar o Supremo Tribunal Federal para a declaração de inconstitucionalidade. Se, ao revés, estivesse convicto da legitimidade da norma, então poderia instaurar o controle abstrato com a finalidade de ver confirmada a orientação questionada.
Daí ter o saudoso Victor Nunes Leal observado, em palestra proferida na Conferência Nacional da OAB de 1978 (Curitiba), que, “em caso de representação com parecer contrário, o que se tem, na realidade, sendo privativa a iniciativa do Procurador-Geral, é uma representação de constitucionalidade[19]”
A identificação da natureza dúplice do instituto parece retirar um dos fortes argumentos do Procurador-Geral, que se referia à sua condição de titular da ação para fazer atuar a jurisdição constitucional. A possibilidade de pedir a declaração de constitucionalidade deitaria por terra essa assertiva, convertendo o pretenso “direito” de propor a ação direta num “poder-dever” de submeter a questão constitucional relevante ao Supremo, sob a forma de representação de constitucionalidade.
Portanto, uma análise mais detida da natureza do instituto da representação de inconstitucionalidade permitiria recomendar uma releitura ou, quiçá, um censura ao entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, propiciando-se, assim, uma nova compreensão — ainda que apenas com valor de crítica histórica — da orientação sustentada pela Procuradoria-Geral da República e avalizada pelo STF.
Aqui se afigura inevitável reconhecer que a voz solitária de Adaucto Lucio Cardoso no julgamento de 10 de março de 1971 é admirável. Preocupou-se, então, substancialmente, em garantir o exercício amplo da jurisdição da Corte em delicado momento da vida nacional, marcado por um cenário político bastante limitado. No caso, consignou de forma expressa sua não conformidade com solução que enfraquecia ainda mais as possibilidades de um jogo democrático já deficiente, em período da vida pública brasileira em que a oposição estava confiada a um único partido.
Sua preocupação ao rejeitar a delimitação do exercício da jurisdição do Supremo Tribunal Federal, em verdade corresponde ao pensamento político contemporâneo, no sentido do fortalecimento da democracia, do livre exercício do jogo político e, especialmente, do papel da jurisdição constitucional na defesa da minoria.
Alguns anos mais tarde, com a Constituição de 1988, a ampliação do direito de propositura da ação direta de inconstitucionalidade e o desenvolvimento da ação declaratória de constitucionalidade como autêntica ação direta de inconstitucionalidade com “sinal trocado” deram, por fim, razão ao que fora defendido por ele há mais de quarenta anos, chancelando a importância desse jurista ao cenário histórico-constitucional brasileiro.
É muito difícil prever o que teria acontecido no plano constitucional se o STF tivesse adotado a linha defendida por Adaucto Lucio Cardoso. É inegável, porém, que a decisão que fortaleceu o monopólio da ação direta nas mãos do Procurador- Geral da República e a crítica que se seguiu a partir do gesto de protesto contribuíram, decisivamente, para a adoção de um modelo de legitimação aberto pelo Constituinte de 1988 (CF, artigos 102, I, a, 103 e 125, parágrafo 2º).
Nesse ponto, talvez não haja exagero em afirmar que, com o caráter de denúncia constante de seu voto e com o protesto representado por sua aposentadoria, Adaucto Lucio Cardoso passou a figurar como um dos pais fundadores do processo constitucional brasileiro, que tem um dos seus pilares na abertura da legitimação no processo de controle abstrato de normas.
Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).
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