Adimplento substancial

Excesso de formalismo afeta suspensão condicional do processo

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26 de março de 2014, 8h56

A suspensão condicional do processo surgiu na tentativa de penas alternativas à prisão, quebrando a obrigatoriedade da ação penal e evitando a estigmatização derivada do processo, sendo forma de composição do caso penal que trata a pena privativa de liberdade como a exceção, evitando a exclusão social, pois com a aplicação do art. 89 da Lei 9.099/1995, o caso penal é resolvido sem que haja necessidade de grandes alterações na vida cotidiana do acusado. A partir disso, tal instituto é classificado como despenalizador, pois vai excluir a aplicação de qualquer outra pena, ou seja, em não sendo revogada, a questão penal será definitivamente solucionada, tendo força de coisa julgada material.[1] Sabe-se, todavia, que apesar da aparência despenalizante, em algum sentido significou a ampliação do controle social.

As condições da suspensão condicional do processo têm como finalidade estipular a conduta a ser seguida pelo acusado no período proposto, o qual varia de dois a quatro anos. Tais condições dizem respeito, principalmente, à reparação do dano resultante do crime, salvo impossibilidade; proibição de frequentar determinados lugares; proibição de se ausentar da comarca de residência sem autorização judicial; informação e justificação pessoal e periódica em juízo. Ademais, analisando a situação do acusado e adequação ao fato, cabe, de forma justificada, estipular condições específicas no acordo entre Ministério Público e Defesa.[2]

Diante disso, com a finalidade de evitar o desenvolvimento processual e a incerteza da decisão final, a defesa, em sua esfera estratégica[3], aceita o cumprimento de determinadas condições. Vale ressaltar que a suspensão condicional do processo deve ser aceita pelo acusado e seu defensor, enquadrando-se na garantia de ampla defesa e equiparando-se a um contrato feito com o Ministério Público. Essa foi a grande inovação da Lei 9.099 que se tornou forma de resolução de caso penal pelo Direito Penal, a qual possui o consentimento do acusado, atendendo aos interesses despenalizadores e de eficiência do sistema, bem assim diminuindo a formalidade e facilitando a resolução do caso concreto.

Em que pese a suspensão condicional do processo ser um acordo, o descumprimento de alguma condição acarreta em sua revogação. Entretanto, deve-se levar em consideração o princípio da ampla defesa, não podendo ser revogada antes de acontecer a justificativa pelo devedor. Além disso, a revogação deve se basear no adimplemento substancial, ou seja, cientes de que o adimplemento procura ser o mais satisfatório para o credor (Ministério Público) e menos oneroso ao devedor, novas coordenadas de pensar devem se instalar, dentre elas a avaliação da boa-fé e função social do contrato[4]. Daí que adimplir implica em cumprir a prestação principal munida de comportamento ético (boa-fé) durante todo o processo obrigacional até sua última etapa, pois o adimplemento é o ápice da obrigação.[5]

Com o cotidiano dos contratos e a obrigação como processo dinâmico e funcional, os princípios da equidade, proporcionalidade e, principalmente, os da boa-fé objetiva e da função social do contrato tornaram-se essenciais para evitar o formalismo contratual, bem como o abuso de direito. Com o enunciado 361 da IV Jornada de Direito Civil, a teoria do adimplemento substancial modificou a compreensão da aplicação do art. 475 do Código Civil, restando caracterizado que quando parte substancial do pactuado foi cumprida, o pedido de resolução contratual implicaria em abuso de direito, proporcionando revisão da amplitude e alcance dos deveres contratuais por meio da manutenção do vinculo obrigacional.[6]

O credor e devedor são titulares de direitos e deveres fundamentais de mesmo nível, ou seja, a relação jurídica abrange cooperação e assistência mútua. Além disso, quando o comportamento do devedor é pautado na confiança e lealdade, tendo como finalidade atingir o adimplemento correto da obrigação e seu adimplemento, bem assim que está tão próximo ao cumprimento total do pactuado, não há que se falar em resolução do contrato com fundamento na inadimplência, pois ocorre a imposição ao credor de cooperação em relação ao devedor. Nesse sentido, seria abuso do direito o pleito pela resolução contratual, por violar o necessário dever de cooperação entre as partes, dever, este trazido pelo princípio da equidade e ainda, tendo em vista o devedor estar munido de boa-fé. Ademais, cabe análise da função social do contrato, evitando a pena manifestamente excessiva, frisando o grau de culpa e a base econômica em que foi celebrado.[7]

Aplicando tal teoria ao direto penal, mais especificamente, à suspensão condicional do processo, com base nos princípios da boa-fé objetiva, proporcionalidade, equidade e celeridade processual, corolário do devido processo legal substancial, não é cabível a revogação do acordo entre as partes quando, o acusado de boa-fé, cumprindo parte substancial das condições, não cumpre, por exemplo, com o dever de comparecer em juízo no período acordado ou mesmo não quita parte da parcela monetária. Ora, como movimentar o Poder Judiciário com audiência de justificativa, intimando o acusado, tomando tempo do advogado, juiz e representante do Ministério Público para que seja explicado o não comparecimento parcial ou mesmo de parcela insignificante do acordado? Necessária se faz a aplicação da teoria do adimplemento substancial, no mesmo contexto em que vem sendo aplicada nos contratos, pois a problemática cotidiana do exacerbado formalismo atingiu, também, a suspensão condicional do processo.

Por isso, quem sabe, a aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial no campo da Suspensão Condicional do Processo possa ser um sendero na aplicação do devido processo legal substancial, evitando gastos desnecessários e atendendo ao fim do instituto.


[1] GIACOMOLLI, Nereu José. Juizados Especiais Criminais Lei 9099/95: abordagem crítica, acordo civil, transação penal, suspensão condicional do processo, rito sumaríssimo. Porto Alegre: Livraria do advogado. 2009. p. 199.
[2] SANTOS, Cirino dos. Direito Penal: parte geral. Florianópolis: Conceito, 2010. p. 602.
[3] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
[4] ZUEL GOMES, Rogério. Teoria contratual contemporânea: função social do contrato e boa-fé. Rio de janeiro: Forense, 2004.
[5] FOLGADO, Antonio Nobre. Suspensão Condicional do Processo: como instrumento de controle social. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. p.129
[6] CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Curso de Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e dos Contratos – Institutos Fundamentais. São Paulo: Thomson Ruters Revista dos Tribunais, 2014. p. 214
[7] CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Curso de Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e dos Contratos – Institutos Fundamentais. São Paulo: Thomson Ruters Revista dos Tribunais, 2014, p.213.

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