Justiça gratuita

É preciso adotar práticas que favoreçam a desburocratização

Autores

23 de março de 2014, 14h35

No atual contexto de garantia e efetivação de direitos, busca-se cada vez mais minorar as barreiras econômicas e culturais existentes entre o necessitado e as demandas jurisdicionalizadas. Nesse sentido, a justiça gratuita revela-se como instrumento bastante útil, tratando-se, inequivocamente, de um dos elementos necessários à consecução do acesso à justiça.

De modo geral, sabe-se que a justiça gratuita é um benefício essencial conferido aos “necessitados”. Porém, quem são os necessitados e quais os critérios para aferição dessa necessidade? Na dicção do artigo 2º, parágrafo único, da Lei 1.060/50, a definição legal de necessitado é: “todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família”.

A despeito dessa definição, não existem critérios estritamente legais mais apurados, restando ao magistrado a adoção de parâmetros para aferir, no caso concreto, o cabimento ou não desse benefício, o que pode ensejar atos desnecessários e até mesmo abusos, como no caso em que se revogou a gratuidade do demandante com o fito de puni-lo por motivos alheios à sua condição econômica .

O presente artigo busca analisar o tema sob os seguintes aspectos: I – a exigência de comprovação do estado de necessidade; II – a adoção de critérios de hipossuficiência pelos magistrados e, por último, III – aspectos específicos nos casos em que a Defensoria Pública atua. De forma preliminar, entretanto, necessário esclarecer alguns conceitos para facilitar a compreensão do tema.

Assistência judiciária
Por uma questão didática, afirma-se que ao juiz, agente público, compete exercer a função jurisdicional, com auxílio dos servidores públicos — o que gera custos e taxas a serem pagos por quem provoca esse relevante serviço; assim como existem as atribuições do defensor público, igualmente agente público, a quem incumbe esclarecer os direitos da parte hipossuficiente e buscar os meios judiciais e extrajudiciais para a efetivação desses direitos.

Evidente que ambas as atividades geram custos ao Estado. Todavia, a atividade jurisdicional oferecida pelo Judiciário é, em regra, cobrada das partes em forma de custas, as quais são passíveis de isenção; já os serviços prestados pela Defensoria não podem, em hipótese alguma, ser cobrados diretamente daqueles que por ela são assessorados.

Impende notar que essa distinção funcional é fundamental, visto que o atendimento da Defensoria Pública não é amplo e irrestrito como se pretendia. Por questões materiais e humanas, priorizam-se, necessariamente, as pessoas economicamente hipossuficientes que efetivamente comprovarem essa situação, mediante rigorosa triagem socioeconômica realizada em seara administrativa; enquanto a isenção de custas e taxas, a seu turno, é submetida exclusivamente a crivo do juiz podendo, inclusive, ser requerida pela parte patrocinada por advogado particular.

Assim, indica-se que “assistência judiciária” ou “assessoria judiciária” é o acompanhamento e patrocínio de causa em sede exclusivamente judicial, cuidando-se especificamente do processo e das questões jurídicas a ele pertinentes; por outro lado, “justiça gratuita”, “gratuidade de justiça” ou, ainda, “gratuidade judiciária” é o benefício processual conferido pelo magistrado no sentido de isentar a parte de custas, ou seja, dos custos gerados pela provocação da atividade jurisdicional.

Contudo, a mera distinção terminológica é insuficiente. Resta contextualizá-la no plano do acesso à justiça. Consagrado como “o mais básicos dos direitos humanos” , é objetivo precípuo de todo Estado que tenha por fundamento a dignidade da pessoa humana. Em que pese inexistir um conceito unívoco de acesso à justiça, há um consenso de que este não se confunde com acesso ao Judiciário.

De fato, acesso à justiça é um ideário, um norte a ser seguido em direção à dignidade da pessoa humana, de tal forma que os demais termos indicados sinalizam aspectos pragmaticamente autônomos dele. Em outras palavras, tais conceitos revelam aspectos diferentes do acesso à justiça que devem ser conjuntamente observados na prática e, por isso, são meios para a consecução — ou melhor dizendo — para a concretização do acesso à justiça e, em última análise, da própria dignidade da pessoa humana.

Nesse contexto, infere-se que os serviços prestados pelo Estado são distintos, especializados, complementares e igualmente essenciais, ao passo em que servem como instrumentos na consecução de um fim caríssimo ao Estado Democrático de Direito: a dignidade da pessoa humana. Da conjugação desses conceitos é que surgiu uma nova fórmula jurídica mais abrangente e atual, cunhada pela Constituição Federal de “assistência jurídica integral e gratuita” (artigo 5º, inciso LXXIV).

A assistência jurídica integral e gratuita, como se pode depreender, é uma atuação que transborda os limites do Judiciário. Para suplantar as inúmeras diferenças existentes no plano fático — ou seja, com vistas a um equilíbrio real entre as partes — é que se dota o hipossuficiente de um amparo técnico de qualidade.

Esse amparo vai muito além do campo processual: abrange desde a divulgação no seio da comunidade e o atendimento pessoal, em que se dá uma orientação jurídica e cidadã sobre direitos, até a apresentação concreta de meios para efetivá-los, seja por via judicial ou pela via extrajudicial, em qualquer instância, em âmbito individual ou coletivo — e, por isso mesmo, diz-se integral.

Exigência de comprovação
Esse questionamento surge especialmente quando o intérprete coteja a Lei 1.060/50, mais conhecida como Lei de Assistência Judiciária (LAJ) — com redação modificada pela Lei 7.510/ 1986 — e a Constituição Federal de 1988.

Segundo a LAJ, em seu artigo 4º, caput, “a parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família ” ; a Constituição Federal, por sua vez, em seu artigo 5º, inciso LXXIV, indica que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.

Indubitavelmente, a LAJ é anterior à Constituição, de tal modo que se poderia cogitar uma possível não recepção, pautada exclusivamente em uma interpretação literal dos referidos dispositivos. No entanto, balizada doutrina entende não apenas que a lei foi recepcionada, como a declaração de “necessidade” goza de presunção relativa, consoante expressa disposição do artigo 4º, parágrafo 1º da referida lei.

Por outro lado, ainda que acordem em relação à recepção da LAJ, diverge a doutrina no tocante à suficiência da afirmação de pobreza mediante simples declaração e a possibilidade ou não de o magistrado exigir, além dessa declaração, a apresentação de provas para comprovar o alegado estado de pobreza.

No magistério de Cândido Rangel Dinamarco, a mera alegação é suficiente, cabendo exclusivamente à parte contrária o ônus probatório de eventual impugnação . De outra banda, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery lecionam que, caso haja dúvida fundada quanto à pobreza, poderá o magistrado entender pela insuficiência da declaração .

Na ótica dos tribunais, o tema é igualmente controverso. Há oscilação entre a suficiência da declaração de necessidade e a possibilidade de exigência de maiores provas, tais como a apresentação de holerites, declarações de imposto de renda, contracheque de familiares, entre outros. Reflexo desse embate se vê inclusive nas cortes superiores que, não raro, possuem compreensões aparentemente excludentes: no STJ , entende-se atualmente pela possibilidade; já no STF , pela suficiência.

Digno de nota que o STJ consolidou o entendimento com base no próprio argumento de relatividade da presunção, possibilitando o questionamento inclusive pelo magistrado, o qual, caso tenha fundadas razões, poderá exigir a comprovação do alegado sob pena de indeferimento; já o STF, sob um prisma mais garantista, com nítida preocupação em relação ao acesso à justiça, entende que a apresentação é suficiente para a concessão dos benefícios da assistência judiciária, muito embora não o seja para o gozo da mais ampla “assistência jurídica integral e gratuita”, para a qual deverá ser efetivamente comprovada a necessidade.

Critérios objetivos
Em meio a esse extenso debate e devido ao amplo reconhecimento da inexistência de critérios legais mais acurados, os magistrados, com o condão de conferir maior segurança jurídica às suas decisões, vem adotando novos critérios para aferição da hipossuficiência econômica.

Neste diapasão, cumpre mencionar a adoção de critérios utilizados administrativamente pelas Defensorias Públicas . Não é por acaso: as pessoas que procuram a assistência passam, em regra, por uma rigorosa triagem socioeconômica.

No caso da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por exemplo, a temática é administrativamente regulada pela Deliberação 89/2008, emanada do respectivo Conselho Superior. Referida deliberação entende por necessitado a pessoa natural integrante de entidade familiar que atenda, cumulativamente, a algumas condições, tais como: auferir renda familiar mensal não superior a três salários mínimos federais; não possuir recursos financeiros em aplicações ou investimentos em valor superior a 12 salários mínimos federais; não ser titular de bens cujos valores superem a quantia equivalente a 5.000 unidades fiscais do estado de São Paulo — UFESP’s, entre outros.

Segundo a deliberação, cabe ao defensor público responsável exigir um rol de documentos: I – declaração de necessidade; II – avaliação da situação econômico-financeira, informando dados pessoais sobre sua família, renda e patrimônio; III – apresentação de carteira de trabalho, comprovante de rendimentos (holerite), declaração do empregador ou do tomador de serviços (artigo 6º) — tais documentos servirão, em suma, para comprovar o enquadramento nos padrões de atendimento, sob pena de denegação da assistência.

Para além da adoção desses parâmetros, vale enaltecer novo entendimento segundo o qual há presunção de hipossuficiência àquele que é atendido pela Defensoria Pública, dispensando-lhe a apresentação de provas nesse sentido . Essa compreensão se revela em recentes decisões do TJ-SP .

Com bastante acerto, condicionou-se o benefício ao olhar mais atento e humano do magistrado, cuja função é aferir, em cada caso, o seu cabimento, denotando genuíno interesse do legislador em flexibilizar o instituto para contemplar o maior número possível de situações da vida. Contudo, furtou-se à indicação de critérios objetivos mínimos que garantam segurança a quem pleiteia, tampouco ao próprio julgador, resultando em sentimento de incerteza que poderá redundar no seu uso indevido.

Evidentemente que o requerimento e a juntada da respectiva declaração tornam apta e lídima a sua concessão. Porém, o documento não passa de um indício e, como tal, passível de questionamento — inclusive por parte do magistrado que, na atualidade, é dotado de maior proatividade no exercício da função jurisdicional. Dessa forma, lícita a aplicação de multa de ofício, na forma do artigo 4º, parágrafo 1º da LAJ, se comprovado não ser parte economicamente hipossuficiente.

Demonstra-se, portanto, salutar a adoção de parâmetros mais objetivos. Nessa toada, a utilização dos critérios administrativos das Defensorias é tão somente uma das possibilidades existentes, mas que poderá ganhar cada vez maior relevância diante da inexistência de uma diretriz ou uniformização.

Igualmente relevante a possibilidade de se aplicar a presunção de pobreza nos casos em que a Defensoria Pública promova a assistência da parte. A nosso sentir, essa presunção decorre da idoneidade e da própria praxe adotada pela Instituição, o que torna desnecessária a exigência de apresentação de novos documentos para comprovar a situação econômica de quem por ela assessorado. Ressalta-se, ainda, que a não realização da triagem poderá resultar em desvio funcional e responsabilização — o que reforça a seriedade do procedimento no âmbito administrativo.

Por derradeiro, sob o prisma do atual Estado Democrático de Direito, no qual se prestigia o acesso à justiça e que tem por fundamento a dignidade da pessoa humana, é mais que desejável a diminuição de entraves para concessão da gratuidade de justiça àqueles que almejam a efetiva prestação jurisdicional. Dessa maneira, necessária a adoção de práticas que cada vez mais favoreçam a desburocratização — sem que, contudo, se dê margem a abusos e ao uso incorreto desse benefício.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!