Fenômenos distintos

Atos violentos vistos no Brasil não são terrorismo

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17 de março de 2014, 7h15

No ano da Copa e das eleições presidenciais, a exuberância da violência coletiva que irrompe ou irromperá no Brasil pode ser agrupada em quatro fenômenos bem distintos. Separá-los é essencial para entendê-los lidar com eles.

A violência relacionada ao esporte ou hooliganismo mostrou-se em episódios recentes no Brasil, notadamente nas cenas protagonizadas por torcedores do Atlético Paranaense e Vasco da Gama, em Joinville, cujas imagens ganharam o mundo. Na Europa, as federações e as autoridades uniram-se para adotar medidas preventivas e coercitivas onde necessário. No Brasil, ainda existe alguma condescendência dos clubes em relação a suas torcidas, aliada a uma glorificação de seus atos. O cenário propício a sua proliferação se completa com a atuação deficiente das autoridades e a interpretação permissiva da legislação aplicável.

Os atos deflagrados por facções criminosas constituem um fenômeno típico de estados fracos, incapazes de afirmar sua supremacia em certos espaços territoriais, até mesmo em presídios. Com risco de alguma simplificação, sua gênese no Brasil remonta à interação entre presos políticos do regime militar e criminosos comuns, estes últimos assimilando, da pregação ideológica dos primeiros, apenas os métodos de atuação, que passaram a empregar para fins de lucro. Com denominações como “Comando Vermelho” e “Primeiro Comando da Capital”, surgiram nominalmente invocando a bandeira da melhoria das condições carcerárias, mas logo se converteram em complexas organizações criminosas. No Rio de Janeiro e em São Paulo, por mais de uma vez, colocaram o estado de Direito de joelhos, decretando toques de recolher, promovendo arrastões, ataques sistemáticos a instalações policiais e de transporte público. Sua atividade econômica gira em torno do comércio ilícito de drogas e armas e da gestão do jogo ilegal. Nos espaços territoriais que controlam, cobram “proteção” da população e prestam alguns serviços públicos rudimentares. O estado só penetra nesses territórios mediante algum tipo de negociação ou autorização, velada ou ostensiva, dos líderes da facção dominante. As festejadas UPPs nada mais são do que uma tentativa de retomada militar dos espaços ocupados por essas facções para o restabelecimento da ordem jurídica.

Durante a Copa do Mundo, os grandes comícios eleitorais deste ano e as Olimpíadas de 2016, o pior a se esperar dessas facções é que, aproveitando-se de grandes aglomerações, deflagrem atos de sabotagem e vandalismo, assaltos a bancos, sequestros de celebridades e turistas, e imponham restrições à liberdade de locomoção, com o fim de demonstrar força e desmoralizar o estado de Direito.

Os atos de depredação e vandalismo no rastro de demonstrações públicas pacíficas, terceiro fenômeno de emergência a ser destacado, surgiram por primeira vez no rastilho dos protestos multitudinários de junho de 2013. Sobre ele, sabemos muito pouco ainda, talvez apenas o suficiente para perceber que ele é avesso a rotulações maniqueístas ou explicações simplistas. A perplexidade a seu respeito tem produzido uma certa sublimação da violência por personalidades do mundo artístico e político, estimulada por decisões judiciais garantindo um suposto “direito a protestar com máscara”. No outro extremo, setores conservadores ou alarmistas da sociedade reclamam a criminalização desses atos como nada menos que atividade terrorista! No mesmo contexto, aflorou violência nos chamados rolezinhos de adolescentes em shopping centers, logo politizados à direita e à esquerda. Existe no ar uma palpável propensão a irrupções de violência, potencializada por uma difusa indignação com o mau funcionamento do estado e dos serviços públicos, a corrupção e a crescente dissintonia da representação política com a população. Os crimes bárbaros noticiados diariamente, assim como vários atos coletivos e espontâneos de justiçamento, que apontam para uma reprivatização da vingança pública, parecem advertir, ainda que desordenadamente, que a paciência do brasileiro cordial tem limites.

Por fim, temos o terrorismo internacional, praticamente desconhecido no Brasil, mas plausível de acontecer nos próximos anos, devido à visibilidade que atentados dessa índole adquirem durante grandes eventos esportivos.

O termo terrorismo tem tanto de carga emocional e ideológica quanto de vazio conceitual. Aliás, nenhuma definição obteve aprovação inconteste nos foros internacionais. Em linhas gerais, consiste na agressão a pessoas ou grupos não combatentes, perpetrada de forma clandestina ou subreptícia, com o objetivo de influenciar o público e os governantes para uma causa política através da difusão do medo. Portanto, seus traços marcantes são a motivação política e a difusão do medo ou terror. Não é uma ideologia nem uma categoria delituosa, e sim um método de atuação premeditado, permeado de motivação política, portador de violência ou sua ameaça contra vítimas inocentes. As vítimas imediatas não são seu alvo e sim instrumento para influenciar as instâncias dirigentes da comunidade afetada.

Cumpre também distinguir o terrorismo da guerra e da guerrilha. Estas últimas são modalidades de luta armada contra alvos político-militares, enquanto os alvos do terrorismo têm caráter político-psicológico. Evidentemente, pode ocorrer, e ocorre com frequência, o emprego de métodos terroristas em guerras ou guerrilhas, mas isto não deve confundir as situações. A luta armada tem uma base territorial e luta por território, ao passo que o terrorismo tem uma dimensão geográfica difusa. As partes beligerantes são visíveis e aspiram ao poder do inimigo; já a organização terrorista atua na clandestinidade.

Talvez a melhor análise antropológica e histórica do terrorismo foi produzida por Mahmood Mamdani no livro Good Muslim, Bad Muslim: America, the Cold War and the Roots of Terror, de 2004, que também mostrou a relação visceral entre o terrorismo internacional e o crime organizado, que o financia, notadamente o tráfico de drogas. Segundo o renomado professor da Universidade de Columbia, no final da Guerra Fria, os americanos, traumatizados com a derrota no Vietnã, deixaram de intervir militarmente em outros países, passando a praticar guerras “por procuração”, ou seja, treinavam e armavam grupos rebeldes ou inimigos históricos, para que estes derrubassem regimes hostis aos interesses americanos em qualquer lugar. A pressão da opinião pública democrática americana determinou que o Congresso dos Estados Unidos proibisse a CIA de usar dinheiro público para promover a derrubada de governos adversos. Diante disso, a inteligência dos EUA passou a estimular o tráfico internacional de drogas, cujos lucros impulsionaram o comércio de armas e financiaram golpes de estado e insurgências. Com o fim da Guerra Fria, surge um contingente de jovens pobres, desempregados, sem qualquer perspectiva de uma vida digna, mas bem treinados na luta, no manuseio de armas e explosivos. Esse cenário, completado por um discurso messiânico de autocomiseração e ódio ao Ocidente, formou o caldo que resultou nas formas de terrorismo do Século XXI. Assim foi com Osama bin Laden e seu grupo, treinados e equipados pela CIA para lutar contra o regime pró soviético do Afeganistão; com os Contras na Nicarágua; com a Unita em Angola, e outros.

Não sendo guerra nem guerrilha, o terrorismo só pode ser categorizado como crime, um crime internacional politicamente motivado, e seus autores devem ser julgados segundo as leis penais e processuais aplicáveis. Quem considera o terrorismo como uma espécie de conflito armado (“guerra ao terror”), deve respeitar as normas do Direito Humanitário, inclusive as atinentes ao tratamento dos prisioneiros de guerra. A maior crítica ao campo de concentração de Guantánamo é que os Estados Unidos negaram às pessoas lá confinadas tanto as garantias do devido processo legal quanto aquelas universalmente reconhecidas aos prisioneiros de guerra, deixando-as num limbo jurídico, despojadas de qualquer direito. Aliás, até mesmo razões pragmáticas recomendam o tratamento do terrorismo como um tipo (grave) de criminalidade. O magistrado inglês Lord Bingham, em seu opúsculo de 2010, intitulado The Rule of Law, fadado a se converter numa obra clássica do Direito e da Política, mostrou que, por trás da retórica belicista comum aos EUA e ao Reino Unido em relação ao terrorismo, uma sutil diferença fez com que este último país colhesse mais êxitos na apuração e punição dos atentados: “o governo britânico, em geral, tratou o terrorismo como uma situação de emergência civil, não como uma guerra, e tratou os terroristas (…) como criminosos e não como combatentes”.

Devido à intensa carga ideológica e emocional que permeia o tema, é comum o argumento de que terrorismo são as agressões “dos outros”, enquanto as “nossas” são contraterrorismo ou lutas de libertação. No entanto, se considerarmos que o terrorismo é um método de atuação que ataca inocentes como meios para atingir fins estratégicos mediante a difusão do medo, não existe “terrorismo bom”. Segundo a noção aqui delineada, não é terrorismo a Intifada palestina, a luta indiana pela independência, o movimento dos direitos civis nos EUA, embora esses conflitos possam eventualmente ter empregado métodos terroristas. Tampouco é terrorismo, embora censurável, o assassinato de J.F.Kennedy, os massacres em escolas estadunidenses, o assassinato de oficiais espanhóis pelo ETA, a operação militar dos EUA no Afeganistão. No entanto, é inequivocamente terrorismo o castigo coletivo infligido por forças israelenses aos palestinos, os bombardeios a Dresden e a bomba sobre Hiroshima na II Guerra Mundial, o assassinato de banqueiros pela RAF – Rote Armee Fraktion, Alemanha (a menos que se considere os banqueiros como agentes do sistema capitalista-imperialista, hipótese em que seriam vistos como alvos militares de quem combate esse sistema), o treinamento americano aos Contras com o objetivo de aterrorizar a população da Nicarágua, os ataques de 11 de setembro, o atentado ocorrido na maratona de Boston no início de 2013. Tais exemplos aleatórios mostram que o terrorismo geralmente é praticado por grupos, isto é, organizações criminosas, mas também se manifesta como “terrorismo de estado” e até mesmo como atos de “lobos solitários”.

No Brasil, quase nada do que em ocasiões foi rotulado de terrorismo tem suas características: nem a atuação das facções criminosas a partir do interior dos presídios (que visam puramente ao lucro), nem as explosões despropositadas de violência patrocinadas por Black-blocks, Anonimous e outros rebeldes sem causa, nem os protestos promovidos por movimentos sociais, ainda que violentos. Todos esses grupos podem praticar crimes, inclusive alguns muito graves, como o dano a um monumento histórico ou cultural, a agressão injustificada a um policial ou ao cinegrafista Santiago. Mas rotulá-los de terrorismo, embora muito a gosto de uma retórica criminalizante e repressiva, é um exagero que mais banaliza o termo, gera mais pânico e produz ganhos político-eleitorais do que soluciona problemas.

O Estado brasileiro tem dado mostras de estar despreparado para lidar com qualquer dos quatro fenômenos aqui analisados. As dificuldades políticas para legislar racionalmente a respeito deles são notórias. Assim como há ímpetos de “criminalização dos movimentos sociais”, pretendendo rotular todas as manifestações como terrorismo ou crime contra a segurança nacional, no outro extremo há os que pretendem glorificar, justificar (e não apenas “explicar”) a violência em demonstrações públicas. Até mesmo medidas legislativas inofensivas para as liberdades públicas, mas eficazes para a redução da violência, como a proibição do uso de máscaras e a revista policial de manifestantes, encontram resistência em respeitáveis lideranças políticas e sociais, que romantizam a violência que se aproveita dos protestos pacíficos das ruas, contribuindo para encobrir seu caráter autoritário, para não dizer fascista em muitos casos. Por outro lado, será realmente preciso mudar a legislação brasileira, ou o problema está em sua interpretação, extremamente condescendente e politizada, caracterizada por um “coitadismo penal” e um “cafuné processual penal”?

O Ministério Público Federal tem discutido internamente essas questões e procurado contribuir com o debate político-legislativo e com a sociedade civil. Essa contribuição se faz tanto institucionalmente quanto através da entidade associativa dos Procuradores da República, a ANPR, mediante a participação em comissões e colegiados, a exemplo da ENCCLA (Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro), dos projetos de Código de Processo Penal e Código Penal em tramitação nas duas Casas do Congresso Nacional, e dos projetos de lei sobre terrorismo e crimes contra a segurança do estado democrático de Direito.

Prosseguindo nesse esforço de reflexão, ao ensejo dos grandes eventos esportivos que terão lugar no Brasil, a Procuradoria-Geral da República, através de sua Assessoria de Cooperação Jurídica Internacional e da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão (que cuida de matéria criminal), com o apoio da ANPR e da Escola Superior do Ministério Público da União, realizará em Brasília, no mês de abril, um seminário internacional inédito. Durante três dias, Procuradores da República das 12 cidades-sedes da Copa, atuantes em matéria criminal e na defesa dos Direitos Humanos, se reunirão com renomados especialistas nacionais e estrangeiros para discutir formas de prevenção, investigação e persecução penal desses crimes. O enfoque do treinamento será o de garantir, e não de proibir, o pleno exercício de vários direitos fundamentais, como o de reunião e livre manifestação do pensamento, aí incluído o protesto contra os governantes. Os Procuradores da República participantes desse evento serão apresentados a experiências e métodos bem sucedidos, que não precisaram romper com os parâmetros do Estado democrático de Direito. Estarão presentes, dentre outros especialistas, os membros do Ministério Público argentino e espanhol, que conduziram, respectivamente, as apurações sobre os atentados à Associação Mutual Israelita, em Buenos Aires, e à estação de metrô Atocha, em Madri; o chefe de polícia de Vancouver, que conseguiu investigar e chegar aos instigadores de violentos atos de vandalismo que se seguiram aos Jogos Olímpicos de Inverno, em 2010, usando quase exclusivamente fontes abertas e redes sociais; promotores de Justiça e policiais brasileiros que mapearam o funcionamento de facções criminosas que operam a partir dos presídios; autoridades do Poder Executivo que têm a missão de assegurar um ambiente de segurança e paz durante os grandes eventos.

Não existe solução mágica para os complexos fenômenos aqui comentados. Mas o Estado e a sociedade não podem ficar parados, acreditando que “Deus é brasileiro”, e se sujeitarem a perdas desnecessárias e ao vexame internacional de despreparo, caso alguma situação de emergência aconteça.

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