Planejamento diferenciado

Planejamento Jurídico previne riscos à sociedade de médicos

Autor

  • Giovanna Trad

    é advogada especialista em Direito Médico e da Saúde diretora Científica do Instituto Brasileiro de Direito Médico e da Saúde (Ibedim) presidente da Comissão de Biodireito (OAB/MS) e membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal da OAB.

21 de março de 2014, 8h00

Sabe-se que os serviços de natura intelectual ostentam caráter personalíssimo, ou seja, em um primeiro momento só podem ser exercidos pelo profissional contratado. Por essa razão, em tempos outros, não aceitava-se a ideia de constituir sociedades formadas por pessoas de profissão regulamentada. Raciocinava-se que a habilitação para o exercício de determinado ofício é individual e, portanto, intransferível (a outro profissional ou a ente fictício, como a pessoa jurídica). Com o inevitável crescimento populacional, as demandas em diversos setores aumentaram, e o mercado exigia uma mudança e quebra de paradigmas, ainda mais na área da saúde, em que a população clamava por mais consultas, internações, exames, expansão de novas especialidades, entre outros. A logística profissional exigia melhoras. Este fenômeno social despertou no médico a necessidade de se unir a outras colegas que aspiravam os mesmos objetivos. Tudo foi se flexibilizando, e o direito legitimou à existência de sociedade de pessoas de profissão regulamentada.

Diante das vantagens auferidas na constituição de uma pessoa jurídica (fins tributários, expansão do exercício da medicina, imposição das operadoras de planos de saúde) a maioria da classe médica hoje trabalha dentro dos formatos societários, materializados em clínicas, hospitais, entre outros. Ocorre que (por ser a atividade médica dotada de especificidades), se não houver um planejamento diferenciado e consciencioso dos termos do contrato social, os problemas poderão ser maiores que as expectativas.

Assim, muito se tem a planejar na formação de uma sociedade, que varia desde a escolha dos sócios até a escolha do enquadramento jurídico societário. Este último pode se dar de várias formas, mas as mais manejadas na atividade médica são as seguintes: i) sociedade empresária[1] sob o regime de sociedade limitada; ii) sociedade simples; iii) e sociedade simples sob a forma de sociedade limitada. A primeira tem incidência quando o atuar médico conjuga-se com outras atividades econômicas. É o caso, por exemplo, das clínicas que oferecem serviços de hotelaria, transporte, entre outros. Nesta hipótese, o patrimônio dos sócios não é atingido pelo passivo da sociedade. Já na sociedade simples, o atendimento médico é a única atividade explorada. Em regra, os médicos respondem pelas dívidas da empresa apenas se os recursos financeiros da sociedade forem insuficientes. Por último, é possível constituir um modelo de sociedade simples sob o regime de sociedade limitada, isto é, conserva-se a característica primitiva de seu objeto (atuação exclusivamente médica), mas permite-se afastar completamente a responsabilidade dos sócios pelas dívidas da empresa.

Conforme mencionado, no apogeu do processo de constituição da sociedade, os sócios estão em plena harmonia e, por isso, não cogitam a possibilidade de dissidências futuras. Deste modo, não estudam a construção de cláusulas tendentes a resolver eventuais pendências. Daí surgem as controvérsias, que, em sua maioria, deságuam no Poder Judiciário, ocasionando sofrimento aos sócios e prejuízos financeiros e estruturais à sociedade.

Afora as omissões contratuais, temos visto com frequência, relevantes equívocos na elaboração das cláusulas sociais, com implicações danosas e onerosas à sociedade.

Nas linhas que seguem, sem o escopo de esgotar as hipóteses, apontaremos alguns exemplos, apenas para que o leitor tenha a dimensão da necessidade de se fazer diagnóstico e prognóstico minuciosos durante as etapas da formação do vínculo societário.

1. A inadequação de um enquadramento jurídico societário e a redação confusa de seu objeto social certamente serão alvos de desavenças jurídicas futuras. Explicarei com um exemplo: Ao constituir sociedade com profissionais de categoria distinta, ou mesmo com um primo, pai, esposa (que não tenha formação médica), o médico jamais imagina que estes comemorativos trarão ônus fiscais à pessoa jurídica. Isso porque, as sociedades uniprofissionais (desde que não exibam finalidade e exploração empresarial) possuem regime jurídico diferenciado (e bastante benéfico) referente ao recolhimento do Imposto sobre Serviços de qualquer natureza (ISSQN), com abrangência em quase todos os municípios do Brasil. Ou seja, in casu, à obtenção do regime excepcional apenas encontra trânsito quando a sociedade é alicerçada exclusivamente por sócios médicos.

Repito que, apesar de a Ordem Jurídica dispor explicitamente sobre aludido benefício, inúmeros contratos sociais (talvez, por ausência de planejamento) inserem a sociedade no tipo empresarial quando caberia perfeitamente enquadrá-la como simples, que, como dito, minimiza a carga tributária.

Por fim, a delimitação pormenorizada do objeto social de uma sociedade simples, é medida de rigor para a prevenção de possíveis controvérsias, pois qualquer margem à interpretação no sentido de que a sociedade tem fins voltados para o exercício organizado de atividades econômicas de produção ou circulação de bens e serviços pode inviabilizar a apuração e o recolhimento do ISSQN na forma mais econômica.

2. A escolha impensada do modelo societário também é capaz de atingir o patrimônio dos sócios na hipótese de a pessoa jurídica ser condenada a pagar indenização por má-prática médica. Na sociedade simples típica, a regra é que, em não havendo patrimônio social suficiente para suportar os encargos da condenação, os sócios responderão na proporção em que participem das perdas sociais (Código Civil, artigo 1.023). Então, para que os sócios não respondam pessoalmente por falhas profissionais do sócio colega, é sensato que a responsabilidade da sociedade uniprofissional seja limitada. Todavia, se não quiserem adotar o modelo de sociedade limitada, poderão dispor no contrato que todos responderão solidariamente pelos encargos societários, porque, assim, os ônus (dentre alguns, aqueles advindos de sentença condenatória por erro médico) seriam diluídos, minimizando, portanto, grandes perdas aos sócios majoritários.

3. Na vigência da sociedade é comum que algum sócio opte pela venda de suas quotas sociais e, na mesma vertente, os conflitos irrompem, especialmente quando não há disposição contratual estabelecendo a ambição e os interesses da sociedade. Parto para o seguinte exemplo: Se o contrato nada dispor, o sócio poderá alienar suas quotas para o sócio que desejar (Código Civil, artigo 1.057), independentemente do consentimento dos demais, o que, em tese, poderia causar transtornos entre os demais, ou até ir de encontro aos propósitos da sociedade. Entretanto, impasses assim são evitáveis. Basta que haja cláusula específica, estabelecendo o expediente de vendas de quotas mais consentâneo a todos.

4. É prudente que a sociedade engendre um planejamento trabalhista responsável. Na sociedade empresária, v.g, é vedado que os sócios médicos exerçam a atividade médica sob o manto desta condição (pois aqui não há a figura do sócio prestador de serviços), mas registra-se que o médico sócio poderá ser contratado. Desta forma, a sociedade tem que contratar mão de obra médica (sócio ou não), com vínculos que podem se materializar das seguintes formas: i) relação de trabalho; ii) contratação de profissional autônomo, iii) contratação de sociedade de prestação de serviços médicos. A princípio, esta última opção é a mais adequada e vantajosa sob a ótica financeira, mas as aplicações flutuam conforme as particularidades da situação concreta.

5. Na prática, por maiores que sejam os laços de confiança entre os sócios, não é incomum que um ou outro viole sua obrigação. Mas como coibir ou punir o sócio infrator? Daí decorre a importância da indexação de penalidades no contrato social. Não digo penalidades genéricas, mas específicas aos reclamos de cada caso concreto, mormente os atinentes à prática médica.

5. Por fim, suscito outras questões intrincadas, que demandam esclarecimentos no contrato social: i) E o sócio prestador de serviços na hipótese de quebra do vínculo social (alienação, morte, exclusão), ostenta direito sobre o patrimônio da sociedade?; ii) E a substituição do sócio administrador?; iii) Pode haver cláusula que adote a responsabilidade solidária dos sócios pelo passivo da sociedade simples?; iv) A importância dos parâmetros na apuração de haveres, atinentes ao circuito médico-hospitalar; v) Consequências jurídicas do falecimento do sócio: liquidação da respectiva participação societária ou entrada dos herdeiros ou legatário na sociedade?

Enfim, se fossemos elencar o cabedal de conflitos hábeis a surgir no andar de uma sociedade, despenderíamos um amontoado de letras que não comportariam no formato de um artigo. Assim, neste momento, esta não é a nossa intenção. O nosso desafio é tão somente o de ressaltar os sobressaltos que podem advir do experimento societário e, ao ensejo, esclarecer que inúmeras adversidades podem ser antevistas e evitadas. Para tanto, recomenda-se que o contrato social seja confeccionado com vistas a atender às singularidades do exercício da medicina e os anseios societários. É prudente que tais interesses sejam patrocinados por um advogado da área, pois as disposições contratuais devem convergir com as regras do Direito Pátrio. O planejamento lícito, sem dúvida alguma, desonera os ombros da pessoa jurídica sob os aspectos financeiro e organizacional, prevenindo, portanto, contendas de toda ordem.

[1] São aquelas que desenvolvem atividade econômica e de produção ou circulação de bens e serviços em nome da sociedade.

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