Diário de Classe

Tragédia dos erros na UFSC e os abusos em nome do Direito

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29 de março de 2014, 8h01

Spacca
A Comédia dos Erros é uma peça teatral de Shakespeare, escrita no final do século XVI, em que dois casais de gêmeos são separados, em face de um acidente, e, após reencontrarem seus irmãos verdadeiros em Éfeso, passam a causar os mais inusitados problemas em razão da confusão sobre suas identidades. Um erro leva a outro, cada vez maior, e assim por diante. A sucessão progressiva de equívocos atravessa toda peça, provocando uma série de conflitos, além de inúmeros transtornos.

De Éfeso para a Ilha da Magia
Na tarde da última terça-feira (25/3), houve o confronto entre 300 estudantes e policiais federais e militares no interior do campus da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, que se transformou num verdadeiro cenário de guerra, com o uso de bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha.

O tumulto começou após policiais à paisana promoverem investigação contra o tráfico de drogas no interior da universidade. Na ocasião, alguns estudantes do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH) tiveram suas mochilas revistadas. Cinco deles portavam substâncias entorpecentes — no caso, alguns cigarros de maconha — e, por isso, receberam voz de prisão, sendo encaminhados pelos agentes federais até a viatura discreta para condução à Superintendência da Polícia Federal.

A notícia da ação difundiu-se rapidamente, gerando indignação entre estudantes, que reivindicavam a assinatura de termo circunstanciando no local. Ao tomar conhecimento da situação, professores que estavam em reunião entraram em contato telefônico com a Superintendência da Polícia Federal. Após, o diretor do CFH, professor Paulo Pinheiro Machado, acompanhado do procurador e de representantes da reitoria, iniciou uma negociação com o delegado responsável pela operação, Paulo Cesar Barcelos Cassiano Júnior, dispondo-se inclusive a acompanhar os detidos perante a autoridade policial, desde que não houvesse o uso da força. O delegado informou que todos poderiam acompanhá-los sem quaisquer problemas, mas que, se necessário, a polícia faria uso da força. Dito e feito. Aumentaram os protestos. O fato assumiu grandes proporções. A polícia chamou o batalhão de choque. Os estudantes destruíram e viraram duas viaturas. O balanço contabilizou diversos feridos, de todos os lados. Os estudantes detidos foram levados à delegacia, onde assinaram termo circunstanciado e, em seguida, foram liberados, conforme estabelece a lei.

Após o ocorrido, os estudantes ocuparam o prédio da reitoria. O então criado movimento “Levante do Bosque”, em assembleia geral, realizada na manhã de quarta-feira (26/3), deliberou acerca da seguinte pauta de reivindicações divulgada nas redes sociais: (a) elaboração de plano de iluminação; (b) comprometimento da reitoria da não entrada de PMs no campus; (c) revogação imediata do acordo entre reitoria e polícia e punição dos responsáveis pela operação; (d) legalização das festas no campus; (e) ampliação da moradia; (f) proposta clara da reitoria de defesa da autonomia e democracia universitária; (g) defesa da ocupação dos espaços ociosos do campus por moradores de rua durante a noite; (h) reajuste da bolsa permanência para um salário mínimo.

Os fatos chegaram aos ministérios da Justiça e da Educação. Nos dias que se seguiram, uma série de declarações tensionaram ainda mais o ambiente entre a Universidade e a Superintendência da Polícia Federal. De um lado, a reitoria emitiu nota de repúdio, afirmando que a comunidade universitária “foi vítima de uma ação violenta e desnecessária, que feriu profundamente a autonomia universitária, os direitos humanos e qualquer protocolo que regulamenta as relações entre as instituições neste país”. De outro, em entrevista concedida aos veículos de comunicação, o delegado Cassiano defendeu a legitimidade de sua operação: “A Polícia Federal não é um órgão recreativo. Não é dedicada a sentar em um bosque da universidade para lavrar seus procedimentos. Nós não fazemos piquenique. A PF é um órgão de repressão criminal e, diante de uma intervenção criminosa, a PF atua com energia e rigor próprios de uma instituição que tem as armas e instrumentos dados pela lei para isto. Simples assim”.

A ocupação da reitoria estendeu-se até esta sexta-feira (28/3), quando a administração comprometeu-se a atender parte das exigências colocadas pelo movimento como, por exemplo, a discussão sobre o plano de segurança da universidade.

Os abusos em nome do Direito
Tal qual o enredo da peça de Shakespeare, o episódio ocorrido na UFSC também revela uma sucessão de equívocos, de todas as partes. Eis a tragédia dos erros. Desde os estudantes, passando pelos professores que intervieram, até o delegado e seus subordinados. Com razão até o momento, apenas o Diretório Central dos Estudantes da UFSC, que reconheceu publicamente os excessos praticados por todos os envolvidos e os abusos em nome do Direito.

A Polícia Federal é um órgão permanente dotado de atribuição constitucional. Sua atuação deve se voltar para a criminalidade que coloca em xeque os objetivos da República. Por isto, não deve ela voltar suas baterias para a repressão ao mero uso de drogas. Se a situação era, de fato, combater o tráfico no interior de uma universidade federal, sua ação mostrou-se desastrosa. Do outro lado, estudantes resolveram impedir a atuação dos agentes federais. Professores entraram na onda e resistiram. Deram mau exemplo. Prisão ilegal se relaxa. E a autoridade para isto é judicial! Desconhecimento geral. Assessores desinformados. Perda do controle da situação. O delegado chamou quem? O choque. No que deu? Choque! O pau comeu. Violência gratuita para todo lado. A reitoria, por sua vez, pulou do barco, alegando não ter sido comunicada da operação, sob o álibi furado da “autonomia universitária”. Ocorre que, desde o final de 2013, quando requereu a presença da polícia no campus, todos sabiam da investigação praticada por agentes federais, que eram, inclusive, acompanhados pelo departamento de segurança da universidade. Os estudantes aproveitaram a carona para reivindicar a legalização das festas. Quanto aos danos físicos, morais e patrimoniais, todos serão absorvidos pela Fifa. Isto quer dizer, quem pagará esta conta será o povo. Irresponsabilidade geral e irrestrita. Enquanto o mundo pega fogo lá fora — e, por aqui, o país se prepara para a Copa —, as cinzas de maconha no bosque da UFSC não deveriam ser “o” problema.

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