Erro da União

Decisão a favor da Varig reacende aspectos da falência

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25 de março de 2014, 9h04

O julgamento da ação movida pela antiga Varig contra a União, envolvendo bilionária disputa sobre o congelamento de tarifas em virtude do plano Cruzado, irradia seus efeitos sobre várias direções e reclama considerações importantes sobre o caso.

Em primeiro lugar esse emblemático case relaciona-se diretamente com o instituto da recuperação judicial de empresas, tão (e merecidamente) festejado como precursor de novos tempos em matéria empresarial, mas que, segundo estudo recente, vem naufragando em seus objetivos, proporcionando menos de 1% de êxito nas recuperações judiciais do país.

O caso Varig é emblemático neste sentido. A empresa entrou em recuperação judicial em 2005, mesmo ano da promulgação da Lei 11.101, com sérios problemas de governança corporativa e dívida acumulada da ordem de R$ 5 bilhões. Mas, a seu favor, contavam a força de seu nome comercial, uma extensa frota de aeronaves a jato, 12 mil funcionários, o valioso plano de milhagem aérea, os slots nos aeroportos mais importantes do país e direitos de tráfego nacionais e internacionais. Acima de tudo – fato que se irá correlacionar diretamente com o “apagão aéreo” mais adiante – um histórico patrimônio de know-how e liderança no setor aeronáutico brasileiro. Investidores e credores privados olhavam com otimismo para o plano de recuperação que fora estruturado pelos trabalhadores com base em consultoria especializada, e tudo indicava que a Varig iria decolar novamente.

Entretanto, os destinos da recuperação judicial foram outros. E, passados cinco anos após o início do rito processual, o passivo da empresa havia triplicado, alcançando a impressionante esfera de R$ 18,6 bilhões. O modelo de governança corporativa certamente poderia explicar o estado financeiro grave a que chegou a companhia. Mas é importante compreender por que o primeiro caso de recuperação judicial no país, e um de seus mais emblemáticos, fracassou. E por que a recuperação judicial ainda não deu certo no Brasil.

Em primeiro lugar, é necessário reavaliar-se o papel do Comitê de Credores na Recuperação Judicial. A Lei 11.101/05 o previa como uma de suas mais importantes e fulcrais inovações, na medida em que descentraliza, democratiza e torna mais eficiente a condução dos negócios da empresa em dificuldades, multifacetado em suas nuances financeiras e jurídicas. Na práxis norte-americana, o Comitê de Credores (art. 1102 e segs. do conhecido Chapter 11) assume função sobranceira, sobretudo por seu ativo papel fiscalizatório, concomitante às tarefas do administrador judicial, possuindo o comitê ou o trustee por ele apontado, amplo acesso a dados relevantes anteriores e concorrentes à reorganização, revelando ou inibindo a prática de fraude, má-fé, má-gestão etc. Parece razoável, pois, que se alargue a participação e o poder decisório dos credores quanto aos destinos e administração dos bens da empresa recuperanda, pois eles têm mais a perder do que o dono ou o juiz da causa, sejam eles prestadores de serviços e bens, trabalhadores, entes estatais ou entidades financeiras.

Seja como for, havia concreta expectativa, jurídica e financeira, pelos credores e interessados da extinta empresa (trabalhadores, fundo de pensão, autarquias, bancos, empresas de leasing etc.) que os ativos então remanescentes, somados aos potenciais créditos oriundos da bilionária ação tarifária permitissem a recuperação da companhia. A disposição dos credores era uníssona em torno de seu objeto comum: recuperar a empresa e seus créditos.

Mas, sem a voz do Comitê de Credores, o caminho trilhado rompeu com o plano inicialmente engendrado. Promoveu-se a alienação de praticamente todos os ativos operacionais da companhia. Com isso, a companhia não se recuperou, milhares de trabalhadores especializados ficaram desempregados. Outras centenas de profissionais de excelência foram exportados para companhias aéreas estrangeiras na rota de fuga do desemprego, e o não-ressarcimento do fundo de pensão levou milhares de pessoas a sofrer um dos maiores calotes previdenciários da nossa história. Por fim, veio a falência.

Uma terceira questão importante revela a outra face da moeda na redução do protagonismo dos credores no rito de recuperação: trata-se do ativismo judicial, tema que tem estado na ordem do dia de muitos juristas e operadores do Direito. Como se sabe, o princípio do dispositivo é mitigado nos processos de recuperação e falência, mas há que se encontrar o devido equilíbrio, pois no afã de “conduzir” a recuperação ou produzir decisões “justas”, e ao materializar a norma, acaba por solapar os fundamentos democráticos da lei e afastar-lhe dos limites hermenêuticos de compatibilidade constitucional. O Direito, lembra Eros Roberto Grau, “não se interpreta em tiras”. E, se divorciada do sistema jurídico, a atuação interpretativa do julgador deslegitima-se, pois dá origem a norma estranha ao contexto normativo. Relembre-se, também, Lênio Streck, quando destaca os perigos de a carga moral que o legislador insculpiu na lei ou nos princípios confundir-se com a moral individual do julgador. Não são a mesma coisa. Um advém do processo democrático; o outro, do autocrático.

Ainda neste diapasão, as notícias acerca de possíveis irregularidades envolvendo varas empresariais, administradores judiciais e cartórios, que se propalaram na mídia, têm transmitido à comunidade jurídica, a agentes financeiros, a investidores e empresários e à sociedade em geral a impressão de que os velhos e conhecidos problemas que sempre macularam os processos de falência e concordata sob a égide do anterior diploma falimentar ainda persistem. Isso conspira contra a confiança no instituto e, se de fato ocorrem, contaminam sua eficácia.

Por fim, posto que longe de esgotar o assunto, mas talvez o aspecto mais relevante em termos prospectivos, está a accountability. Tem a ver com a responsabilidade pela ou na prestação de contas. É o famoso “quem responde”. Na legislação européia, já se exige que determinados cargos recebam rótulo que identifique a responsabilidade administrativa, ou melhor, qual o gestor responsável, e.g., accountable manager. Isto evita a enorme perda de tempo processual no momento de identificar os responsáveis pelos atos praticados causadores de danos a outrem. E, naturalmente, isto vale também para os agentes públicos, ainda que a impessoalidade constitucionalmente disposta implique a accountability do ente público, ressalvado o direito de regresso deste.

E, ao se falar em responsabilidades, o sempre recorrente tema dos atos ilícitos do Estado e da ausência de celeridade na prestação jurisdicional. Aqui, como em vários outros casos Brasil afora, a questão toma proporções incomensuráveis. Durante a década em que a ação transcorreu, a Varig faliu. Uma empresa cuja vida mistura-se à própria vida do país em vários de seus momentos. E faliu porque, como visto, fracassou a tentativa de recuperação judicial, a qual se iniciou com uma dívida da ordem de R$ 4 bilhões, montante próximo, a valor presente, da quantia em que foi condenada a União a ressarcir a aérea.

A que se segue a inevitável pergunta: teria a Varig falido se a União tivesse reparado seu ilícito tempestivamente ou houvesse a Justiça prestado seus serviços de forma célere? Com a palavra, juristas e sociedade.

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