Prazos distintos

Apesar de acórdão do STJ, resseguro não é seguro

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16 de março de 2014, 16h26

 A afirmação que serve de título a este artigo pode surpreender, à primeira vista, dada a semelhança entre as palavras “seguro” e “resseguro”. Mas essa semelhança tem uma explicação, cuja compreensão ajuda a eliminar eventuais perplexidades. Ainda na Idade Média, quando a garantia dos riscos inerentes à aventura marítima se iniciava, uma determinada prática comercial começou a ser chamada de resseguro. Tratava-se, na verdade, em termos modernos, de um segundo seguro, ou de um seguro subsidiário,[1] por meio do qual o chamado ressegurador assumia parte das responsabilidades originalmente assumidas pelo segurador arrependido da garantia prestada. A prática ressecuritária, no entanto, evoluiu e se modificou com o tempo, ganhando contornos distintos e próprios, embora se tenha conservado sua denominação de origem.

Mas as palavras têm algo de demiúrgico. Especialmente quando se distanciam do seu significado original, não raras vezes induzem a confusões, surpreendendo quem não acompanhou mais atentamente as mudanças operadas ao longo da história. A palavra “resseguro”, apesar da compreensão já sedimentada na literatura internacional a respeito da natureza, sentido e alcance deste negócio, entre nós continua a causar equívoco e a provocar embaraços, que muitas vezes se refletem em decisões judiciais, a exemplo do que parece ter ocorrido, com todo o respeito, nas razões de decidir do acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça nos autos do Recurso Especial n. 1.170.057/MG.

Nesse decisório, os ministros julgadores, após considerável debate, concluíram que a prescrição da pretensão do segurador em face do ressegurador tem prazo de um ano, a exemplo da pretensão do segurado em face do segurador. Essa conclusão fundou-se, precipuamente, no entendimento da corte de que “o resseguro se insere no tipo securitário”, ou seja, o contrato de resseguro seria uma espécie de contrato de seguro, de maneira que “a ele se aplicam (…) as regras gerais previstas para os contratos de seguro”. O acórdão, em resumo, deixa entrever a equiparação entre os tipos contratuais seguro e resseguro, a partir da qual se inferiu o entendimento de que a regra do art. 178, § 6°, II, do Código Civil de 1916 (correspondente ao art. 206, §1°, I, do Código Civil de 2002), que estabelece o prazo ordinário de um ano para o exercício da pretensão do segurado em face do segurador, e vice-versa, também se haveria de aplicar em relação ao exercício da pretensão do segurador (cedente ou ressegurado) em face do ressegurador.

O resseguro é tema muito pouco discutido no Brasil, em particular na literatura jurídica, predominando um exame meramente superficial acerca da sua natureza ou da tipologia desta já longeva fattispecie. O prefixo “re”, na palavra “resseguro”, induziu e pelo jeito continua induzindo muita gente a supor que essa operação não teria sofrido transformação alguma ao longo dos séculos, desde o seu surgimento na Idade Média. Isso tudo, a despeito do posterior desenvolvimento da estatística, da aplicação da Lei dos Grandes Números (demonstrada por Jakob Bernoulli em 1713) ao fenômeno securitário e do desenvolvimento, a partir do seguro e da ideia de gestão profissional da mutualidade, do conceito moderno de empresa, sem falar na intervenção estatal no setor, bastante incisiva também nos países baluartes da livre iniciativa.

Na corrente literatura jurídica internacional, todavia, já se fez consenso sobre o fato de que o resseguro é um tipo contratual autônomo, que não se identifica com o tipo contratual securitário, dele apenas se aproximando.[2] O resseguro não se assenta na mutualidade – e por meio do contrato de resseguro não se cobre o mesmo risco, ou área de risco, que cobre o segurador, por meio do contrato de seguro. Por meio do resseguro presta-se uma garantia para a seguradora. O risco coberto é um risco próprio da seguradora, que ela mesma corre, como empresa.[3] Não se cobre o risco que pesa sobre o interesse de seu segurado, mas o risco dela, empresa de seguro, ver-se sujeita um desnivelamento patrimonial indesejado.[4]

Caso se prefira um argumento pragmático, não dogmático, para se extrair essa percepção, basta mero passar d’olhos no capítulo XV do Código Civil vigente para que se verifique que a disciplina legal aqui veiculada para o contrato de seguro não casa com o tipo ressecuritário. Ou seja, boa parte das normas gerais cogentes que aí se encontram a respeito do contrato de seguro (a exemplo da disciplina do prêmio de seguro) é incompatível com o contrato de resseguro, sequer se podendo cogitar de aplicá-la no tocante a discussões sobre o pagamento do preço no contrato de resseguro. O resseguro, enfim, não pode ser remetido ao genus securitário.

O resseguro, por outro lado, embora contrato socialmente típico e largamente praticado, é um contrato legalmente atípico.[5] Não se encontra disciplinado em todos os seus contornos na maior parte das legislações nacionais. No Brasil, são poucas as regras que aludem ao resseguro e as poucas existentes são regras voltadas sobretudo à disciplina da empresa ressecuritária, não propriamente ao negócio jurídico resseguro. O mais longe que se pode ir, nessa matéria, é dizer que há certa analogia entre o tipo contratual securitário e o tipo contratual ressecuritário, de maneira que, não havendo disciplina legal sobre o contrato de resseguro, ou não bastando a disciplina legal sobre os negócios jurídicos e sobre o contrato em geral, algumas normas que disciplinam o contrato de seguro podem, mas tão somente à medida da analogia entre os dois tipos contratuais, incidir sobre o contrato de resseguro. Assim, por exemplo, a disciplina específica da boa-fé, atinente ao contrato de seguro, encontra aplicação no campo do contrato de resseguro.

De conformidade com a teoria tradicional em matéria de prescrição, as normas que a regulam interpretam-se estritamente, não se admitindo o expediente analógico[6]. Se assim é, e considerando que a fattispecie resseguro não se identifica à fattispecie seguro, a conclusão a extrair seria a de que a disciplina sobre a prescrição das pretensões relacionadas ao seguro não alcançaria as pretensões relacionadas ao resseguro. Logo, seguindo-se esta lógica, e como o direito vigente não traz nenhuma norma específica a este respeito, às pretensões relacionadas ao resseguro se haveria de aplicar o prazo prescricional comum de dez anos. Portanto, ao identificar o tipo securitário ao tipo ressecuritário, o Superior Tribunal de Justiça, no referido acórdão, mantida a vênia, incorreu num autêntico sofisma, pois é falsa a premissa de que resseguro é seguro. 

Prazo extenso
Talvez desde sempre parecesse um despropósito admitir um prazo prescricional tão extenso, como o prazo prescricional comum ou ordinário de dez anos, relativamente às pretensões do segurador em face do ressegurador, e vice-versa. Mas por outra ordem de razões – ousamos ponderar – a estas pretensões nos parece aplicável sim o prazo anual previsto no art. 205, § 1°, III, do Código Civil. Pois, sem embargo do reconhecimento de que as normas em matéria de prescrição, tal como dispostas neste diploma, devem ser interpretadas estritamente, isso não significa que devem ser consideradas isoladamente, em prejuízo do reconhecimento da unidade e do caráter sistêmico do ordenamento jurídico.

Em verdade, o Superior Tribunal de Justiça, no início da motivação do apontado decisório, chega a resvalar num argumento que, modestamente, nos parece mais apto a conduzir à mesma conclusão, sem que se tenha de passar pela suposta identificação entre os tipos contratuais seguro e resseguro. O que é de rematada importância, porque esta equivocada identificação dá margem à invocação da equiparação entre seguro e resseguro para outros fins – potencialmente desastrosos para a saúde do mercado e contrária aos interesses dos segurados e consumidores de seguro, a quem deveria se voltar a proteção estatal (Decreto-Lei 73/66, art. 2°), inclusive por meio do Poder Judiciário.

Como já alertou um jusfilósofo italiano, no direito a ação entra num jogo de pesos e contrapesos em nome de uma simetria que é “o primeiro (e para o direito o único) depositário da alteridade”[7]. Vale dizer, a insistência na referida equiparação não tardará em conduzir juízes e outros operadores do direito a incorrer no equívoco de reconhecer uma suposta solidariedade entre segurador e ressegurador, ou no equívoco de reconhecer um suposto direito regressivo do segurador em face do ressegurador, que inclusive autorizaria a denunciação deste da lide entre segurador e segurado.[8] Ou então a endossar absurdos encontráveis na regulamentação administrativa, a exemplo da Resolução CNSP 225/2010, segundo a qual a regulação de sinistros de seguro (uma prestação inerente ao contrato de seguro, e não ao de resseguro, devida unicamente pelo segurador) pode ser entregue ao ressegurador ou aos resseguradores deste, muito embora a Lei Complementar 126/2007 (art. 5°), em conjunto com o Decreto-lei 73/66 (art. 73), proíbam resseguradores a operarem como seguradores e, por extensão, a atuarem como se seguradores fossem.

Vale, portanto, reiterar que os contratos de seguro e de resseguro são contratos autônomos e independentes entre si[9], mesmo que o segurador tenha subscrito resseguro cota-parte por conta dos potenciais efeitos sobre seu patrimônio da celebração de um contrato de seguro de grandes riscos (Lei Complementar 126, art. 14). A responsabilidade do segurador perante seu segurado será, também neste caso, tão somente sua, ao passo que seu ressegurador responderá unicamente perante ele, como segurador-ressegurado. A dívida do segurador para com seu segurado é uma; a do ressegurador para com o segurador deste é outra. Não necessariamente um sinistro de seguro levará, ainda que indiretamente, à responsabilização do ressegurador frente ao segurador; além disso, o ressegurador muitas vezes poderá ter de prestar a chamada recuperação ressecuritária ao segurador sem que este se veja sujeito a efetuar um desembolso para o pagamento de um determinado sinistro de seguro – tal como acontece, de modo geral, quando o segurador tenha contratado, relativamente à exploração de uma sua determinada carteira de negócios, resseguro apenas nas modalidades não proporcionais.

Independentemente disso tudo, é preciso ter em conta que a previsão normativa que estabelece um prazo exíguo, normalmente de um ano, relativamente às pretensões de seguro funda-se, antes de tudo, não em razões de ordem contratual, de cunho obrigacional, limitada aos interesses das partes contratantes. Essa previsão advém, antes, de exigências de ordem pública que vão muito além da vocação do instituto a servir à pacificação social, à redução da litigiosidade etc. De modo geral, seja no direito anterior, seja no atual, o legislador civil, ao estabelecer para as questões relacionadas a seguro prazos prescricionais exíguos, frente ao prazo aplicável às pretensões em geral em matéria contratual ou de direito pessoal, apoiou-se ao que tudo indica no conceito publicístico de operação de seguro, conceito este que, a teor do disposto no art. 4° do Decreto-lei 73/66, engloba não apenas a totalidade das operações de seguro, mas também as operações de cosseguro e de resseguro.

A ratio legis da drástica redução do prazo prescricional de dez para um ano, no que tange a todas essas operações, é a mesma em todos esses casos: limitar a exposição de todos os diferentes tipos de empresas que atuam no mercado de seguros privados (seguradoras atuando isoladamente ou como cosseguradoras, e resseguradoras), como integrantes de um único sistema a que se reconhece fundamental importância econômica e social. O Sistema Nacional de Seguros Privados é estruturado de maneira que todos os operadores, sob supervisão e controle estatal, cumpram objetivos definidos: estimular o desenvolvimento da indústria securitária, sem todavia colocar em risco a massa de consumidores de seguros (DL 73/66, art. 5°). Se, por um lado, em razão dessa espécie de munus público, há a exigência de que essas empresas integralizem capitais sociais mínimos para operarem, e constituam provisões e reservas garantidoras das operações que realizarem, por outro lado não se pode confiná-las a comprometerem seu capital social em demasia, ou a constituírem provisões exageradas e por períodos de tempo muito longo, pois isso significaria reduzir desnecessariamente a liquidez do sistema, suprimindo do setor recursos importantes para que se possa oferecer a contento garantia para as inúmeras atividades humanas abarcadas pela operação de seguro, indissociável do imperativo do desenvolvimento (CF, arts. 3°, II e III, e art. 219).[10] 

Atividades complementares
Portanto, pode-se dizer que o Código Civil atual, ao se referir ao seguro no art. 205, § 1°, III, fixando um prazo geralmente ânuo para o exercício das pretensões de seguro, está se referindo, antes e acima de tudo, à operação de seguro – e, deste modo, a teor do já citado art. 4° do Decreto-lei 73/66, aos negócios de seguro, cosseguro, resseguro e retrocessão (que corresponde ao resseguro subscrito pelos resseguradores para que eles próprios se protejam dos riscos próprios de sua atividade de ressegurador). Seguro e resseguro, enfim, são atividades que, embora diversas, se complementam, permitindo o funcionamento de todo um sistema de proteção social. Embora constituam tipos contratuais diversos e independentes, se alinham no sentido de conferir solvabilidade e de tornar possível a boa prática securitária.[11] Concorrem para que o seguro sirva como instrumento para a rápida reposição das economias individuais e das forças de produção invariavelmente sujeitas a acidentes – esta constante social contemporânea.

Esta conclusão, a que modestamente nos alinhamos, mas por outra ordem de razões, quanto ao prazo prescricional ânuo para as pretensões do segurador em face do ressegurador, e vice-versa, não deve ser encarada, todavia, sem que se considere adequadamente o termo inicial da contagem desse prazo prescricional. Não se olvide, pois, que o direito brasileiro vigente acolheu, no art. 189 do Código Civil, a chamada teoria da actio nata, segundo a qual a pretensão exercitável em juízo só nasce quando violado o direito. Assim, por exemplo, a pretensão do segurador em face do ressegurador, para o ajuizamento da ação de cobrança do valor do resseguro que tiver reclamado, irá se caracterizar apenas a partir do momento em que tiver ciência da negativa deste em lhe prestar a chamada “recuperação ressecuritária”, para empregar de outra expressão equívoca, mas recorrentemente empregada no mercado. Somente da ciência dessa recusa, em síntese, é que começa a fluir o prazo ânuo em questão.

Mas o que parece mais importante fixar, nesta talvez inoportuna intervenção, é que a disciplina legal do contrato de seguro não disciplina também o contrato de resseguro. As regras gerais atinentes ao contrato de seguro, em outros termos, não se aplicam ao resseguro, assim tão pura e simplesmente, como se fossem o que não são: regras gerais atinentes a um mesmo tipo contratual. Entender de outra forma é se deixar levar pelo poder demiúrgico da palavra “resseguro”, senão pela percepção incompleta acerca da estrutura e da função do contrato de resseguro. É necessário considerar o negócio de resseguro em toda a sua riqueza.

Uma análise superficial, limitada a um diminuto aspecto do fenômeno, dificulta a compreensão de sua essência. Resseguros proporcionais e não proporcionais estão integrados num só tipo contratual, do ponto de vista de seus requisitos e de sua função econômico-social. Sem ter assento na mutualidade, o resseguro, todavia, em todas as suas diferentes formas operacionais e modalidades técnicas, tem como função propiciar, da maneira mais ampla e articulada possível, uma proteção patrimonial contra os riscos que pendem sobre uma empresa que exerce uma atividade singular – a empresa de seguros. Resseguro não é seguro. 


[1] Cf. Manuel Broseta Pont. “Presupuestos técnicos y concepto del contrato de reaseguro” in Revista de Derecho de Seguros. La Plata: ELJ, 1973, ano 3, n. 8, p. 165.

[2] Para uma recensão da doutrina, cf. nosso Contrato de Resseguro. São Paulo: EMTS. 2002.

[3] Esclarece, por exemplo, Christoph Pfeiffer. Introduction to Reinsurance. Colonia: Gabler, 1994, p. 9, que por meio do resseguro o segurador “fica em condições de imprimir o equilíbrio necessário em seus negócios, o qual é constantemente ameaçado de três diferentes modos”. Esses três diferentes modos que ameaçam seu equilíbrio econômico são sintetizados como correspondendo ao risco de perdas possíveis (que envolve o risco de flutuações aleatórias e o risco de catástrofe), ao risco de mudança e ao risco de erro.

[4] Marco Prosperetti e Ennio Antonio Apicella. La Riassicurazione. Milão: Giuffrè, 1994, p. 142.

[5] Cf. nosso Contrato de Resseguro, cit., esp. p. 68 e ss. e p. 260 e ss.

[6] Entre outros, v. Carlos Maximiliano. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio: Forense, 1979, p. 234.

[7] Francesco D’Agostino. Filosofia del Diritto. Torino: G. Giappicheli, 1996, p. 11.

[8] Algumas decisões isoladas, que felizmente não fizeram escola, firmaram-se com base neste entendimento, a exemplo do acórdão do STJ proferido nos autos do Recurso Especial n° 125573-PR, de que foi relator o Ministro Barros Monteiro. Não se pode falar em direito regressivo do segurador condenado a indenizar um segurado em face do seu ressegurador, pois, em resumo, como se irá retomar adiante neste artigo, este responde por outra dívida, de outra natureza e fundada em outro negócio, largamente distinta da dívida do segurador para com seu segurado.

[9] Além de esta circunstância decorrer do direito positivo vigente, nesse sentido já se posicionava, com clareza, a doutrina brasileira, desde pelo menos Vera Helena de Melo Franco. Lições de Direito Securitário. S. Paulo: Maltese, 1993, p. 128.

[10] Cf. Gilberto Bercovici. Constituição Econômica e Desenvolvimento. São Paulo, Malheiros, 2005, pp. 33-43.

[11] Paulo Luiz de Toledo Piza. Contrato de Resseguro, cit., p. 235. 

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