Embargos Culturais

As marcas do populismo no presidencialismo brasileiro

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

16 de março de 2014, 8h00

Spacca
A simbologia carismática dos presidentes — e da classe política, de um modo geral —, atingiu seu auge no contexto da chamada República Populista, que irá perdurar até o golpe de 1964. Vargas retornará pelo voto popular em 1950, cuja candidatura teria aceitado “no início da tarde de 19 de abril de 1950, seu aniversário de 67 anos, num churrasco na fazenda de João Goulart, jovem amigo e filho de seu velho amigo Vicente Goulart”.[1] Venceu. Tomou posse. Levou adiante projeto nacionalista, do qual a Petrobras parece ser o exemplo mais feliz.

Seu suicídio, em 1954, decorrente também de sua disputa com a União Democrática Nacional (UDN) levou ao limite a percepção de populismo na política, em dimensões nem de longe alcançadas por outras lideranças, a exemplo de Juscelino Kubistschek (especialmente no que se refere à construção de Brasília), de Jânio Quadros, de João Goulart (notadamente no golpe de 1964), bem como de Carlos Lacerda ou mesmo de Milton Campos, ou Bilac Pinto, importante nome da UDN.

A Constituição de 18 de setembro de 1946, em cuja vigência ocorreu a República Populista, retomou, na essência, quanto ao presidencialismo, tradição que remontava a 1891. Houve alterações apenas de pormenor. O mandato presidencial foi fixado em cinco anos. Manteve-se o regime de competências. De igual modo, as fórmulas de responsabilidade e de responsabilização.

A marca pessoal do chefe do Executivo é característica de todos os modelos presidencialistas que há. Porque há alto nível de concentração, de promessas, de planos, de propósitos, e de responsabilidades, é que, como consequência, cogita-se de uma fórmula centrada na unidade do comando. Alguma indicação desse personalismo pode ser obtida em excertos e fragmentos de discursos de posse, que dimensionam a força de uma retórica de comprometimento. Assim, Juscelino encerrava, do modo que segue o seu inflamado discurso de posse, enquanto a capital ainda estava no Rio de Janeiro:

“(…) É usando desta oportunidade, que é o marco final de uma caminhada áspera e terrível, queremos mais uma vez reafirmar o nosso desejo de reunir, numa obra afirmativa da força e do poder criador da nacionalidade brasileira, todos os homens de boa vontade, todos aqueles que colocam alto o interesse da Pátria, tão necessitada, nesta hora, de desvelo, de cuidado, e de trabalho, sentimo-nos mais do que nunca animados do ardente desejo de trabalhar incansavelmente pela paz da família brasileira. Pedimos a Deus que nos inspire e nos dê o sentimento da grandeza de nossa missão”.[2]

Esse personalismo é também muito nítido em Jânio Quadros, representante dos mais emblemáticos do carisma e do populismo na história política brasileira, como se confirma também na reprodução de excerto de sua fala de posse, já em Brasília:

“(…) É o direito à opção que faz os cidadãos responsáveis e as nações poderosas e permanentes. De advogado que postulava interesses individuais a administrador dos interesses coletivos, se não foi longa a minha jornada, foi ela suficientemente áspera para ensinar-me que a Justiça não é apenas um dos Poderes da República, mas, constitui, isto sim, essência desse mesmo regime (…) O aperfeiçoamento desta Justiça é a nossa grande conquista dos últimos tempos, aquela que mais fundamentalmente responde pela verdade, pela pureza, pela segurança do sufrágio (…) O preço da liberdade, que o voto dos meus patrícios me outorgou, é a servidão à causa pública. Dentro da lei e em estrita obediência à lei, serei livre para impor e exigir de todos o exato cumprimento do dever. Dessa liberdade, faço a minha escravidã”.[3]

Foram apenas 206 dias de mandato. Após um governo tumultuado, marcado, entre outros, por exagerado moralismo e pela tentativa de concepção de uma política externa independente, Jânio perdeu suas referências e apoio. Renunciou em favor do vice, João Goulart, que se encontrava na China. Açodou-se crise política, relativa à posse do vice.

Como solução emergencial construiu-se uma fórmula parlamentarista, de curta duração, derrubada pelo voto plebiscitário. É de Hermes Lima, jurista que participou ativamente da vida política brasileira, inclusive como ministro do STF em hora muito difícil, o depoimento que segue, a propósito da manobra parlamentarista que se engendrou após a renúncia de Jânio:

“Do cunho transacional da emenda decorriam, além do hibridismo do sistema, reservas e mesmo hostilidades apenas adormecidas. Quanto ao hibridismo, ele se agravaria no exercício do governo pelo delicado mecanismo das relações entre o presidente, o Conselho de Ministros e o Congresso, pois, de fato, havia dois chefes do Executivo. É típica desse hibridismo a competência do presidente da República de designar o presidente do Conselho e, por indicação dele, os ministros de Estado que ao primeiro caberia exonerar quando a Câmara lhes retirasse a confiança. O presidente da República exerceria o comando das Forças Armadas mas através do presidente do Conselho. Faltava, sobretudo, consenso político partidário necessário à fixação pelos costumes do sistema surgido da forja parlamentar antes como recurso de momento do que opção estruturada sem outro compromisso além de sua plenitude. No parlamentarismo da Emenda Constitucional nº 4, denominada Ato Adicional de 2 de setembro de 1961, desaguara mais amortecida que vencida a crise militar deflagrada pelo manifesto dos ministros militares. Entretanto, à decisão do Congresso não faltara prudência e senso de oportunidade, pois o tino da oportunidade é lei magna da política. Ela evitava a ruptura do sistema constitucional que vinha funcionando desde 1946”.[4]

João Goulart reconquistou as prerrogativas presidenciais perdidas, porém não conseguiu sustentação. Em 1964 foi deposto por um golpe militar. Ao que consta, narra um biógrafo de Castello Branco, a primeira providência que o novo presidente tomou foi “ordenar a imediata substituição do retrato a óleo de Getúlio Vargas, na antessala do gabinete no Palácio do Planalto, por uma imagem do Duque de Caxias[5]”. Muito simbólico. 


[1] Ribeiro, João Augusto, A Era Vargas- 2- 1950-1954, Rio de Janeiro: Casa Jorge Editorial, 2001, p. 7.
[2] Juscelino Kubitschek de Oliveira, discurso de posse, in Bonfim, João Bosco Bezerra, cit., p. 267.
[3] Jânio de Silva Quadros, discurso de posse, in Bonfim, João Bosco Bezerra, cit., pp. 274-275.
[4] Lima, Hermes, Travessia-Memórias, Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1974, p. 249.
[5] Neto, Lira, Castello- A Marcha para a Ditadura, São Paulo: Contexto, 2004, p. 275.

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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