Ideias do Milênio

"Relação entre EUA e Rússia é tão ruim quanto no fim da guerra"

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21 de março de 2014, 13h27

Entrevista concedida pela ex-consultora da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) Angela Stente ao jornalista Luís Fernando Silva Pinto, para o programa Milênio, da Globo News. A entrevista foi concedida e veiculada no programa antes do dia 17 de março, quando a Crimeia fez um referendo que aprovou com 96,8% dos votos a adesão da região à Federação Russa. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira.

Reprodução/GloboNews
Angela Stent [Reprodução/GloboNews]A crise na Ucrânia deixou as relações entre Rússia e Estados Unidos em níveis de tensão parecidos com o da Guerra Fria. A ocupação militar russa da Crimeia após uma revolta popular que tomou as ruas de Kiev contra o governo de Viktor Yanukovych, por causa de um cancelamento de um acordo com a união europeia levou os Estados Unidos a ameaçarem os russos com sanções e levou Moscou a considerar retaliações contra os americanos. Enquanto isso, a Ucrânia, peça chave para a distribuição de gás para a Europa, está a beira da falência e dividida politicamente. Mas as disputas entre Estados Unidos e Rússia tem raízes mais antigas, desde a dissolução da União Soviética, em dezembro de 1991, os dois países interpretam a realidade de formas opostas. Para os Estados Unidos a década de 90 foi um renascimento para as liberdades e da democracia na Rússia. Para os russos, os anos 90 foram uma década de pobreza e humilhação, vendo os americanos tomarem decisões unilaterais mesmo na vizinhança da Rússia, como aconteceu na Sérvia. A situação da Ucrânia hoje mostra uma inversão de papeis: Moscou toma as decisões. Washington, só pode reagir. Nesse contexto, o livro da professora Angela Stente não poderia ser mais atual, dedica 355 páginas ao exame de um só tema: os limites da parceria e a mecânica da rivalidade entre Estados Unidos e Rússia. Especialista nas relações entre Estados Unidos, Rússia e Europa, Stente já serviu ao governo americano no departamento de estado, foi consultora da Otan e hoje ocupa o cargo de diretora do centro para estudos eurasianos russos e do leste europeu, e é professora de governo e diplomacia da Universidade de George Town.

Luís Fernando Silva Pinto — O título do seu livro é: os limites da parceria na relação entre Estados Unidos e Rússia no Século XXI. Essa palavra limite parece ser central. Por quê?
Angela Stente — Porque desde o colapso da União Soviética e do fim da Guerra Fria com certeza os Estados Unidos — e acho que no inicio a Rússia também — estava tentando tornar a relação mais produtiva, que fosse além da animosidade, da hostilidade e das desconfianças da Guerra Fria. Isso foi muito difícil de fazer, porque ficou claro, quando você olha para os últimos 22 anos, que ambos os lados têm uma visão diferente do que está relação melhor seria. O principal é isso: vemos o mundo de maneira diferente e discordamos sobre o que uma boa parceira seria.

Luís Fernando Silva Pinto — Bem, o exemplo está presente na Ucrânia, na Crimeia — tensão é o nome do jogo — como você vê essa situação?
Angela Stente — O que aconteceu agora na Ucrânia é, de certa forma, o clímax de uma das políticas que Vladimir Putin tem perseguido desde que subiu ao poder que é tornar a Rússia uma grande potência novamente e garantir que a Rússia mantenha uma esfera de influência sobre os antigos Estados soviéticos, particularmente, a Ucrânia tem sido a questão mais nevrálgica. Como eu falo no meu livro, há 10 anos, durante a revolução Laranja, o Kremlin estava convencido que os Estados Unidos e os Europeus estavam tentando derrubar um governo pró-russo lá e colocar um governo pró-ocidente e que isso seria o primeiro passo para fazerem isso na Rússia também. Então, para a Rússia, a Ucrânia tem dois aspectos: na política externa é a escolha da Ucrânia entre o Ocidente e a Rússia e, no plano doméstico, é a preocupação de que o que acontecer na Ucrânia pode acontecer com a Rússia também.

Luís Fernando Silva Pinto — O presidente Obama é um estadista do mesmo nível de Putin em termos de política externa?
Angela Stente — Com certeza, Putin tem feito um jogo muito inteligente recentemente. Ele sabe o que ele quer e tem sido muito consistente em buscar seus objetivos. O que eu diria sobre o presidente do Obama é que há muitos desafios na política externa que ele precisa enfrentar. Tem a retirada do Afeganistão, a guerra na Síria, está negociando com o Irã para evitar qualquer uso de força militar no Irã, então ele tem muitos desafios. Também acho que ele ficou muito desiludido com a relação com a Rússia desde que o presidente Putin voltou. Quando Medvedev era presidente a relação entre os Estados Unidos e Rússia era muito melhor. O pior momento foi logo antes da Ucrânia, quando ofereceram asilo político a Edward Snowden e isso foi um forte golpe na relação entre Estados Unidos e Rússia do ponto de vista norteamericano e o instinto do Obama foi se afastar dessa relação, colocar ela em espera e focar em outras coisas. O problema é que Putin não fez isso. Putin está muito focado em todas essas questões que estão no centro dos interesses dele, como a Ucrânia. Os Estados Unidos, até o momento em que a revolução começou, em novembro, estava praticamente ausente da Ucrânia. Os europeus que estavam engajados na Ucrânia. Então, é um nível diferente de interesse e um nível diferente de foco e você tem uma Rússia muito mais presente e muito mais bem sucedida do ponto de vista deles.

Luís Fernando Silva Pinto — Em que categoria o Edward Snowden se enquadra? Foi uma provocação?
Angela Stente — Edward Snowden cai na categoria… Há todas essas coisas que não sabemos ao certo: como ele foi parar em Moscou e quanto contato ele tinha com os russos antes? Há um debate sobre isso. Então, não sabemos todos os fatos aqui. Do ponto de vista dos Estados Unidos foi, claramente, um desastre porque o material vazou sobre o que a agência de segurança nacional estava fazendo nos Estados Unidos e o que estava fazendo com os aliados. Putin, de alguma forma, conseguiu — conscientemente ou não — o que a União Soviética nunca conseguiu que é criar essas cisões profundas entre os Estados Unidos e seus aliados e, particularmente, entre Estados Unidos e Alemanha. Mas por mais que a relação tenha sido prejudicada, agora estamos trabalhando com a Alemanha na questão ucraniana, mas é possível que o presidente Putin realmente acredite que os Estados Unidos estão querendo afetar a Rússia, que estão tentando derrubar seu governo, que estão agindo contra ele. Se ele acredita nisso, então o caso do Edward Snowden foi uma maneira de dizer: “Olha, nós podemos retaliar contra vocês e podemos desafia-los em sua própria narrativa.”

Luís Fernando Silva Pinto — Na Síria, mesmo que você tenha a frota soviética em Tartus, ninguém em nenhum lugar do Kremlin pode ignorar a brutalidade do regime de Assad. Rússia e Estados Unidos trabalharam juntos pela remoção das armas químicas, mas a Rússia continua fornecendo armas convencionais para Assad, que, aparentemente, está conseguindo ter algum sucesso contra a insurgência. Qual é o jogo ali?
Angela Stente — O jogo russo ali — e acho que eles sempre acharam que Assad prevaleceria e eles estão tentando fazer com que ele prevaleça ao fornecer armas a ele — é que querem que exista um regime secular na Síria. O que a Rússia teme é a chegada ao poder de grupos islamistas e isso não é apenas um perigo regionalmente, mas é um perigo para a Rússia em si.

Luís Fernando Silva Pinto — Por causa da Chechênia.
Angela Stente — Por causa da Chechênia e não apenas a Chechênia. Todo o Cáucaso do Norte é uma bomba relógio. Tem uma insurgência acontecendo lá. Então, é importante colocar no poder um governante secular forte na Síria e, por mais que estejamos vendo essa catástrofe humanitária no país, aparentemente, do ponto de vista Russo, é mais importante manter Assad no poder ou alguém como ele, quer dizer, os russos dizem não gostamos muito dele, mas no momento esse é o governo legítimo. Essa é a questão para eles. E não ter um governo… sabemos que a oposição na Síria se radicalizou. Há elementos da Al-Qaeda lá. Precisam garantir que nenhum deles consiga tomar o poder porque isso é visto como uma ameaça direta aos interesses russos.

Luís Fernando Silva Pinto — Se Angela Stente consegue ver isso e Angela Stente consegue ver que os Estados Unidos também tem como prioridade o islamismo radical, porque que os dois governos não conseguem dizer, bem, temos um objetivo em comum aqui. Por que não fazem isso?
Angela Stente — É uma pergunta excelente porque você tem razão. Recentemente temos os mesmos objetivos na Síria. Nenhum de nós quer ver um governo radical chegando ao poder. O problema é como o caminho que você chega nisso e os Estados Unidos têm vontade — claro que as negociações em Geneva não deram certo — mas os Estados Unidos têm vontade de incluir diferentes grupos da oposição nessas conversas sobre o que acontecerá depois de Assad. Os russos têm estado mais refratários a isso e os Estados Unidos continuaram a dizer, até recentemente, que uma pré-condição para resolver essa questão é que Assad tem que concordar em renunciar. Então, o problema é como chegar nesse objetivo comum. E, assim, isso se liga a percepção russa de uma relação privilegiada com o governo sírio atual e a falta de confiança de que os Estados Unidos concordariam com um governo que não ameaçasse os interesses russos. É mais sobre como você chega lá e não sobre o objetivo final.

Luís Fernando Silva Pinto — Gostaria de voltar ao assunto da desconfiança que você citou, mas, primeiro, deixe-me perguntar sobre o Irã. No jogo geopolítico, ou na visão de Moscou, é a eliminação da possibilidade de um arsenal nuclear no Irã. É o que eles querem ou não?
Angela Stente — Eu diria que o Irã é outro lugar em que nós e os russos compartilhamos o mesmo objetivo. Não queremos que o Irã seja um país que tem armas nucleares. Por outro lado, eu diria que, primeiro, os russos, pelo menos oficialmente, dizem que não pensam que o Irã está tão próximo de produzir uma arma nuclear como os Estados Unidos ou o Ocidente acreditam e, também, de alguma forma, que os russos não acreditam que os iranianos realmente querem fazer isso. Além disso, você também tem um grupo na Rússia que vai dizer que tem que aceitar um Irã nuclear já que aceitaram um Paquistão e uma Índia nuclear, não quisemos isso mas tivemos que aceitar. Então, por mais que ache que ninguém quer um Irã com armas nucleares, os russos estão mais dispostos a contemplar aceitar essa situação e você pode ver, agora que caminhamos para uma possível solução com o Irã, a Rússia claramente quer terminar com as sanções porque foi afetada pelas sanções mais duras, por mais que tenha concordado com os Estados Unidos ao adotar sanções mais fortes em 2010. Agora, os russos estão dizendo que, se temos um acordo com o Irã, porque os Estados Unidos ainda precisam de um programa de defesa de mísseis em que coloca mísseis perto da Rússia? Porque se o Irã não terá armas nucleares, os Estados Unidos não precisam de um programa de defesa contra mísseis, talvez contra a Coreia do Norte, mas porque fazer instalações no Leste Europeu então?Há aspectos de um possível acordo que podem causar mais tensões entre os Estados Unidos e Rússia.

Luís Fernando Silva Pinto — Há uma solução?
Angela Stente — A única solução seria se os Estados Unidos e seus aliados na Europa estivessem dispostos a conhecer os interesses russos. O presidente Obama disse que nos últimos dias nós reconhecemos que a Rússia tem interesses na Crimeia e na Ucrânia, que os respeitamos, que precisamos agir em conjunto. Eu acho que isso provavelmente também significaria ter uma política mais consistente em dar apoio a esses diferentes grupos da oposição na Ucrânia. Os russos têm reclamado que as pessoas em Maidan são todos fascistas e terroristas. Claro que isso não é verdade, mas há nacionalistas e grupos de extrema direita em Maidan e os Estados Unidos deveriam deixar claro que não apoia esses grupos, que apoiamos os grupos principais e que gostaríamos de um governo mais de centro em Kiev. No momento, é uma situação muito fluida, mas a solução para isso será reconhecer os interesses russos. O que isso significar é que os Estados Unidos e os europeus não verão o tipo de Europa completa e livre que eles têm falado sobre há muito tempo e países como Georgia, Moldova e Ucrânia terão essas questões territoriais não resolvidas que provavelmente não serão resolvidas por muito tempo.

Luís Fernando Silva Pinto — Durante a Guerra Fria houve incidentes e houve a possibilidade de um confronto nuclear. Havia regiões do mundo a serem disputadas, mas, agora, parece que é uma questão da Rússia querer um pouco mais de respeito. É isso?
Angela Stente — O respeito é parte disso. Os russos sentem ou particularmente o Kremlin acha que desde que o presidente Putin chegou ao poder — e mesmo quando ele era primeiro-ministro por aqueles quatro anos — a Rússia restaurou sua economia. Chegou a ter 7% de crescimento anual até a crise econômica. É um player de novo no mundo. É uma superpotência nuclear. Continua como a outra superpotência nuclear. É uma superpotência energética, um pouco menos agora com a descoberta do gás não convencional e coisas do tipo, mas, ainda assim, tem recursos importantes, tem poder de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas e quer ter o respeito que tinha quando era a União Soviética mesmo que seja um país mais fraco em termos militares e a economia seja baseada principalmente em matérias primas. É, com certeza, um fator, mas a questão então é como você define o respeito. Alguns países europeus estão mais dispostos a dizer: claro, respeitamos os interesses especiais da Rússia e a respeitamos como um país. Os Estados Unidos possivelmente não estão dispostos a dizer isso, mas, nos Estados Unidos, e estamos divididos com relação a isso, porque temos grupos muito fortes não apenas no Congresso, mas também fora do Congresso, que estão pressionando por questões de direitos humanos na Rússia. Recentemente a questão dos direitos LGBT se tornaram um tema controverso por causa da legislação russa. Nos Estados Unidos, a questão para nós é até que ponto podemos ir ao respeitar a Rússia. Nós respeitamos a Rússia, mas como lidamos com nossos grupo? Somos uma democracia e apoiamos os direitos humanos e direitos LGBT e temos que criticar a Rússia nessas questões. Então, este é o debate que temos dentro deste país e, nos últimos 22 anos que eu estudei em meu livro, com certeza não fomos capazes de resolver e a relação está provavelmente tão ruim quanto estava quando a União Soviética acabou. Com certeza tão ruim quanto estava durante a Guerra da Geórgia.

Luís Fernando Silva Pinto — Entretanto, e para terminar, a Segunda Guerra, Guerra Fria, a atual crise na Ucrânia, nós nunca vimos os Estados Unidos e a Rússia em conflito um com o outro. É isso mesmo ou podermos ver isso acontecer?
Angela Stente — Os Estados Unidos e a Rússia não vão entrar em conflito. Não vamos entrar em nenhum tipo de conflito militar com a Rússia sobre o que está acontecendo na Ucrânia e vamos continuar a trabalhar com a Rússia — como precisamos fazer — sobre a questão iraniana, na questão síria e em outros assuntos no Oriente Médio. Então, é uma parceria limitada. Tem limites bem estritos, mas em algumas questões multilaterais estamos destinados e continuaremos a trabalhar com a Rússia porque temos a capacidade de afetar os rumos do Oriente Médio.

Luís Fernando Silva Pinto — E quanto a China nesta equação?
Angela Stente — A China é claramente a potência em ascensão. A relação sino-russa é muito melhor do que já foi em parte porque estão trabalhando para garantir que os Estados Unidos não seja o hegemon unilateral. A relação sino-russa é melhor do que antes, mas os chineses tem uma visão muito clara da relação que têm com a Rússia. A Rússia é um importante fornecedor de matéria prima para a China, de energia e se apoiam mutuamente em questões globais como a importância de um mundo multipolar. A Rússia apoia a China em questões como o Tibete, Taiwan, entre outras, mas os chineses também olham para economia russa e também olham para como o sistema político russo está organizado e são muito pragmáticos com relação a isso. Eles têm uma visão clara disso e, no longo prazo, há uma questão da fronteira leste da Rússia. Está em um processo de despovoamento e a Rússia enfrenta uma crise demográfica, principalmente no leste, e os chineses estão muito ativos naquela região economicamente. Então, no longo prazo, há uma questão sobre o que acontecerá nessa relação. Será que os russos precisam se preocupar? No momento não ouvimos muito sobre isso. Agora, claro que a relação entre os Estados Unidos e China é também muito importante para os Estados Unidos. U$ 500 bilhões em relações comerciais com a China frente a U$ 40 bilhões com a Rússia, então é um jogo em três pontas. Era assim na Guerra Fria também, mas, claro que as dimensões mudaram. Tanto os Estados Unidos quanto a Rússia terão que lidar com uma China em ascensão e com questões sobre a futura postura militar chinesa.

Luís Fernando Silva Pinto — Quando você vê uma luta de boxe é fácil de entender, mas uma luta de boxe com três pessoas no ringue é muito mais complexo.
Angela Stente — É mais complexo. Os Estados Unidos e a Rússia anunciaram articulações na Ásia. Estamos todos tentando diversificar nossas relações com a Ásia, de certa maneira, para tentar garantir que teremos outras opções à ascensão chinesa. Então, teoricamente, a Ásia deve ser — a China deve ser — uma questão em que os Estados Unidos e a Rússia podem conversar sobre interesses comuns, mas ainda não chegamos lá, dadas todas essas outras crises.

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