Ideias do Milênio

Para que seja o século do Brasil, o país precisa de nova rodada de reformas

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7 de novembro de 2014, 14h06

Entrevista concedida pelo jornalista do The Economist Michael Reid, autor do livro Brasil a isenção turbulenta de uma potencia global, ao jornalista Silio Boccanera, para o programa Milênio, da GloboNews. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira com repetições às terças-feiras (11h30 e 17h30), quartas-feiras (5h30), quintas-feiras (6h30 e 19h30) e domingos (7h05).

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Michael Reid [Reprodução]A conceituada revista semanal britânica The Economist de circulação internacional, com influência nos meios financeiros e políticos, publicou duas capas sobre o Brasil em anos recentes, reflexo de sua visão favorável ao mercado e refratária ao Estado participativo. Em 2009 mostrou o país com a estátua do Cristo decolando para uma nova órbita de prosperidade, quatro anos depois a capa apontava a trajetória brasileira reversa com voo abortado e queda acentuada. As capas refletiam os artigos editoriais sobre o Brasil na revista escritos na época, como são hoje, por Michael Reid (foto), especialista em América Latina, ex-correspondente da revista de São Paulo, contínuo observador do Brasil. Com um ponto de vista pró-mercado que por certo não agrada todas as linhas políticas e econômicas. Ele agora lança na Inglaterra e nos Estados Unidos o livro Brasil a isenção turbulenta de uma potencia global, já com versão em português. Em meio a muitas tentativas de explicar o Brasil o livro de Michael Reid oferece uma perspectiva de fora, um olhar estrangeiro sobre a formação do país e dos tempos recentes na política e na economia.

Silio Boccanera — Vamos começar pelas polêmicas capas da The Economist, que tiveram a sua participação. A de 2009 mostra o Brasil decolando. Estávamos indo bem. E, quatro anos depois, o Brasil implodiu. Não são capas exageradas, sem nuances?
Michael Reid —
Capas de revistas não podem ter nuances. Devem passar uma mensagem principal clara. E o que tentamos expressar e capturar com essas capas for um momento, uma sensação, no Brasil e em relação ao Brasil. Mas é claro que as nuances são importantes. Esse foi um dos motivos que me levaram a escrever um livro sobre o Brasil. Em 300 páginas, dá para analisar profundamente as nuances. Mas eu começo o livro com aquele momento em 2009. Bem na época em que publicamos aquela capa, eu vi Lula, aqui em Londres, falar numa conferência, e ele expressou aquela sensação de que se tratava de um momento mágico para o Brasil. Mas depois eu cito Fernando Henrique Cardoso dizendo que, no Brasil, esperança seguida por decepção é um padrão recorrente.

Silio Boccanera — No livro, você traça paralelos entre os governos de Lula e Dilma e o de Ernesto Geisel, um ditador de direita. Onde vê paralelos?
Michael Reid —
Há detalhes parecidos, por exemplo na política externa: a política externa independente de Geisel de aproximação com a África. Existem paralelos também na política industrial. Mas acho que o paralelo fundamental é um grande paradoxo na história brasileira recente. Lula surge enquanto figura pública no Brasil como um insurgente contra o corporativismo estabelecido por Getúlio. E ele é um líder sindicalista não oficial afinal, um insurgente contra os sindicatos oficiais durante o governo Geisel. Ainda assim, acho que o PT acabou se reconciliando com o Estado corporativo no Brasil. Por Estado corporativo quero dizer o Estado que gasta 38% do PIB e que grande parte disso é gasta em privilégios para grupos organizados dentro do sistema. E o dilema que o Brasil enfrenta é que precisa gastar mais com quem é de fora, com a saúde, com saneamento, com infraestrutura, com educação e coisas assim, certo? E acho que a chegada de Lula ao poder foi muito importante porque ele representava e simbolizava a demanda pela universalização da cidadania no Brasil, que era uma lacuna histórica, um legado histórico… A falta de cidadania era um legado histórico da escravidão. Por isso a eleição de Lula foi tão importante para o Brasil.

Silio Boccanera — Você menciona no livro – vou ler um trecho – o seguinte: “Após doze anos no poder, o PT parece cansado e desprovido de ideias.” Quais são os sinais disso?
Michael Reid —
Acho que é possível ver isso na falta de uma resposta eficaz aos protestos de junho de 2013. Em primeiro lugar, acho que é preciso dar crédito a Dilma por defender o direito democrático de protestar, ao contrário de Erdogan, na Turquia, na mesma época. Mas, tirando isso, o PT ficou obviamente surpreso, perplexo com os protestos, porque ele detinha o monopólio da rua, digamos, e perdeu isso. E como o governo reagiu? Primeiro cogitou uma assembleia constituinte, o que seria inconstitucional e não era essa a questão. Depois, um plebiscito sobre a reforma política. Acho que a demanda pela reforma política estava no centro dos protestos. Mas não se pode fazer reforma política com plebiscito, porque corre-se o risco de obter respostas inconsistentes. Os pactos falavam muito em gastar mais, mas nada sobre onde cortar para gastar mais na saúde, por exemplo. Acho que ele teve dificuldade de se adaptar ao que vejo como as demandas pela reforma do Estado e do sistema político. Não vi nenhuma resposta para isso, e aquele comercial de TV caprichado sobre os fantasmas do passado mostrou uma visão retrógrada do que está em jogo nas eleições do Brasil: onde estão as novas ideias?

Silio Boccanera — Se analisarmos o outro lado da moeda, no seu livro, você não esconde uma admiração por Fernando Henrique Cardoso, não só como presidente. Quais foram as conquistas dele?
Michael Reid —
Sem dúvida, ele estabeleceu a base para que a democracia fosse viável no Brasil, e isso foi importante porque, em 1993, os brasileiros estavam muito pessimistas. A maioria dos analistas externos também estava pessimista em relação às perspectivas de outra república enfrentar as tarefas básicas que tinha pela frente: combater a inflação, estabilizar a economia e atacar a pobreza, a desigualdade e o legado histórico da falta de cidadania universal. Acho que Fernando Henrique estabeleceu a base para isso. É claro que os indicadores econômicos não foram tão bons quanto poderiam ter sido. A confiança no Real forte para acabar com a inflação, acho que a história mostrará que isso foi questionável. Da mesma forma, olhando para trás, eles claramente deveriam ter sido mais duros e mais rápidos na faxina das finanças públicas. Mas não era fácil. Até avançaram bastante. E, no segundo mandato, embora a popularidade de FHC tenha sofrido com a desvalorização e com o problema do apagão, da Argentina e tal, ele instituiu a estrutura macroeconômica básica que permitiu a aceleração do crescimento.

Silio Boccanera — Em alguns países desenvolvidos, o papel do Estado é bem forte. Na França, na Coreia do Sul e no Japão, o Estado tem papel importante na economia, mas por que parece ser ruim para os países em desenvolvimento que o Estado intervenha tanto na economia?
Michael Reid —
Em primeiro lugar, eu diria que, no Brasil, foi o Estado que conduziu o crescimento econômico de 1930 a 1982, e o Brasil provavelmente foi a economia que mais cresceu no mundo nesse período. Mas há uma questão mais profunda sobre o Estado no Brasil. Um terço do livro trata da história, isso porque o caráter excepcional do Brasil, que eu acho mesmo ser um país de exceções, assim como os EUA, de uma forma diferente, e há paralelos e contrastes interessantes. Uma das características dessa exceção é precisamente o papel central do Estado no Brasil, e acho que isso está ligado ao fato de que… Percebi algo interessante lendo sobre a história brasileira, que é o temor entranhado da fragmentação nacional, por causa de seu território vasto e de uma potência colonial fraca, Portugal. E o Brasil não se fragmentou. Isso não aconteceu devido à forma como o Estado evoluiu, ao papel da monarquia etc. Mas a fragmentação foi evitada porque o Estado fez acordos com potentados locais, com os coronéis, como vocês chamam. E isso teve um preço. Então há muito poucos liberais genuínos, da Escola de Manchester, no sentido britânico da palavra, no Brasil, porque a direita também gosta do Estado, e apela a ele para obter cargos, empregos etc.

Silio Boccanera — Quem defende o PT no poder, seja com Lula ou com Dilma, destaca conquistas, e quero saber a sua opinião: desemprego baixo, milhões saindo da pobreza, classe média crescendo, Bolsa Família e seus benefícios, mais pessoas fazendo três refeições por dia, salário mínimo mais alto, novas escolas técnicas e universidades. É propaganda ou são conquistas reais?
Michael Reid —
São conquistas reais em muitos casos. Pode haver algum grau de propaganda em sua apresentação, mas são conquistas e as analiso no livro. E não defendo um Estado mínimo no livro, porque para os países se tornarem desenvolvidos, o Estado tem que ter um papel no fornecimento de uma série de benefícios públicos, principalmente para se tornarem democracias desenvolvidas. Mas se o Brasil der o próximo passo, se evitar a armadilha da renda média, se for na direção de se tornar uma democracia desenvolvida de classe média, acho que o Estado tem que fazer as coisas de uma forma um pouco diferente de como tem feito até agora, e essa é minha principal crítica. Mas acho que as políticas de Lula merecem crédito. O progresso social começou com FHC, mas continuou e acelerou com Lula. Mas acho que o Brasil agora está numa nova etapa. Não dá para continuar aumentando o salário mínimo indefinidamente sem que isso afete o crescimento e as empresas. Então o desafio agora é aumentar a produtividade, e é isso que o governo deve tratar como prioridade econômica.

Silio Boccanera — Você menciona a carga tributária no Brasil e o tamanho da fatia de impostos que vai para o governo. Mas quando a comparamos à de outros países, não parece tão exorbitante. A maior alíquota do imposto de renda no Brasil é 27%, enquanto aqui no Reino Unido é 45%. Para pessoas jurídicas é de 25%, na Alemanha é de 30%, no Japão, 35% e, nos EUA, 40%. Talvez nossos impostos não sejam tão pesados.
Michael Reid —
É preciso diferenciar o total de impostos pagos de como ele é distribuído. A diferença do sistema tributário do Brasil é que há muitos impostos indiretos e relativamente poucos impostos diretos. Isso é socialmente regressivo, no sentido de que os pobres pagam mais impostos do que os ricos. Então acho que o Brasil precisa de uma reforma tributária, mas nós sabemos que isso não é simples. Os brasileiros discutem isso há 20 anos. Não é simples porque o Brasil é um país genuinamente federalista, e reformas tributárias nesses países são ainda mais complicadas do que em Estados unitários. Mas acho que a comparação relevante é a do tamanho do Estado refletido pelos impostos e os gastos públicos enquanto fatia da economia. Geralmente, a carga tributária aumenta dentro da renda nacional conforme os países enriquecem. E o Brasil se destaca porque tem uma carga tributária semelhante à dos EUA ou à média da OCDE, mas os brasileiros não têm serviços do nível dos americanos ou da OCDE. É por isso que o povo quer “hospitais padrão Fifa”, e com razão, não é?

Silio Boccanera — Outra área que tem a ver com a imagem do Brasil no exterior é a questão do meio ambiente. Existem os clichês tradicionais de futebol, verão, garotas e praia, mas há o outro lado, que é: “Vocês destruíram a Floresta Amazônica.” Você acha que essa é a impressão que as pessoas têm fora do Brasil, de que é um desastre ambiental, a ponto de a Floresta Amazônica não existir mais? A impressão ainda é tão ruim assim?
Michael Reid —
Infelizmente, acho que ainda é. Impressões levam muito tempo para mudar. Eu falo sobre isso no livro. Uma das maiores conquistas da democracia brasileira nos últimos 20 anos — e há várias grandes conquistas — foi reverter a tendência do desmatamento. Foi uma conquista do governo mas também da sociedade. O que os estrangeiros não entendem é que a maior parte dos brasileiros se preocupa mais com a floresta tropical do que a maioria das pessoas, e várias pesquisas mostram que os brasileiros passaram a se informar mais sobre o meio ambiente, e acho que as discussões sobre o desmatamento, o meio ambiente e o código florestal são muito sofisticadas no Brasil. Os ambientalistas nem sempre vencem, mas há vozes sofisticadas no Brasil. E o fato de o Brasil ter dado passos enormes… Vinte anos atrás, a Amazônia estava fora de controle, assim como a inflação. Hoje, ela não está mais. Quer dizer…

Silio Boccanera — Há alguns abusos, mas…
Michael Reid —
E alguns defensores da floresta ainda são assassinados, mas houve uma mudança significativa no grau de controle sobre a floresta.

Silio Boccanera — Vamos tratar de outro assunto importante que você também toca no livro: a corrupção. Você, que estuda o Brasil há tantos anos, tem a sensação de que esse excesso de denúncias de corrupção, do mensalão à Petrobras e outras, acontece porque as pessoas e a imprensa estão mais atentas, ou sempre foi assim, ou piorou? O que acha?
Michael Reid —
Acho que é um pouco de ambos. Se o tamanho do Estado aumenta, há mais dinheiro, certo? E, conforme as eleições se tornam mais caras, há mais caixa dois. Ao mesmo tempo, mais promotores nos tribunais e a imprensa se tornaram mais obstinados na exposição da corrupção. Então são as duas coisas. Pela natureza das coisas, é muito difícil saber a resposta completa. Então acho que são as duas coisas, mas acredito que a corrupção e o mau uso do dinheiro público são questões que estavam no centro dos protestos de junho e que o mau uso do dinheiro público foi simbolizado pelos estádios da Copa do Mundo. E acho que se o sistema político brasileiro quiser reagir de forma eficaz àquela imensa demanda por mudanças que as pesquisas de opinião mostraram, o ataque à corrupção deve ser mais eficiente.

Silio Boccanera — O último capítulo do livro discute uma declaração que Lula fez sugerindo que o século 21 seria o século do Brasil. Você não concorda, não é?
Michael Reid —
Eu não discordo. Novamente, Lula foi esperto ao dizer isso em 2010, então tem 90 anos para que se confirme. O que eu digo é que, para que seja o século do Brasil, as coisas terão que mudar. Não vai acontecer automaticamente. Acho que o Brasil precisa de uma nova rodada de reformas. Ele encontrou o caminho da cidadania e do crescimento econômico na democracia, mas o ritmo do progresso nesse caminho diminuiu claramente nos últimos quatro anos. Para ser justo com Dilma, vários erros foram cometidos em 2008, na reação à crise financeira internacional. Acho que Lula e o PT concluíram que o modelo chinês tinha triunfado e que o Consenso de Washington tinha fracassado. E acho que eles chegaram às conclusões erradas até certo ponto. Portanto, para que seja o século do Brasil, o país precisa encontrar formas de continuar trilhando esse caminho mais rápido, e isso requer uma nova rodada de reformas, principalmente do Estado e do sistema político.

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