Apropriação indébita

Não repassar valor a cliente é crime, e não "desacerto civil", decide TJ-RS

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4 de novembro de 2014, 9h34

Advogado que recebe dinheiro de acordo judicial e não o repassa integralmente a seu cliente comete o delito de apropriação indébita. A prática ultrapassa o mero "desacerto civil" e entra na esfera criminal. Por isso, a 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul confirmou sentença que condenou um advogado que deixou de repassar ao seu cliente a maior parte dos valores apurados num acordo chancelado na Justiça do Trabalho de Esteio, município aa Região Metropolitana de Porto Alegre — do qual o trabalhador alegou não ter qualquer conhecimento, já que o advogado havia rechaçado a possibilidade de saída amigável.

O réu ficou em silêncio ao ser questionado na audiência de instrução, mas tentou derrubar a sentença condenatória, arguindo a nulidade da audiência, em que o juiz fez perguntas diretamente às partes. O colegiado, entretanto, decidiu que o juiz não feriu o artigo 212 do Código de Processo Penal. Afinal, além de presidir a audiência, o juiz é o destinatário da prova, devendo esclarecer o que entender pertinente para a elucidação dos fatos e para firmar sua convicção.

Para a relatora da Apelação Criminal, desembargadora Jucelena Pereira dos Santos, as provas constantes nos autos da denúncia formulada pelo Ministério Público são suficientes para caracterizar o delito de apropriação indébita. ‘‘As circunstâncias fáticas evidenciam que o réu teve a intenção de não repassar os valores que recebeu na condição de advogado da vítima, tomando-os para si, desviando a finalidade para a qual foi contratado’’, anotou no acórdão. A decisão foi tomada na sessão de julgamento do dia 30 de outubro.

A denúncia
Tudo começou quando o trabalhador entrou com uma ação trabalhista contra seu ex-empregador. No curso do processo, os advogados das partes fizeram um acordo, pelo qual a reclamada se comprometia a pagar ao ex-empregado o valor líquido de R$ 48,5 mil, em oito parcelas, sendo sete no valor de R$ 6 mil, e a última de R$ 6,5 mil. Os valores deveriam ser pagos sempre no dia 12 de cada mês, iniciando-se em 12 de agosto de 2009, por meio de depósito na conta do procurador do reclamante.

Um pouco antes de vencer o prazo da oitava parcela, em março do ano seguinte, o trabalhador registrou Boletim de Ocorrência policial, denunciando o advogado por ter se apropriado de R$ 29,7 mil. Afinal, àquela altura, só havia recebido duas prestações, com os devidos descontos de honorários advocatícios. O fato motivou a denúncia do Ministério Público estadual contra o advogado, ajuizada em fevereiro de 2012, pelo crime de apropriação indébita praticada em razão da profissão. O delito está tipificado no artigo 168, parágrafo 1º, inciso III, do Código Penal.

Ouvido em juízo, o trabalhador afirmou que o acordo trabalhista foi feito sem o seu conhecimento e que só ficou sabendo ao analisar o processo na vara trabalhista, já que o advogado negava a composição com a outra parte. Além disso, informou que teria direito a cerca de R$ 70 mil de indenização, e não apenas aos R$ 48,5 mil acordados. Por fim, disse que o advogado também se apropriou do dinheiro de outras “três ou quatro pessoas”.

Citado, o réu apresentou defesa, mas preferiu se manter em silêncio quando interrogado na audiência de instrução. Na peça, arguiu preliminar de nulidade, em face de o juiz ter feito perguntas na audiência. O artigo 212 do Código de Processo Penal diz que as perguntas devem ser formuladas pelas partes diretamente à testemunha, cabendo ao juiz complementar a inquirição, se restarem pontos não esclarecidos. No mérito, afirmou que não existem provas para embasar sua condenação, tendo em vista que o fato se reveste de ‘‘desacerto civil’’, não atingindo a esfera criminal.

Sentença condenatória
O juiz Marcos La Porta da Silva, da Vara Criminal da Comarca de Esteio, afastou a preliminar de nulidade, por entender que o artigo 212 não proíbiu o magistrado de fazer perguntas em audiência, estabelecendo, apenas, o direito das partes de formularem-nas diretamente às testemunhas e ao réu. ‘‘Deve-se saber que o juiz é imparcial e, portanto, seus questionamentos visam sempre a esclarecer os fatos, e não, propriamente, a incriminar o réu, tanto que, por vezes, é o próprio julgador quem suscita a possibilidade de uma tese defensiva por meio dos questionamentos’’, escreveu na sentença.

No mérito, julgou a denúncia procedente, por constatar que a empresa reclamada juntara ao processo os oito recibos de pagamento e ter ficado patente que o autor recebera, apenas, as duas primeiras parcelas. ‘‘Impõe-se, assim, o decreto condenatório, uma vez que o réu se apropriou de coisa alheia móvel (dinheiro), de que teve a posse ou a detenção, incidindo ainda a forma mais gravosa, pois recebeu os valores sonegados à vítima em razão de sua profissão de advogado’’, definiu.

O réu acabou condenado a cumprir um ano e oito meses de reclusão, em regime inicial aberto. Entretanto, na dosimetria, a pena corporal foi substituída por duas penas restritivas de direitos, bem como ao pagamento de multa.

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