Anexação à Rússia

Povo da Crimeia tem direito à autodeterminação

Autor

  • Marcelo Ribeiro Uchôa

    é Secretário Especial de Políticas sobre Drogas do Ceará. É Professor Doutor de Direito Internacional da UNIFOR onde também já lecionou Direitos Humanos Hermenêutica Jurídica e Direito do Trabalho. Advogado Sócio de Uchôa Advogados Associados.

22 de março de 2014, 9h22

A história é uma sucessão de fatos correlacionados no tempo. Sem se compreender essa pressuposição inicial é difícil entender o porquê do povo crimeio haver decidido pela recente anexação à Rússia.

A Crimeia é uma região encravada numa península ao sul da Ucrânia, situada às margens do Mar Negro, em área pouco maior que o estado de Sergipe. Desde que foi fundada pelos crimérios, por volta do século VIII AC, foi dominada por gregos, godos, hunos, romanos, bizantinos, mongóis, venezianos e tártaros, até passar para as mãos do Império Otomano no ocaso da Idade Média, situação revertida em 1777, quando foi conquistada pelos russos.

De lá pra cá, passou a fazer parte da Rússia, sendo palco de importantes guerras relacionadas ao domínio sobre os Bálcãs e de implantação do regime comunista. Em 1922, constituiu a República Autônoma Socialista da Crimeia, aderindo à ex-União Soviética por razões de natureza históricas, culturais e estratégico-militares.

O território voltou a ser palco de sangrentas batalhas durante a II Guerra Mundial, sendo ocupada temporariamente pelos alemães. Findo conflito, os soviéticos impuseram forte política de deportação contra diversas etnias habitantes da região acusadas de apoiar o nazismo, restando ali estabelecidos, majoritariamente, desde então, crimeios de ascendência russa. Em 1954, o chefe de Estado soviético Nikita Kruschev – que fora ex secretário geral do partido comunista ucraniano – de maneira unilateral e sob tímida contestação à época (compreensível para uma ditadura), destacou a Crimeia da República Soviética da Rússia, presenteando-a à República Soviética da Ucrânia, em comemoração ao terceiro centenário da primeira integração entre os dois territórios. Importa salientar que a desarrazoada doação se deu dentro da unidade do Estado Soviético, não afetando a territorialidade internacional do extenso país.

Em 1º de dezembro de 1991, dentro dos eventos que poriam fim, ainda naquele ano, à União Soviética, a Ucrânia, respaldada em plebiscito interno que gozou da aprovação de mais de 90% da população, declarou sua independência, carregando adstritamente, sob sua soberania, a Crimeia, na condição de República Autônoma.

Mas a questão é que o território da Crimeia, que não chega a representar 5% da área total da Ucrânia, é habitado por cerca de 2 milhões de pessoas, mais de 65% de origem russa, estando o restante dividido entre ucranianos (cerca de 25%) e outras etnias. Naquela fração territorial, a língua russa é mais falada que o tártaro da Crimeia e mesmo o ucraniano. Isso decorre do fato de que, ao longo dos anos, pelo menos durante os dois últimos séculos, a região esteve mais sob o raio de influência de Moscou que de Kiev, situação indiscutível e que somente veio a se alterar de maneira substancial após a declaração de secessão ucraniana da União Soviética, em 1991.

Desde então, a conjuntura política vinha mantendo Ucrânia e Rússia dentro de um arco administrável de relações, comercialmente enraizadas num proeminente intercâmbio de gás, de gêneros alimentícios e na troca de entendimentos militares, bastando ressaltar que a frota russa no Mar Negro tem como base o porto crimeio de Sebastopol.

Ocorre que, a partir de 2008, uma aproximação gradual da Otan à Ucrânia, provocada pelos Estados Unidos, que sempre viram na integração de ex nações comunistas ao bloco militar do norte um meio de prospectar poder na região, somado ao manifesto aliciamento da União Europeia em prol da integração comercial com a antiga república soviética, levaram as relações ucrano-russas à situação de deterioração, somente não esfacelada em razão da assunção de Viktor Yanukovich, aliado de Vladimir Putin, ao cargo de primeiro-ministro da Ucrânia, em 2010.

Mas mantidas as pressões ocidentais, Viktor Yanukovich foi deposto pelo parlamento ucraniano pró-EUA/União Europeia, em 22 de fevereiro último, ato interpretado por muitos como golpe de Estado. Com efeito, as relações entre os dois países restaram profundamente afetadas, em razão de que decidiu o governo russo, de forma unilateral, ocupar militarmente a região da Crimeia, ação extrema que, apesar de condenável, contou com o apoio maciço da população local, em sua ampla maioria de origem russa. Vale ressaltar que, nos últimos anos, já haviam se iniciado hostilidades do parlamento ucraniano com outras etnias residentes no país, inclusive crimeios, impedidos de adotar a língua russa como oficial em sua própria república autônoma.

A medida adotada pelo povo da Crimeia, através de seu parlamento local, foi a realização de um plebiscito no último dia 16 de março, em que, por mais de 95% dos votantes, optou pela secessão territorial da Ucrânia e anexação à Rússia, anexação imediatamente consentida pelo governo e o parlamento russos.

Em resumo, no que pese os Estados Unidos já haverem cancelado exercícios militares anteriormente programados conjuntamente com a Rússia e decidirem por estreitar seus novos intercâmbios estratégicos com a Polônia e os países bálticos (Letônia, Estônia e Lituânia), e, ainda, no que pese haverem direcionado porta-aviões, destróiers e submarinos nucleares para o Mar Negro, ao que tudo indica, a Crimeia seguirá sendo, doravante, um ente da Federação Russa.

Desejo de ser russo
Nem as ameaças de sanções, boicotes e bloqueios do Conselho de Segurança da ONU, da Otan, das eventuais implicações comerciais com a União Europeia, e tampouco a advertência dos ucranianos de que deverão armar-se nuclearmente devido à transgressão ao comprometimento de garantia de segurança russa à Ucrânia assumido na Convenção de Budapeste de 1994, deverão demover crimeios e russos da decisão de anexação. Isto porque há um elemento central no interior de toda essa discussão que tem sido pouco lembrado pelos que analisam a polêmica sob a égide da influência midiática: o povo da Crimeia e seu desejo de pertencer à Rússia.

Em torno disso, para além de se discutir se os interesses ucranianos (sua Constituição, por exemplo) foram respeitados, se o plebiscito realizado no último dia 16 de março com a presença de tropas russas nas ruas intimidou votantes contrasseparatistas, há que se considerar que é direito fundamental do povo a autodeterminação. Um direito humano que, mais que uma convicção moral, é também norma positiva tutelada, tanto pelo Direito Internacional como pelos mais diversos direitos domésticos.

Não é fácil apontar com segurança o primeiro documento a defender em escala universal o direito de autodeterminação como bem jurídico inalienável de todos os povos. Porém, um dos mais relevantes, seguramente, foi a mensagem enviada pelo presidente James Monroe ao Congresso norte-americano, em 1823. Pela Doutrina Monroe, os Estados Unidos se mostravam contrários ao domínio estatal sobre um território não identificado com o povo residente. Compreendia-se, na época, que não havia sentido uma população com certa identidade política, cultural, étnica, linguística, econômica, etc., ser mantida longe do domínio de seu território.

A Doutrina Monroe, é bom que se diga, se converteria, doravante, na razão legitimadora do direito de autodeterminação que, sendo direito humano oriundo da liberdade, livraria praticamente todos os povos da America Latina do jugo europeu, apesar da natural indisposição de Espanha, Portugal e demais Estados suseranos para acatá-la.

Tornou-se tão robusto o princípio da autodeterminação dos povos no Direito Internacional que a manifestação de reconhecimento de novo Estado por Estado já existente é considerada como meramente declaratória e não como constitutiva do direito do ente postulante de estabelecer-se enquanto Estado soberano.

Vê-se, portanto, não ser coincidência a Carta das Nações Unidas, de 1945, expressar, já no seu primeiro artigo, ser objetivo da ONU: “Art. 1.2. Desenvolver relações de amizade entre as nações baseadas no respeito do princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos (…)”.

Por sua vez, também o art. 1º, tanto do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) como do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), dois dos mais importantes documentos multilaterais universais sobre direitos humanos já firmados, dispõem que: “1. Todos os povos têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural. (…)”.

No mesmo sentido, segue o art. 3º: “Os Estados partes do presente pacto, inclusive aqueles que tenham a responsabilidade de administrar territórios não-autonomos e territórios sob tutela, deverão promover o exercício do direito à autodeterminação e respeitar esse direito, em conformidade com as disposições da Carta das nações unidas”.

Não por acaso, os Estados que compõem a sociedade internacional orientam suas Cartas fundamentais no acolhimento do direito dos povos à autodeterminação, sendo este, inclusive, um dos princípios a reger as relações internacionais da República brasileira, por força de aplicação do art. 4º, inciso III, verbis: “Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (…) III – autodeterminação dos povos; (…)”.

No mais, a Corte Internacional de Justiça, o Conselho de Segurança da ONU, a doutrina do Direito Internacional e a prática dos Estados têm acatado a tese da autodeterminação como direito humano inalienável do povo, determinando a vinculação do aferimento do interesse de secessão ao resultado de um plebiscito.

A solução do plebiscito foi entendida como legítima em diversos casos da história recente, como a separação da Ucrânia da antiga URSS, em 1991, da ex Tchecoslováquia, em 1993, de Quebec/Canadá, em 1980 e 1995 (venceu a não separação), do Timor Leste, em 1999, Sudão do Sul, em 2011. Por que não reconhecer como legitima a solução do plebiscito agora na Crimeia?

É verdade que os ucranianos não consentiram com a adoção plebiscitária, mas é natural que se opusessem à tática sabendo do desejo imanente do povo crimeio de emancipação. O que vale ser comentado em meio a tanta polêmica é que se está diante de um caso em que, mantido o curso natural da história, não fosse o arbítrio de um déspota (Kruschev), a região em conflito jamais teria deixado de ser russa.

Há quem diga que a situação no Mar Negro abrirá espaço para que outras etnias busquem suas emancipações. Mas esta prerrogativa já foi explicitamente aceita em 2008, quando da secessão unilateral de Kosovo da Sérvia, ação que contou com o apoio aberto dos Estados Unidos, os quais não tardaram sequer um dia para reconhecer o novo Estado após a proclamação da contestada independência. Ademais, repise-se, o que de fato deve ser levado em conta na definição territorial é o povo e não o Estado em si, de sorte que o ideal é que todas as minorias étnicas possam gozar de um adjacente território para ali estabelecer seu Estado, segundo suas finalidades gerais e as diretrizes de seu governo.

É consabido que os crimeios de ascendência russa poderiam tão somente deslocar-se da Crimeia para o território russo, sem necessariamente terem que fracionar à unidade territorial ucraniana, mas aí, por consequência, teriam que abrir mão de sua cultura local, sua história recente, sua memória, seu habitat, o que, nem de longe, é o escopo dos mecanismos internacionais de direito.

Observe-se que a situação da Crimeia destoa completamente de uma eventual hipótese de tentativa de separação de estado membro do resto do Brasil, o que, crê-se, seria impossível. Impossível não propriamente porque a Constituição Federal assegura, no caput do art. 1º, que a República é formada pela “união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal”, outrossim, ressaltando, no art. 60, §4º, que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tende a abolir “I – a forma federativa de Estado”, mas, porque, no Brasil, exceto pelas etnias indígenas, que usufruem de territórios legalmente demarcados e que não demonstram motivação para separar-se do país, existe apenas um povo, o povo brasileiro, já devidamente assentado em seu território e submetido a uma estrutura de poder e a uma rede de direitos que reconhece e aceita como legítimas. Não há, pois, como se falar em autodeterminação no país.

Por derradeiro, nunca será demasiado recomendar que, na orientação do processo cognitivo acerca dos elementos que asseguram o direito do povo crimeio ao território ora em questão, sejam apartadas do raciocínio as impressões pessoais, positivas ou negativas, relacionadas aos protagonistas dos respectivos eventos (Vladimir Putin, Viktor Yanukovich, Barack Obama, etc), bem como relativizados os interesses comerciais, bélicos, enfim, gerais, das potências envolvidas (Ucrânia, Rússia, União Europeia/EUA). Afinal de contas, o que deve ser considerado, e considerado com bastante peso na análise hermenêutica, é o desejo do povo diretamente afetado pela polêmica, uma vez que o assunto excede ao tema conflito de soberania estatal territorial, relacionando-se, outrossim, à seara dos direitos humanos.

Autores

  • Brave

    é professor da Universidade de Fortaleza (Unifor) e mestre e doutorando em Direito Constitucional pela mesma instituição. Também é doutorando em Direito do Trabalho e Direitos Humanos pela Universidad de Salamanca, na Espanha. Autor do livro Direito Internacional (Ed. Lumen Juris, 2013), é sócio do escritório Uchôa Advogados Associados.

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