Legado normativo

Lei dos orçamentos públicos completa 50 anos de vigência

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17 de março de 2014, 7h13

Mais revisitado hoje pelo que não conseguiu fazer — implantar as “reformas de base”, o Plano Trienal, entre outros — o o presidente João Goulart é pouco lembrado pelo que conseguiu fazer. E o melhor exemplo disto é a Lei 4.320, de 17 de março de 1964, que hoje completa 50 anos, e quase nada está se falando no assunto.

Sua origem remonta ao Projeto de Lei 201, que fora apresentado em 4 de maio de 1950 pelo Deputado Berto Conde (PTB-SP) e rapidamente aprovado na Câmara. Mas, após encaminhada ao Senado, lá a matéria aguardou por uma década até ter sua discussão retomada em 1962, já no governo João Goulart, transformando-se em lei há exatos 50 anos.

Poucos dias depois de aprovada a Lei 4.320, João Goulart foi deposto e o regime militar que se seguiu perdurou por 20 anos, até a redemocratização, permanecendo nossa aniversariante Lei vigente ao longo de todo esse período. Recepcionada como lei complementar pela Constituição de 1988, ela se mostra amplamente aplicável até os dias atuais, evidenciando a qualidade técnica de seu texto, bastante avançado para a época.

Tudo isso se soma para celebrarmos a Lei 4320 como documento da mais alta relevância para o País, pois regula, até hoje, a elaboração e execução dos orçamentos públicos. Vale lembrar, por oportuno, que a lei orçamentária é “a lei materialmente mais importante do ordenamento jurídico logo abaixo da Constituição”, nas incisivas e felizes palavras do Ministro Carlos Ayres Britto (STF, ADI-MC 4048-1/DF, j. 14.5.2008, p. 92).

Ao longo desses 50 anos de vigência, contudo, a relevância das leis orçamentárias e, por conseguinte, da Lei 4.320/1964, não é amplamente reconhecida, nem as consequências da sua (boa ou má) aplicação são suficientemente observadas pela comunidade jurídica e pela sociedade em geral.

A firme assertiva do Ministro Ayres Britto, à época do julgamento da ADI 4048, pretendeu lançar luzes sobre a opacidade existente nessa seara, em que se observa uma falta de controle de efetividade sobre a gestão dos recursos públicos.

Muito embora saibamos que ambas, Constituição e lei orçamentária, definem substantiva e pragmaticamente as prioridades político-institucionais da nação, dedicamo-nos muito pouco à transição da teoria para a prática e à materialização da norma constitucional no seio da execução orçamentária. Como controlar bem o cumprimento dos ditames constitucionais (como, por exemplo, os deveres do Estado de prover saúde pública, educação básica obrigatória e segurança pública), sem se observar o ciclo orçamentário onde tais deveres deveriam se revelar concretamente? Eis uma pergunta pertinente e necessária para o balanço de 50 anos da Lei em comento…

Soa repetitivo repisar, mas é preciso retomar que nada se faz, rigorosamente nenhuma ação governamental é empreendida, tampouco qualquer planejamento público se materializa sem que as despesas tenham sido legalmente autorizadas e sem que elas estejam respaldadas em receitas arrecadadas conforme estimativa da lei de orçamento.

O desconhecimento e a relativa falta de prestígio dos orçamentos públicos e da Lei 4.320/1964 militam em favor da permanência e até do agravamento de alguns dos nossos impasses jurídicos mais complexos. Exemplos disso são a longa espera dos credores estatais pelo pagamento de precatórios e a falta de progressividade das políticas públicas garantidoras dos direitos sociais, donde decorre a sua judicialização em demandas individuais volumosas, mas pouco capazes de corrigir a contumaz omissão governamental. A quem aproveitam os aludidos impasses e o conflito distributivo que eles encerram? Nova pergunta deixada em aberto para o balanço da nossa Lei aniversariante.

Diante desse cenário historicamente tão enviesado, não é de se estranhar que esta Lei (que, juntamente com a Lei de Responsabilidade Fiscal, complementa a Constituição no que tange ao Direito Financeiro) receba tão pouca atenção, pois o Direito Financeiro ainda é um grande esquecido e desconhecido.

Aparentemente paradoxal é o fato de que, publicada sob a égide do texto da Constituição de 1946, a Lei 4.320 sobreviveu, sem maiores alterações ou percalços, às Constituições de 1967, 1969, de 1988 (com a qual agora convive) e às dezenas de emendas que as alteraram. Como verdadeiro “Estatuto das Finanças Públicas” no Brasil, ela permanece íntegra e vigente em sua maior parte.

O pretenso paradoxo da longevidade se desfaz quando nos lembramos de que, na Administração Pública, quando algo funciona razoavelmente, simplesmente não se ouve falar a respeito, já que o silêncio acaba operando como elogio implícito e garantindo sua continuidade.

Em alguma medida, essa é a sina inercial da Lei 4.320. Atualmente sua aplicação vem sendo feita discreta e rotineiramente por meio de sistemas de informação (nos moldes do SIAFI) em todos os entes públicos e controlada pelas Cortes de Contas competentes, a despeito das dificuldades e impasses que rondam os orçamentos públicos.

Justiça seja feita: nossa quinquagenária Lei trouxe preceitos básicos que dão relativa estabilidade interpretativa ao sistema orçamentário, contábil, patrimonial e financeiro que rege a ação estatal. Tal sistema normativo, porém, só não funciona em moldes mais adequados porque as leis complementares reclamadas pela Constituição de 1988 e a sua própria atualização (à nova modelagem constitucional e à evolução conceitual da Contabilidade Pública) sofrem tensões e omissões político-econômicas.

Enquanto o Congresso Nacional e o Executivo federal se furtam a esse debate, as lacunas e demandas por uniformização federativa são mal equacionadas do ponto de vista infralegal pela Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda (STN/MF) e pela Secretaria de Orçamento Federal do Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão (SOF/MPOG). Tudo isso se sucede em detrimento até mesmo do fórum de debates entre todos os entes da Federação, previsto pela Lei de Responsabilidade Fiscal no seu art. 67 e nunca efetivamente instituído: o Conselho de Gestão Fiscal.

A difícil tramitação legislativa e a longa espera não são dados novos, já que, como já dito desde o início, também não foi trivial e simples gestar a Lei 4.320. Mas indubitável é que foi ela, como uma espécie de “Estatuto das Finanças Públicas”, que introduziu em nossa legislação o conceito de orçamento-programa, em consonância com os avanços na administração e contabilidade públicas experimentadas no período pós-guerra em todo o mundo.

Adicional e ilustrativamente, citamos como legados normativos da Lei 4.320/1964: (1) a positivação dos princípios da anualidade, universalidade, unidade, orçamento bruto, exclusividade, discriminação, unidade de tesouraria e evidenciação contábil, dentre outros; (2) a classificação econômica das receitas e despesas (subdivididas entre correntes e de capital); (3) a delegação à unidade orçamentária e, dentro dessa, ao agente público que detenha competência de “ordenador de despesa” da autonomia e da responsabilidade decisória pela realização da despesa, sem prejuízo do dever de equilíbrio com o fluxo de ingresso da receita; (4) balizas para transferências de recursos à iniciativa privada, com ou sem fins lucrativos, na forma de subvenções e auxílios; (5) formulação da lógica essencial de que programas pressupõem correlação finalística entre dotação de valores para atingir metas quantitativamente mensuradas em unidades de serviços e obras a serem alcançadas; (6) adoção explícita do regime de caixa para a receita e regime de competência para a despesa pública, em hibridismo típico da Contabilidade Pública; (7) definição das etapas de execução da despesa, que foi tripartida em empenho, liquidação e pagamento; (8) definição do conceito de restos a pagar; (9) fixação do regime jurídico dos créditos adicionais (suplementares, especiais e extraordinários), em aderência ao princípio da legalidade e sua coexistência com a necessária flexibilidade orçamentária; (10) conceituação e balizas nucleares sobre o funcionamento dos fundos especiais; (11) competências e interfaces dos controles interno e externo e (12) previsão de balanços obrigatórios, dentre outros comandos de relevo.

Mas o mundo muda, as instituições se modernizam, e a legislação deve acompanhar esse avanço.

A Constituição de 1988, entre inúmeros avanços, aperfeiçoou o sistema de planejamento governamental, institucionalizando, no âmbito orçamentário, além do orçamento, duas outras leis que se coordenam para essa finalidade: o plano plurianual e a lei de diretrizes orçamentárias, substituindo o antigo “Quadro de recursos e de Aplicação de Capital” que a lei regulava[1]. A Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000, destacou-se por dar ênfase às normas voltadas à gestão fiscal responsável, especialmente no que tange à fixação de metas garantidoras de equilíbrio entre receitas e despesas, o controle da renúncia de receitas, as limitações da despesa pública e da dívida pública (inclusive por meio de porcentuais máximos e sanções caso ultrapassados) e a transparência.

A Administração Pública avança em direção a aperfeiçoar-se, e atualmente isto se concentra na busca de maiores eficiência e efetividade, o que, obviamente, passa pela qualidade do gasto público e pelos resultados da ação governamental.

Enfim, são muitas as inovações, e que precisam ser contempladas.

A Constituição de 1988, em seu artigo 165, § 9º, prevê lei complementar para “dispor sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a organização do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual”, e “estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta, bem como condições para a instituição e funcionamento de fundos”. Esta lei ainda não chegou a ser editada, e a Lei 4320 vem cumprindo esse papel há mais de 20 anos.

Evidentemente há lacunas, como a inexistência de normas específicas para o plano plurianual e a lei de diretrizes orçamentárias, dentre tantas outras. Como já dito, a STN e a SOF substituem o legislador complementar, assim como as próprias diretrizes orçamentárias têm assumido pretensões normativas de balizamento universal precário e instável, porquanto ad hoc e contingente, do ciclo orçamentário federal.

Projetos em tramitação no Congresso Nacional já há muito são discutidos com vistas a substituí-la, aperfeiçoando seu texto à luz da nova Constituição, da Lei de Responsabilidade Fiscal e das mais recentes técnicas de planejamento, gestão, orçamentação e contabilização das contas públicas. Projetos que criam a “Lei de Qualidade Fiscal” e “Lei de Responsabilidade Orçamentária”[2] pretendem trazer nova regulamentação aos orçamentos públicos, modernizando-os, de modo a suprir as lacunas existentes e introduzindo as modificações que se fazem necessárias para os novos tempos, como já houve a oportunidade de fazer referência em coluna publicada no dia 12 de março de 2013[3].

Os desafios abertos para a sociedade não são falhas específicas da Lei 4.320, mas originam-se, isso sim, das tensas e controvertidas relações entre Legislativo e Executivo, nos três níveis da Federação e até mesmo entre os níveis central e subnacionais. É preciso pensar e repensar a inserção e a execução de emendas parlamentares, assim como a natureza mais ou menos impositiva ou autorizativa das leis orçamentárias.

O frágil equilíbrio entre os Poderes representativos e a dificuldade de o Judiciário saber como intervir (em casos de ação ou omissão lesivas ao ordenamento) são os pontos que merecem reflexão crítica e amadurecimento em matéria orçamentária. Quiçá esse nó górdio seja a terceira das perguntas deixadas em aberto como desafio democrático e republicano de bem distribuir e aplicar os recursos públicos.

A despeito de tudo isso, a Lei 4320 foi, e ainda é, de extrema relevância para a Administração Pública. Cumpre um papel fundamental para o desenvolvimento social e econômico do país. Aos 50 anos de idade, chega a hora de entrar para a história com todos os elogios e homenagens.

Haverá debates sobre o aniversário da Lei nesta terça-feira (18/3) no Instituto Brasiliense de Direito Público e no dia 7 de abril na Faculdade de Direito da USP.


[1] Sobre esse ponto, vide CONTI, José Mauricio (coord.), Orçamentos públicos: a lei 4320/1964 comentada, 2ª ed., Revista dos Tribunais, 2010, p. 100-102.

[2] Vide TOLLINI, Hélio e AFONSO, José Roberto, A Lei 4320 e a responsabilidade orçamentária, in CONTI, José Mauricio e SCAFF, Fernando F., Orçamentos públicos e Direito Financeiro, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2011, p. 491-511.

[3] CONTI, José Mauricio. Responsabilidade orçamentária precisa de melhorias.

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    Juiz de Direito em São Paulo Professor Assistente da Faculdade de Direito da USP

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    É procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, Pós-Doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela UFMG.

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