Passado a Limpo

Parecer de 1903 não autoriza indenizações da Revolta Armada

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

13 de março de 2014, 11h52

Spacca
O Marechal Floriano Peixoto enfrentou a Revolta da Armada, nos anos de 1893 e 1894. Os insurgentes, liderados pelo Contra-Almirante Custódio José de Melo, publicaram um Manifesto, exigindo eleições presidenciais. Floriano assumira a presidência na qualidade de vice de Deodoro da Fonseca, que renunciou em 1892. Havia dúvidas na interpretação da Constituição de 1891, no sentido de que Floriano deveria encerrar o mandato de Deodoro ou, simplesmente, convocar novas eleições. O governo Floriano enfrentou o levante, inclusive mediante a aquisição de vários navios, de qualidade duvidosa, de onde a expressão jocosa então utilizada, esquadra de papel.

Havia vários requerimentos de indenização, protocolados por particulares, que se diziam vítimas de ações de rebeldes, ou mesmo de outros particulares. Invocava-se a responsabilidade do Estado que, no entender dos interessados, deveria indenizá-los.

A questão chegou à Consultoria-Geral da República, por provocação do ministro da Guerra. A Consultoria fixou entendimento no sentido de que em tempo de perturbação intestina ou guerra civil o governo não é responsável por prejuízos que sofrem os particulares. Isentou-se o governo da responsabilidade de quaisquer indenizações que tivessem como causa prejuízos causados em levantes internos.

Com base no Conselheiro Lafayette, o então Consultor-Geral da República argumentou que nas hipóteses de perturbação à ordem pública, por comoção interna, haveria duas formas de delito; alguns causados por particulares, contra particulares, e outros causados pelas forças do governo, como medida para manutenção da ordem. Em ambas as hipóteses, registrou Araripe Júnior, não havia responsabilidade de indenização, por parte do governo.

É que, entendeu o parecerista, a força de movimentos rebeldes suspenderia, esporádica e eventualmente, a própria autoridade do governo. O parecer foi construído com base em jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que, à época, não sufragava nenhuma forma de indenização, em casos específicos da própria Revolta da Armada.

Por fim, registrou-se que havia precedentes de governos que indenizaram em casos semelhantes, embora não o fazendo por uma razão jurídica defensável, porém, por razões de equidade.

O parecer revelava entendimento do Executivo, em matéria de indenizações por atos de guerra interna, percepção que será muito recorrente ao longo da década de 1920, marcada pela intensa movimentação dos movimentos tenentistas.

Segue o parecer:

Gabinete do Consultor-Geral da República. – Rio de Janeiro, 16 de abril de 1903. 

Sr. Ministro de Estado dos Negócios da Guerra – Com o incluso parecer da presente data, restituo-vos os papéis que acompanharam o vosso Aviso n. 13 de 30 de março último, relativos ao requerimento em que Manuel Cesar da Silva reclama pagamento da quantia de 5:690$800, a título de indenização por prejuízos que alega ter sofrido com o saque praticado em 1894, em sua residência, por forças revoltadas sob o comando do contra-almirante Custodio José de Mello. Saúde e fraternidade. – T. A. Araripe Junior. 

Manoel Cesar da Silva reclama pagamento da quantia de 5:690$800 a título de indenização de prejuízos que sofreu com o saque praticado no dia 6 de abril de 1894 em sua residência no distrito da Mangueira, Estado do Rio Grande do Sul, por forças insurgentes sob o comando do contra-almirante Custodio José de Mello. Em tempo de perturbações intestinas ou guerra civil o Governo não é responsável pelos prejuízos que sofrem os particulares. É esta a doutrina adotada em termos gerais pelo Ministério da Justiça e Negócios Interiores, em aviso n. 52, de 9 de outubro de 1894, que transcrevo na integra: 

Sr. Ministro de Estado dos Negócios da Marinha – Com o Aviso n. 2189, de 3 do corrente mês, consultastes qual o procedimento que deveis ter acerca dos protestos feitos por diversos indivíduos contra os prejuízos que estão sofrendo, em consequência da revolta de parte da esquadra brasileira. Restituindo as contrafés que acompanharam o citado aviso, cabe-me declarar-vos que, em tempo de perturbações internas ou guerra civil, o governo não tem responsabilidade, nem viola o direito dos particulares, quando, constrangido por força maior e no exercício legal do poder publico, provê á segurança do Estado ou pratica ato que traga prejuízo a particulares; estes, quer nacionais, quer estrangeiros, não têm direito a indenização. Tal é a doutrina que tem prevalecido entre os mais autorizados publicistas e na prática internacional.

O governo, pois, não é responsável pelas perdas e danos sofridos pelos protestantes, e ao Procurador da República, nesta seção, cumpre apresentar o seu contra protesto. 

(…) 

Nas perturbações da ordem e da paz pública, ensina Lafayette (Direito Internacional, I, § 227), provenientes de tumultos, motins, insurreições e guerras civis, podem ocorrer duas categorias de crimes: os danos causados pelos particulares que se envolvem nesses excessos e os que são consequências naturais da execução das medidas e providências dos governos e seus agentes. O Estado não é responsável nem por uns nem por outros. O tumulto, o motim, importam desobediência e desrespeito às leis e às autoridades. A revolta, a insurreição, a guerra civil, sob qualquer forma, constituem ataques, agressões, hostilidades que tem por objeto negar, destruir, arruinar as leis e o poder público. Estes movimentos, enquanto não são domados e vencidos, suspendem de fato a autoridade do governo e das leis nos lugares em que dominam.

Nestas circunstâncias, é evidente que o Estado não pode responder pelos atos dos desordeiros e dos insurgentes. E tal é o princípio universalmente aceito. Os estragos e danos que se seguem da execução das medidas tomadas pelo poder público para suplantar os tumultos e domar e vencer a insurreição, a guerra civil, como, por exemplo, a destruição de edifícios e benfeitorias resultantes de operações militares, equiparam-se ao mal causado por acidente, caso fortuito ou de força maior e, portanto, não podem determinar a responsabilidade da Nação.

Recorrendo à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, encontro várias decisões, sufragando idêntica doutrina. O acórdão de 27 de janeiro de 1900 declara que em uma luta civil, como foi a revolta de parte da Armada de 1893, os males causados a terceiros, quer pelos revoltosos, quer pelas forças legais no exercício da defesa imprescindível da Nação, são considerados como resultantes de força maior e não obrigam a Fazenda Nacional a indenização de ordem alguma.

Em acórdão de 21 de junho do dito ano, o mesmo tribunal decidiu que não é devida indenização pelos danos materiais que são o resultado de atos de guerra, nem mesmo é exigível o pagamento de aluguel de prédios ocupados pelas forças legais.

Essa jurisprudência, contudo, não tem sido constante. O referido tribunal, sem desconhecer aquele princípio em sua generalidade, mais de uma vez atento o preceito do art. 72, § 17, da Constituição, tem aplicado a casos emergentes, como arrebanhamento de gado, ocupação de prédios, utilização ou destruição de embarcações, o disposto nos arts. 1º e 8º da lei de 9 de setembro de 1826, como tratando-se de expropriação em caso de guerra, no qual cessam todas as formalidades e se permite a posse do uso quanto baste. (Acórdãos de 8 de dezembro de 1897, de 31 de dezembro de 1898, de 13 de julho e 19 de setembro de 1900).

(…)

Sejam, porém, quais forem as restrições postas ao princípio mais geral da irresponsabilidade do Estado por danos ou prejuízos, resultantes de atos de guerra praticados por agentes do governo, no exercício da autoridade soberana, nenhuma dessas restrições aproveita ao caso de que se trata.

O reclamante não pede indenização de prejuízos que sofresse em consequência de operações das forças legais, mas de atos criminosos praticados por insurrectos saqueando a sua propriedade.

O reconhecimento de tal direito é em absoluto repelido por todos os publicistas. E se alguns governos, como observa Lafayette, têm sido levados a atenuar os efeitos de devastações oriundas de guerra civil, concedendo auxílios pecuniários às pessoas que hajam sofrido danos, o tem feito com a declaração expressa de que, “assim procedendo, cedem a um sentimento de equidade e não a uma necessidade jurídica”.

O procedimento contrário, além de injurídico, seria ruinoso ao Estado, que assim se constituiria na obrigação absurda, de reconstituir a propriedade particular, destruída, não só pela ação incerta dos bombardeios, mas também pelos atos depredatórios de indivíduos fora da lei. – T.A. Araripe Junior.

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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