Passado a Limpo

I Guerra gerou debate jurídico sobre sequestro de bens de alemães no país

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

6 de novembro de 2014, 7h20

Spacca
O fim da Primeira Guerra Mundial, em 1919, exigiu do governo brasileiro a definição do caminho que tomaríamos, no que se referia a nossa relação com a Alemanha. Ainda que durante o início do conflito mundial tivéssemos mantido neutralidade, a exemplo do que também ocorrera com os Estados Unidos, reconhecemos e proclamamos o estado de guerra em 1917.

Findamos um longo período de paz, inclusive com autorização legislativa para que o governo pudesse praticar represálias contra os alemães. Entre outros, permitiu-se o sequestro de todos os bens dos súditos alemães no Brasil. Questionava-se se o Poder Executivo poderia, em tempo de paz, e também em tempo de guerra, tomar providências contra súditos de Estado inimigo, independentemente de autorização do Congresso Nacional.

Com o fim da guerra, havia um armistício, que desqualificava o Estado declarado de beligerância, pelo que o Executivo dependeria do Congresso Nacional para tomar atitude de enfrentamento. O texto esclarece alguns pontos centrais no Direito Internacional de guerra, a exemplo da natureza jurídica do armistício. Segue o parecer:

Gabinete do Consultor-Geral da República. – Rio de Janeiro, 12 de fevereiro de 1919.

Exmo. Senhor Ministro da Justiça e Negócios Anteriores. – Satisfazendo a consulta de V. Exa. constante do Aviso nº 181, de 31 de janeiro, emito o seguinte parecer:

Em dois momentos e, principalmente, de dois modos, pode o Estado, dentro da lei internacional, fazer restaurar eficazmente direitos seus violados por outro Estado:- Um, na paz, pela prática das represálias, – outro, pela declaração de guerra e pela própria guerra. Na situação bélica em que se tem estado o mundo desde 1914, no que afeta diretamente o Brasil, o primeiro desses momentos se acentuou, como o Exmo. Senhor Presidente da República reconheceu expressamente na Mensagem de 3 de maio de 1916, dirigida ao Congresso Nacional, “logo no começo das hostilidades”, com o caso chamado – dos cafés de S. Paulo, – caso no qual nosso país foi ludibriado e se agravou cada vez mais, em 31 de janeiro de 1917, com a notificação do bloqueio sem restrições que interrompia de vez o comércio internacional e ainda, em abril do mesmo ano, com outro, o do afundamento do vapor nacional Paraná. Em nenhum desses casos, todos afrontosos à soberania brasileira, além de profundamente prejudiciais pelos danos materiais causados aos particulares e ao próprio Estado, pareceu conveniente ao Governo exigir como cabia a justa, pronta e completa reparação que, negada ou não dada a tempo e satisfatoriamente determinaria contra o insólito ofensor o emprego do meio coercitivo e sempre proveitoso, chamado das represálias, ficando na posição que V. Exa. conhece de quem preferia por altas razões de Estado, superiores a tudo, o silêncio no sofrimento de tais injúrias a quebrar o estado de uma neutralidade aberrante de todos os princípios jurídicos ainda os mais preliminares e comuns. No primeiro dos casos ofensivos que acabamos de apontar, o Governo de então se satisfez com a enganosa promessa, nunca cumprida, a que alude aquela Mensagem; – no segundo julgou desagravada a soberania da Nação e reparados todos os males com a Nota incolor de 9 e com o tímido telegrama de 13 de fevereiro de 1917 do Senhor Ministro das Relações Exteriores ao Senhor Ministro do Brasil em Berlim para que transmitisse o conteúdo de ambos ao Governo Alemão; – no terceiro, enfim, com a ruptura de relações diplomáticas e comerciais em 11 de abril do mesmo ano, fato muito significativo e de graves consequências outrora, mas de resultados poucos práticos modernamente, um modo de manifestar desagrado ou indignação, digamos mesmo – de protestar, que afinal não importa em uma satisfação pela soberania atingida, nem reparação material da ofensa causada, como não pode deixar d ser reclamado.

Quando, por Decreto nº 3.361, de 26 de outubro de 1917, foi reconhecido e proclamado o estado de guerra, iniciado pelo Império Alemão contra o Brasil, nenhuma providência havia sido tomada, ou, ao menos, tentada, pelo Exmo. Governo para desafronta de tanta injúria e reparação de tantos prejuízos. Assim findava o estado de paz sem que se operasse a reação que em casos semelhantes se opera pela prática de represálias, das quais o embargo em navios alemães refugiados em portos brasileiros estava naturalmente e se impunha pelos próprios acontecimentos. Com isso, Senhor Ministro, ter-se-ia chegado a um resultado satisfatório, evitando até alguns atos que não podem ser juridicamente justificados, entre eles o da ocupação desses navios por força militar, ato inclassificável em direito, ainda mesmo rotulado como foi.

Iniciado o segundo momento – o da guerra, o Congresso Nacional armou o Executivo de todos os recursos legais necessários a agir com presteza, energia, segurança e sucesso, como era mister. Assim a Lei nº 3.393, de 16 de novembro de 1917, no art. 3, autoriza o Governo “a título de represália”, entre outros atos, a decretar:

 

a) que os súditos inimigos, os gerentes, administradores, ou detentores por qualquer título de bens, efeitos, valores ou créditos, a eles pertencentes, bem como os devedores de quantias, valores ou bens de qualquer natureza, a credores inimigos, declararam, minuciosamente, perante a autoridade que for nomeada, em prazo que lhe for fixado, a natureza e a importância dos ditos bens, quantias, valores, efeitos ou créditos, sob pena, em caso de recusa ou omissão, de multa ao infrator, a qual não poderá exceder de quantia correspondente a 50% do valor não declarado;

b) o sequestro não só de todos os bens, quantias, valores, efeitos, ou créditos referidos na letra a, como também os de que súditos inimigos sejam credores nos bancos, casas bancárias, caixas econômicas, montes de socorro ou estabelecimentos particulares, que recebam em depósito, garantia ou qualquer outro fim, bens, valores mercadorias.”

Assim, Senhor Ministro, as represálias que, em tempo de paz, o Poder Executivo podia praticar por si mesmo, no tempo de guerra poderiam ser também exercidas por ele, autorizado, como estava pelo Congresso Nacional. Ocorre, porém, que pelo Decreto nº 12.740, de 7 de dezembro de 1917, o Senhor Presidente da República, usando da autorização contida na Lei nº 3.393, mandou que, durante o estado de guerra fosse executada, à proporção que se tornassem necessárias, as providências constantes dos arts. 2 e seguintes da aludida Lei, de acordo com as instruções expedidas em cada caso pelos Ministros competentes, ficando desde já em inteiro vigor as disposições do art. 3, letras e, h, j, k e art. 4º.

Como V. Exa. vê as providências constantes das letras, a e b, que para o caso da consulta eram as que cabiam, não foram postas em vigor para que pudessem ser devidamente executadas, e desta sorte à medida a que alude a consulta falta o fundamento legal que a justifique. É natural, entretanto, que ocorra ao espírito de V. Exa. a seguinte consideração: – E o poder Executivo não terá a faculdade de mandar ainda agora vigorar as providências indicadas nas letras a e b do art. 3º? Eu penso que não. Pode parecer que eu me manifeste assim pela superveniência do armistício geral sob cuja ação se encontra os beligerantes desde novembro do ano findo, mas em rigor assim não é, e eu direi por que, apontando logo um motivo da maior relevância que me leva a considerar o caso como estou fazendo, Assim não é, eu disse, Senhor Ministro, porque o Armistício, mesmo geral, não tem sido praticado sob um aspecto tão compreensivo. Desde, para não ir mais longe, o projeto de declaração internacional concernente às leis e aos costumes de guerra, aprovado pela Conferência de Bruxelas, de 1874, até o Regulamento anexo à Convenção IV, de 18 de outubro de 1907, concernente às leis e costumes da guerra em terra, aprovado na 2ª Conferência da Paz, em Haya, é atribuído aos armistícios propriamente ditos, quanto aos seus efeitos, um caráter preferentemente militar. Vejo no art. 47 daquele projeto “que o armistício suspende as operações de guerra”, e no art. 48 que “o armistício geral suspende em toda parte as operações de guerra dos Estados beligerantes”. Vejo ainda nos arts. 36 e 37 do citado regulamento a mesma regra expressa pelas mesmas palavras. Quando se procura esclarecer a regra que examinamos, quanto á sua extensão, de modo, a saber, o que é permitido e o que é proibido fazer durante o armistício, os escritores variam: recusam todos os que respeitam as medidas de caráter ofensivo, enquanto relativamente as de caráter defensivo, uns concedem e outros negam, mas todos, exemplificando o que é possível fazer, se serve sempre de fatos de natureza militar, como seja a transferência de parte de exercício de um beligerante para obter melhor posição, reparação de danos causados as fortificações, reforço de homens e munições nas praças de guerra, etc. Isso mostra que o armistício, ainda quando vem sob a forma geral, atingem propriamente as operações militares, parecendo de certo modo estranho as outras medidas de guerra, as muitas hostilidades habitualmente usadas, como as que estão arroladas nas letras a e b da citada Lei nº 3.393, que, entretanto, escapam as duas expressões de que se servem os regulamentos e os escritores – operações militares, operações de guerra. Esse modo de entender e julgar o armistício tem sua razão de ser na história, pois a guerra era a luta armada, a força bruta em ação para vencer ou exterminar e assim todos os meios para chegar a esse fim: a morte, a ocupação, o roubo, o saque e tudo mais eram meras consequências, o que interessava era a operação militar. Isso, porém, não tinha assento jurídico, nem era liberal, e o que era feito praticamente, passou a ser atendido tanto quanto ia sendo possível como instituto submetido ao regime de Direito. Assim o nosso LAFAYETTE, nos Princípios do Direito Internacional, II,§ 392, ao mesmo tempo em que o MARQUES DE OLIVART, em Espanha, no Tratado do Derecho Internacional Público, III, pág. 283, conseguiu reconhecer e afirmar um estado que se origina no armistício geral, estado tão delicado quão importante e do qual se ocupa quando diz que o “armistício geral tem por objeto a cessação de todas as hostilidades de parte a parte, sem limites de lugar e sem exceção de forças de mar e de terra: produz de fato a suspensão da guerra, como luta material, mas deixa subsistindo como estado jurídico cria uma paz temporária ou provisória, mas não põe termo à guerra, porque continuam por decidir as questões ou litígios que determinam o recurso as armas”.

Assinado o armistício, não subsistiria apenas a guerra como estado jurídico, nem haveria paz temporária ou provisória se atos de hostilidades, como inegavelmente são os de represálias que a Lei nº 3.393 arrola, pudessem ser exercitados.

Ora, Senhor Ministro o armistício geral, assim considerado, tem justo e procedente motivo, que o jurisconsulto pátrio mostra dizendo que: “trégua ou armistício geral tem por causa razões e motivos de caráter político e produzem efeitos que não se limitam simplesmente ás operações militares”.

Esse estado é aquele em que os beligerantes, decididos a celebrar a paz, necessitam pra isso de imediata cessação das hostilidades, de modo a serem acordados os preliminares da paz. Essa cessação deve ser feita pelo armistício que precede o tratado preliminar, mas muitas vezes este tratado se resolve no próprio armistício, segundo forem os seus temos e as suas condições, de modo que, findo o armistício, a paz é prontamente assinada, como ocorreu, entre outros, com o Tratado de Andrinópolis, de 31 de janeiro de 1878 e o de Pirot, de 21 de dezembro de 1885, entre a Sérvia e a Bulgária. Assim, Senhor Ministro, isso que eu não encontro, em geral, nos armistícios, com força bastante para ir além das operações militares, vejo claramente, como estado jurídico criador de paz temporária ou provisória, que faz cessar todas as hostilidades, no armistício de novembro, duas vezes confirmado, quando prorrogado, como tem sido. Basta a leitura desse documento da mais alta importância para reconhecer imediatamente que em todo ele há disposições que não são referentes às operações militares ou operações de guerra, tecnicamente falando, como o das cláusulas financeiras, que não podiam caber senão em tratado de paz preliminar ou definitivo. Como V. Exa. vê o Brasil, como beligerante, está sob o regime desse armistício, está representado na Conferência da Paz, que, sendo modo legal para ser dada solução completa a todos os litígios existentes entre todos os que lutaram, repele naturalmente que um deles venha à última hora, fazendo o que não fez em tempo hábil, ter a conduta que não seria justificável política e moralmente, a final pouco confiante nas reclamações que terá feito à Conferência e na Justiça da própria Conferência da qual faz parte.

Meu parecer é que, atentas as condições do armistício que eu considero como preliminares de paz e o integral funcionamento da Conferência da Paz, o Exmo. Governo não pode e não deve agir na forma da consulta.

Assim, respondo á consulta de V. Ex. fica prejudicada a seguinte questão proposta; todavia eu creio que, se fosse possível agir, não competiria isso ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, mas ao da Fazenda e ao das Relações Exteriores, no que a cada um coubesse. Apresento a V. Ex. os meus protestos de elevada estima e mui distinta consideração. – Dr. M. A. de S. Sá Vianna.

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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