Observatório Constitucional

Trabalho de médicos cubanos e o artigo 4º da Constituição

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29 de março de 2014, 8h00

O professor Ives Gandra da Silva Martins, em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo em 17 de fevereiro de 2013, ao analisar o contrato firmado com a sociedade “Mercantil Cubana Comercializadora de Serviços Médicos Cubanos S/A” à luz do artigo 7o da Constituição brasileira, concluiu que a contratação de médicos cubanos no âmbito do programa Mais Médicos do governo federal “consagra a escravidão laboral não admitida no Brasil”.

Ao analisar o contrato firmado entre o Brasil e Cuba (via empresa cubana de comercialização de serviços médicos), com a intermediação da Organização Pan Americana de Saúde (OPAS), destacou as seguintes cláusulas:

i) Cláusula 2.1, j, que determina que o médico receberá 400 dólares no Brasil e 600 dólares em Cuba como contraprestação pelo serviço prestado, valor muito inferior aos R$ 10 mil pagos pelo governo brasileiro diretamente aos demais médicos do programa, brasileiros ou estrangeiros;
ii) Cláusulas 2.1, n, e 2.2, r, que estabelecem o dever de confidencialidade sobre as informações não tornadas públicas e qualquer dado fornecido por Cuba ou pelo Brasil;
iii) Cláusula 2.2, e, que proíbe que o médico cubano que vier para o Brasil exerça qualquer outra atividade sem a expressa autorização da “máxima direção cubana no Brasil”;
iv) Cláusula 2.2, j, segundo a qual o casamento de cubano com não cubano no Brasil se submete à legislação cubana;
v) Cláusula 3.5, que estabelece punição para o profissional que abandonar o programa, segundo os termos da legislação cubana.
 

Para Ives Gandra, estas cláusulas evidenciam que a contratação viola os artigos 1º, III (dignidade da pessoa humana) e IV (os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa); artigo 3º, IV (proibição de qualquer forma de discriminação); artigo 4º, II (prevalência dos direitos humanos como princípio vetor das relações internacionais); artigo 5º, I (princípio da igualdade), III (tratamento desumano ou degradante) e XV (livre locomoção em território nacional); e artigo 7º, XXX (proibição de diferença de salário) e XXXIV (igualdade entre trabalhador com vínculo permanente e sem vínculo), entre outros.

A par das polêmicas que envolvem o programa Mais Médicos como um todo, o tratamento diferenciado dispensado aos médicos cubanos desperta algumas dúvidas quanto ao porque desta diferença de tratamento dispensada pelo Brasil: Por que um médico cubano é contratado via OPAS e recebe um valor inferior aos outros médicos estrangeiros, que são contratados diretamente pelo governo brasileiro e recebem o mesmo tratamento que os médicos brasileiros?

De início, a falta de transparência no processo de contratação dos médicos cubanos já chama a atenção. Em plena vigência da Lei de Acesso à Informação (Lei Federal 12.527/2011) é de se estranhar que o contrato não tenha sido disponibilizado no site do Ministério da Saúde para controle da população, só tendo vindo a público no Brasil quando uma médica cubana resolveu romper com o contrato. Também não se entende as normas sobre confidencialidade estabelecidas no contrato, especialmente em relação à informações repassadas pelo Brasil.

Mas o que mais desperta dúvidas sobre a sua constitucionalidade é, sem dúvida, o tratamento desigual em relação aos outros médicos do programa e as restrições aos seus direitos e liberdades, garantidos pela Constituição aos brasileiros e estrangeiros no território brasileiro.

As cláusulas que fazem remissão à legislação cubana, especialmente em relação ao casamento com não cubanos e punições por abandono do programa, deixam claro que trata-se de um contrato com o governo cubano. Ou seja, trata-se de ato do governo brasileiro que deve submeter-se aos princípios que regem suas relações internacionais, nos termos do artigo 4º da Constituição de 1988.

A importância do artigo 4º da Constituição é destacada por Celso Lafer ao identificar em seu inciso II (prevalência dos direitos humanos) a “clara nota identificadora da passagem do regime autoritário para o Estado democrático de direito”. Em suas palavras:

“Este princípio afirma uma visão do mundo – que permeia a Constituição de 1988 – na qual o exercício do poder não pode se limitar à perspectiva dos governantes, mas deve incorporar a perspectiva da cidadania.”[1]

Celso Lafer identifica no artigo 4º o “marco normativo a partir do qual o Executivo, no exercício de suas competências, traduz os interesses nacionais em ação diplomática do país”, cujos princípios funcionam como diretrizes para as ações de política externa brasileira, tornando possível a fiscalização e o controle político pelo Congresso Nacional (cf. CF, artigo 49, X) e pela opinião pública e, inclusive, o controle jurídico por meio da apreciação de constitucionalidade.[2]

A possibilidade de controle jurisdicional dos atos do governo brasileiro no âmbito de suas relações internacionais a partir do princípio constitucional da prevalência dos direitos humanos foi defendida por Eduardo Pannunzio em tese de doutorado apresentada à Faculdade de Direito da USP[3].

Destaca o autor que “em várias ocasiões, atos e decisões do Estado na área de política externa têm sido objeto de críticas, justamente por colocar o respeito e promoção dos direitos humanos em um plano inferior a outros objetivos políticos”, o que justifica a necessidade de submeter tais atos ao controle jurisdicional. As normas conformadoras da política externa trazidas pela Constituição de 1988 tornaram as relações internacionais tema jurídico-constitucional, com todas as implicações daí decorrentes, a ensejar o controle dos atos estatais na matéria.

Defende o autor que tal controle permitirá “rever os alicerces de uma cultura político-jurídica que assegura ao Executivo, no plano externo, uma relativa imunidade frente aos mecanismos de freios e contrapesos que operam no âmbito doméstico”, especialmente a partir do dever imposto ao Estado brasileiro pelo artigo 4º, II, de adotar posturas sempre coerentes com a prevalência dos direitos humanos.

A partir do princípio vetor estabelecido pelo artigo 4º, II, da Constituição, a contratação de médicos cubanos pelo governo brasileiro deve guiar-se não só pelos direitos humanos previstos em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, como pelos próprios direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição brasileira. Tais princípios determinam que alegações quanto à soberania cubana ou à relativização dos direitos humanos sejam afastados em prol de um tratamento igualitário e livre aos cidadãos que, independentemente de sua nacionalidade, relacionarem-se com o Estado brasileiro.

O programa federal é objeto de impugnação junto ao Supremo Tribunal Federal em duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI 5.035 e ADI 5.037). O relator, ministro Marco Aurélio, já realizou, inclusive, Audiência Pública para instruir a matéria, permitindo a participação da sociedade civil na análise de tema tão relevante para o respeito dos direitos humanos no Brasil.

Acreditamos que a decisão do Supremo, além de outros dispositivos, poderá lançar luzes sobre o papel fundamental do artigo 4º na limitação da discricionariedade dos atos estatais dedicados às relações internacionais brasileiras, especialmente quando tais atos podem atingir direitos fundamentais, quer de cidadãos brasileiros, quer de estrangeiros, especialmente quando estes estrangeiros estiverem em território brasileiro e prestando relevante serviço ao Brasil.


[1] LAFER, Celso. A Internacionalização dos Direitos Humanos: Constituição, racismo e relações internacionais. Barueri, SP: Manole, 2005, p. 14-15.
[2] LAFER, Celso. A Internacionalização dos Direitos Humanos: Constituição, racismo e relações internacionais. Barueri, SP: Manole, 2005, p. 19.
[3] PANNUNZIO, Eduardo. A judicialização das relações internacionais no Brasil em face do princípio constitucional da prevalência dos direitos humanos. Tese de Doutorado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2012.

Autores

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    é procuradora da Fapesp e professora de Direito Constitucional da FMU. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra e doutoranda em Direito do Estado pela USP.

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