Defesa dos trabalhadores

Greve dos garis do RJ foi importante para a democracia

Autor

  • José Carlos de Carvalho Baboin

    é mestre em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo mestre em Direito Social pela Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne e pesquisador do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital da Universidade de São Paulo.

18 de março de 2014, 15h52

O acordo que pôs fim à greve dos garis no Rio de Janeiro, firmado em 08 de março de 2014 entre o Município do Rio de Janeiro e a comissão dos representantes dos trabalhadores, representa um passo importante na reafirmação e consolidação da democracia brasileira. Não seria exagero afirmar que este foi um dos mais importantes movimentos grevistas deflagrados sob a égide da Constituição Federal de 1988.

O movimento dos garis reforçou a previsão constitucional de que a greve é um direito fundamental dos trabalhadores. Nesse sentido, o sindicato deve ser instrumento em defesa da melhoria das condições de vida dos trabalhadores, e não mero aparato burocrático de pacificação social.

A greve dos garis também teve o evidente mérito de reiterar os sentidos de normas que passavam por processo de enfraquecimento e limitação de seu alcance, em decorrência de uma aplicação jurisprudencial injustificadamente restritiva das normas afetas ao exercício do direito de greve.

Assegurando a greve como um direito fundamental, a Constituição Federal, no caput do artigo 9º, define que a titularidade desse direito pertence aos próprios trabalhadores, incumbindo a eles a competência de “decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”. Este entendimento foi reiterado no artigo 1º da Lei nº 7.783/1989.

Em contrariedade a tais dispositivos legais, diversas decisões judiciais entendem que greves de trabalhadores sem a participação de sindicatos constituem “greves selvagens”. Pugnando pela atipicidade de tais movimentos grevistas, firmou-se uma corrente jurisprudencial apontando sua ilegalidade.

Como exemplo, pode-se citar a decisão proferida pela Seção de Dissídios Coletivos do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região nos autos do processo 20142200200002002[1] em 22 de maio de 2002. No caso em questão, a greve fora deflagrada por um grupo de trabalhadores sem a intervenção do sindicato da categoria. O magistrado relator entendeu que este fato implicaria na ilegalidade do movimento.

Como o sindicato suscitado insiste no argumento de que não patrocina a greve, conforme afirmado em sua defesa e esclarecido pelo seu advogado da tribuna, o movimento é flagrantemente "selvagem" (não representado).

Registre-se que os trabalhadores presentes à audiência reconheceram a existência de greve parcial, da qual não tomam parte, desconhecendo, todavia, os motivos que levaram alguns trabalhadores à deflagração da parede.

Diante do quadro acima exposto, não há como deixar de reconhecer a abusividade do movimento de greve, vez que iniciada sem observância dos requisitos fixados pela Lei de Greve.

Abusiva a greve, impõe-se o desconto dos dias de paralisação e, como decorrência natural, o término do movimento. 

Saliente-se que sequer foram convocados os trabalhadores grevistas para justificar os motivos da paralisação. Os grevistas, neste caso, foram sumariamente ignorados para o deslinde da questão.

Outro caso similar ocorreu nos autos do processo 0006300-10.1998.5.15.0000, que tramitou perante o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região[2] e que abordou uma paralisação realizada pelos trabalhadores em transportes rodoviários de Campinas e Região. Neste caso, os trabalhadores iniciaram o movimento grevista à revelia do sindicato. Contrariamente ao que ocorreu no exemplo anterior, neste o sindicato profissional aliou-se aos seus membros após o início da greve. 

A decisão proferida pelo Tribunal considerou que houve ilegalidade na deflagração do movimento grevista sem a participação do sindicato da categoria

Embora o Sindicato Profissional tente qualificar o movimento como atípico de mero "protesto" e não de greve, ele próprio se encarrega de esclarecer que o movimento eclodiu repentinamente e sem prévia deliberação. Na verdade, trata-se de greve política, como forma de pressão ao atendimento de reivindicações junto aos Poderes Legislativo e Executivo do Município, em total desrespeito a população, que ficou privada do meio de transporte coletivo servido pelos ônibus. Diante das irregularidades citadas e do não cumprimento dos requisitos legais para a deflagração do movimento, tanto no aspecto formal como no material, a greve foi declarada abusiva"

Dois são os argumentos que sustentam esta teoria jurisprudencial restritiva. O primeiro baseia-se no texto do artigo 8º, VI, da Constituição, que estabelece, in verbis:

Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:

VI — é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho; 

Escorando-se em tal texto, apontam que a ausência da deflagração da greve através do aparato sindical, e consequente ausência do sindicato nas mesas de negociação, fere preceito constitucional. Entretanto, tal interpretação não merece subsistir.

Inserto no título relativo aos Direitos e Garantias Fundamentais, o capítulo relativo aos Direitos Sociais da Constituição Federal possui seis artigos que tem como função primordial assegurar direitos aos trabalhadores, com nítido caráter protetivo caracterizador da lógica principiológica dos direitos sociais. Seu artigo 8º obedece a esta regra, garantindo aos trabalhadores a livre associação profissional ou sindical. Desta maneira, tais normas, bem como seus incisos, devem ser interpretados tendo como parâmetro os próprios trabalhadores. O inciso VI do artigo 8º, ao determinar a obrigatoriedade da participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho, não o faz como uma imposição burocrática restritiva aos direitos dos trabalhadores, mas sim como meio de garantir a máxima efetividade dos movimentos reivindicatórios face ao poder econômico, detentor de maior força negocial, eis que detentor dos meios de produção. Esta interpretação é a que melhor assegura a igualdade material nas relações coletivas de trabalho.

Interpretar o inciso VI do artigo 8º como uma limitação ao direito dos trabalhadores viola a lógica construída na Constituição Federal, além de não respeitar os princípios fundamentais do Direito Social. A obrigatoriedade de participação do sindicato é uma imposição direcionada aos empregadores, impedindo que estes evitem os sindicatos e fracionem a classe profissional como forma de se sobrepor nas negociações coletivas. Trata-se de norma protetiva dos trabalhadores, evidente que quando o sindicato não demonstra atuação condizente com os anseios de sua própria categoria é cabível aos trabalhadores assumirem diretamente as tratativas. Admitir que os trabalhadores não podem assumir a negociação quando o sindicato não estiver agindo adequadamente segundo seus interesses esvaziaria o sentido protetivo construído no texto constitucional relativo aos Direitos Sociais.

O segundo argumento apontado nas decisões que declaram a ilegalidade das chamadas “greves selvagens” baseia-se no texto do “caput” do artigo 4º da Lei 7.783/1989, que incumbe à entidade sindical convocar assembléia geral para definir as reivindicações da categoria e votar a realização da paralisação do trabalho. Seria, portanto, obrigatória a deflagração de uma greve através do aparato sindical, não podendo ocorrer à sua revelia.

Esta interpretação tampouco é a mais adequada, eis que no parágrafo 2º do próprio artigo 4º em questão prevê a criação de comissão de negociação por parte de assembleia geral autônoma, detendo esta comissão os mesmos direitos assegurados aos sindicatos no “caput do artigo”, inclusive o de decretar o movimento grevista e realizar negociações com a parte adversa.

Art. 4º Caberá à entidade sindical correspondente convocar, na forma do seu estatuto, assembléia geral que definirá as reivindicações da categoria e deliberará sobre a paralisação coletiva da prestação de serviços.

§ 1º O estatuto da entidade sindical deverá prever as formalidades de convocação e o quorum para a deliberação, tanto da deflagração quanto da cessação da greve. 

§ 2º Na falta de entidade sindical, a assembléia geral dos trabalhadores interessados deliberará para os fins previstos no "caput", constituindo comissão de negociação. 

Saliente-se que o fato do parágrafo 2º fixar que esta comissão de trabalhadores pode ser criada “na falta de entidade sindical” tampouco representa uma limitação à atuação dos trabalhadores. Esta “falta” não abrange apenas a hipótese de inexistência de sindicato constituído na base territorial em questão, mas abrange também os casos de sua atuação insuficiente ou inadequada na defesa dos interesses dos trabalhadores, marcada sobretudo por sua atuação pouco combativa. Interpretação diversa geraria um grande paradoxo, pois acarretaria em efeito diverso daquele que justifica a existência desta norma, uma vez que a imposição da intermediação sindical se sustenta sob a ótica da proteção aos trabalhadores.

Durante todo o período da greve dos garis, o Sindicato dos Empregados de Empresas em Asseio e Conservação do Município do Rio de Janeiro se portou como verdadeiro aliado dos empregadores, rejeitando sua função primordial de representar os anseios da categoria profissional.

Em uma publicação intitulada "Comunicado aos trabalhadores da COMLURB"[3], o sindicato obreiro prontamente sustentou a ilegalidade da greve, sustentando que "o Sindicato não foi o responsável pela deflagração da greve" e que esta "trama deixou de ser a favor da categoria". Aponta ainda que a diretoria do sindicato "achou por bem" assinar o acordo proposto pelo empregador.

O Acordo Coletivo de Trabalho para 2014 firmado pelo sindicato dos trabalhadores com o Município do Rio de Janeiro foi uma verdadeira simulação. As melhorias foram irrisórias e não houve qualquer tipo de defesa da categoria por parte do sindicato. Isto fica ainda mais evidente quando comparamos o acordo assinado pelo sindicato e o acordo firmado pela comissão de trabalhadores.

O acordo realizado pelo sindicato em 3 de março de 2014 previa aumento de 9% do salário base de 33,33% do vale alimentação. Já o acordo realizado pela comissão dos representantes dos trabalhadores em 8 de março de 2014 logrou um aumento de 37% do salário base e de 66,66% do vale alimentação. A diferença é inquestionável e leva à conclusão de que o sindicato não atuava adequadamente na defesa dos interesses da categoria. Desta maneira, a inclusão da Comissão dos representantes dos trabalhadores na negociação, terceiro tópico do acordo assinado em 8 de março, dá plena eficácia aos artigos 8º da Constituição Federal e 4º da Lei. 7.789/1983. Espera-se que a jurisprudência reconheça e adote a plena eficácia de tais normas, abandonando a interpretação restritiva até então vigente em nossos tribunais.

A democracia não é uma situação estática. Ela se constrói e se altera historicamente. E essa construção também passa pela efetivação das normas que asseguram os direitos sociais, eis que fundamentais conforme previsão em nossa Constituição cidadã. Interpretações que indevidamente limitem o caráter social e democrático de nosso Estado de Direito não merecem subsistir; deve-se buscar a evolução de nossos patamares civilizatórios, objetivando uma sociedade mais justa e igualitária. A greve dos garis foi uma grande vitória desta categoria de trabalhadores. Mas quem mais ganhou com essa greve foi, sem dúvida, a própria democracia brasileira.


 [1] Processo TRT/SP 20142200200002002, Acórdão Nº:SDC – 00125/2002-0, Juiz Relator Nelson Nazar.

[2] Processo TRT/15 0006300-10.1998.5.15.0000 DC, Acórdão Nº660/98-A, Juiz Relator Édison Laércio de Oliveira 

[3] Disponível em : www.asseiomrj.com.br/not-cat/comlurb/item/235-comunicado-aos-trabalhadores-da-comlurb.html, acesso em 08/03/2014.

Autores

  • é mestre em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito Social pela Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne e pesquisador do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital da Universidade de São Paulo.

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