Embargos Culturais

O credo jurídico-político do jurista cearense Clóvis Beviláqua

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

2 de novembro de 2014, 7h01

Spacca
Defendo a necessidade de uma cruzada nacional, com o objetivo de resgatarmos e divulgarmos os textos de nossos pensadores do direito, antes que se acredite que não houve uma tentativa de construção de filosofia jurídica brasileira[1]. Tomás Antonio Gonzaga, Pedro Autran, João Silveira de Sousa, Soriano de Sousa, João Teodoro Xavier de Matos, Luís Pereira Barreto, Paulo Egydio, Alberto Salles, João Monteiro, Tobias Barreto, Silvio Romero, Fausto Cardoso, Artur Orlando, Pedro Lessa, para conter-me apenas com alguns, são nomes que exigem um garimpo e uma retomada da história das ideias jurídicas no Brasil. Machado Netto, Antonio Paim, Vamireh Chacon, Leonardo Prota, Miguel Reale, entre outros, esforçaram-se nesse sentido. Deve retomar essa linha de trabalho. Há muito a ser escavado e revelado. Segue um pouco desse esforço.

O jurista cearense Clóvis Beviláqua redigiu um pequeno excerto, datado de 3 de abril de 1932, denominando-o de meu credo jurídico-político, insistindo em sua conhecida crença no direito, na liberdade, na moral, na justiça, na democracia e no patriotismo. Clóvis entendia o patriotismo como “forma social de amor (…) forma irresistível e incomensurável”[2].

O texto é minimalista, não passa de uma lauda. No entanto, é também substancialmente significativo e emblemático, por conta dos valores que evoca e que defende. Trata-se de um texto quase esquecido, que corre o risco de cair no oblivion, justificativa dessa retomada do assunto.

Para Clóvis, o “direito é organização a vida social, a garantia das necessidades individuais”[3]. Citando o Novo Testamento (Atos, 17:28): “Porque nele vivemos e nos movemos e existimos”, no latim da vulgata, in eo vivimus et sumus, Clóvis qualificou a sociedade no direito, nele existindo. A liberdade, objeto da crença do jurista cearense, é vivificada com “marca da civilização”[4]; a moral, ganha o sentido de “utilidade de cada um e de todos transformada em Justiça e caridade”[5].

O jurista cearense também insistiu na crença na democracia, “criação mais perfeita do direito político”[6]. Nesse sentido, a democracia, observou, “permite à liberdade a dilatação máxima dentro do justo e do honesto, e corresponde ao ideal da sociedade politicamente organizada”[7].

Trata-se, enfim, de um pequeno excerto, que suscita alguma reflexão, e muito estímulo, propícios a uma época sedenta de valores. Segue o texto: 

MEU CREDO JURÍDICO-POLÍTICO (1932)
Clóvis Beviláqua

Creio no direito, porque é organização da vida social, a garantia das atividades individuais. Necessidades da coexistência, fora das suas normas não se compreende a vida em sociedade. In eo vivimus et sumus.

Creio na liberdade, porque a marca da civilização, do ponto de vista jurídico-político, se exprime por sucessivas emancipações dos indivíduos, das classes, dos povos, da inteligência, o que demonstra ser ela altíssimo ideal, a que somos impelidos por uma força imanente nos agrupamentos humanos: a aspiração do melhor que a coletividade obtém estimulando as energias psíquicas do indivíduo. Mas a liberdade há de ser disciplinada pelo direito para não perturbar a paz social, que por sua vez assegura a expansão da liberdade.

Creio na moral, porque é a utilidade de cada um e de todos transformada em Justiça e caridade, expunge a alma das inclinações inferiores, promove a perfeição dos espíritos, a resistência do caráter, a bondade dos corações.

Creio na justiça, porque é o direito iluminado pela moral ­– protegendo os bons e úteis contra os maus e nocivos, para facilitar o multifário desenvolvimento da vida social.

Creio na democracia, porque é criação mais perfeita do direito político, em matéria de forma de governo. Permite à liberdade a dilatação máxima dentro do justo e do honesto, e corresponde ao ideal da sociedade politicamente organizada, com extrair das aspirações mais generalizadas de um povo determinado o sistema de normas que o dirija.

Creio mais nos milagres do patriotismo, porque o patriotismo é forma social do amor, e como tal, é força irresistível e incomensurável; aos fracos dá alento, aos  dúbios decisão, aos descrentes fé, aos fortes ilumina, a todos une num feixe indestrutível, quando é preciso agir ou resistir; não pede inspiração do ódio e não mede sacrifício para alcançar o bem comum.


[1] Sugiro a leitura de Machado Neto, História das Ideias Jurídicas no Brasil, São Paulo: Grijalbo, 1969.
[2] Beviláqua, Clóvis, Obra Filosófica- II- Filosofia Social e Jurídica, São Paulo: EDUSP-Grijalbo, 1976, p. 228.
[3] Beviláqua, Clóvis, cit., loc. cit.
[4] Beviláqua, Clóvis, cit., loc. cit.
[5] Beviláqua, Clóvis, cit., loc. cit.
[6] Beviláqua, Clóvis, cit., loc. cit.
[7] Beviláqua, Clóvis, cit., loc. cit. 

Autores

  • Brave

    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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