Competência suplementar

Município pode legislar sobre assistência jurídica

Autor

  • Andre Luis Alves de Melo

    é promotor em Minas Gerais doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP mestre em Direito pela Unifran e associado do Movimento do Ministério Público Democrático.

12 de março de 2014, 6h30

O tema sobre a possibilidade de os municípios legislarem sobre assistência jurídica tem sido objeto de recorrentes questionamentos, mas sem uma abordagem mais sistêmica. Primeiramente, é importante registrar que o conceito de “Estado” na Constituição Brasileira engloba a União, estados e municípios, portanto quando a Constituição preceitua a obrigação do estado de prestar assistência jurídica, esta inclui os municípios, mas para estes não impôs a obrigação mínima de instalar a defensoria, como fez para os estados-membros e para a União, conforme observa-se no texto constitucional a seguir: Art. 5º – LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;

A competência legislativa concorrente entre União e estados no artigo 24 da CF, para legislarem sobre “assistência jurídica” e “defensoria”,  não exclui o município, em face da competência suplementar prevista no artigo 30, I e II, também da Constituição Federal. Logo, é equivocado quando se sustenta que o município estaria impedido de legislar sobre o tema, e então não pode prestar assistência jurídica. Um detalhe relevante é que o artigo 24 da CF utiliza os termos “assistência jurídica” e “defensoria” separadamente, pois realmente são diferentes, e isto será abordado à frente. A rigor, competência concorrente não é competência exclusiva ou privativa.

Inclusive, se seguirmos esta lógica reducionista, o município não poderia legislar sobre direito tributário, nem sobre o seu orçamento, suas finanças, sua economia, nem sobre o seu urbanismo, nem também sobre educação no nível fundamental (municipal), pois apenas estados e União podem legislar sobre estes temas de forma concorrente, nos termos do artigo 24, da CF. Logo, observa-se que há um equívoco nesta interpretação restritiva, conforme se vê pelos textos a seguir:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;
II – orçamento;
…………………………………………………….
XII – previdência social, proteção e defesa da saúde
XIII – assistência jurídica e Defensoria pública;
IX – educação, cultura, ensino e desporto;

Portanto, o argumento de que apenas estado e União podem legislar sobre assistência jurídica é equivocado, uma vez implicaria na situação do município também não poder legislar sobre ISS, pois direito tributário,  que é competência concorrente apenas entre estados e União, não estaria previsto na  competência dos municípios.

No entanto, o município pode legislar sobre estes temas com base na competência suplementar prevista constitucionalmente. O mesmo raciocínio aplica-se no caso da assistência jurídica, pois, têm que prestar serviços de assistência jurídica aos seus munícipes carentes, uma vez que é direito fundamental do cidadão e dever do estado.

Oportuno transcrever o trecho constitucional sobre competência suplementar do municípios,  afinal não é crível crer que exista  “pobre estadual” e “pobre federal”, mas inexista “pobre municipal”:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
I – zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público;
II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

Art. 30. Compete aos Municípios:
I – legislar sobre assuntos de interesse local;
II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

Assim, repetimos, se prevalecesse a leitura literal do artigo 24 não poderia o município nem legislar sobre tributos municipais como o IPTU. Portanto, não faz sentido negar esta obrigação com o argumento de que apenas estado e União pode legislar sobre assistência jurídica. Contudo,  o artigo 1º da Lei 1060/50 prevê a colaboração dos municípios na assistência jurídica, afinal temos quase seis mil municípios no Brasil e menos de 2 mil são sede de comarca.

Em face do pacto federativo a questão das competências constitucionais não pode ser taxativa como sustentam alguns. Se fosse assim, nenhum ente federativo poderia legislar sobre direitos humanos ou assistência social, pois não há definição desta competência legislativa na Constituição Federal, exceto alguns direitos de setores específicos.

Dessa forma, para elucidar a questão jurídica buscar-se-á aplicar os princípios da força normativa da Constituição e o princípio da unidade da Constituição, os quais respectivamente significam que: “na solução dos problemas constitucionais, deve-se pautar a interpretação pela maior otimização possível dos preceitos constitucionais e o segundo no sentido de que a Constituição é um sistema integrado por diversas normas, reciprocamente implicadas, que, dessa feita, devem ser compreendidas na sua harmoniosa globalidade”, conforme lecionam  os juristas Vidal Serrano Nunes Júnior e  Luiz Alberto David Araujo, na obra Curso de  Direito Constitucional — editora Verbatin, 2013, página 125.

Ademais, os próprios métodos tradicionais de hermenêutica constitucional permitem uma compreensão através do método jurídico (texto literal permite município legislar supletivamente sobre assistência jurídica), bem como o teleológico no sentido de atender ao interesse do bem comum de descentralização e acesso ao serviço de assistência jurídica para solução do impasse, o qual demanda uma interpretação sistêmica para se alcançar o objetivo do texto constitucional. Não há neste caso conflitos de princípios ou normas, pois o objetivo é assegurar ao cidadão o direito fundamental de assistência jurídica. Dessa forma, destaca-se que na concepção de Gadamer, compreender é sempre, também, aplicar.

No entanto, há dificuldades na comunicação destes aspectos em razão de mitos cristalizados, o que pode ser um obstáculo à efetividade do acesso ao direito, como destaca a concepção de Habermas. Porém, o valor jurídico dominante deve ser a facilitação e ampliação do acesso ao serviço de assistência jurídica.

Outrossim, a função de assistência jurídica não é atividade privativa do estado, pois não se insere nas funções de poder de império, mas na de função social, logo não é de aspecto punitivo ou de responsabilização, devendo as normas serem interpretadas de forma ampliativa em favor do cidadão.

Importante destacar que não se pode confundir serviço de assistência jurídica com defensoria municipal, mas tem sido muito comum em razão da maciça propaganda do Ministério da Justiça.  Em suma, assistência jurídica é o serviço e defensoria é Instituição. A situação é semelhante à Anatel (Instituição/órgão) e normas de proteção do usuário de serviço telefônico (focadas no serviço), embora deontologicamente possam ter pontos comuns, são ontologicamente situações diversas.

No tocante à defensoria, a Constituição Federal estipulou a existência na área federal e estadual no artigo 134,  mas no âmbito municipal incorreu no “silêncio eloquente”.  No entanto, quanto ao serviço de assistência jurídica este deve ser  amplo com  base no Estado Democrático de Direito e sua função social.

O município pode prestar relevante serviço de assistência jurídica em temas fundamentais como infância, adolescência, juventude, mulher vitima de violência, saúde, consumidor, questão fundiária urbana e rural, idoso, educação, registros públicos, mediação e vários outros, logo é inconcebível falar-se em “acesso à justiça”, mas buscar interpretações restritivas do acesso ao serviço.

Contudo, se o município por equívoco nominou o serviço de assistência jurídica como “defensoria municipal”, basta através de uma interpretação conforme a Constituição adequar a expressão, ou então, até mesmo alterar a nomenclatura pela via legislativa municipal.  O serviço de assistência jurídica municipal deve ser exercido por advogados devidamente inscritos na OAB.

Dessa forma, observa-se que a assistência jurídica pelo município é uma espécie de “assistência pública” (art. 23, II, da CF) e um assunto de interesse local (art. 30, I,da CF), na área de direitos fundamentais, logo deve a interpretação ser ampliativa e não restritiva em prol do cidadão para concluir no sentido da possibilidade de legislar sobre assistência jurídica municipal, afinal o município também detém autonomia constitucional.

O município irá legislar sobre “assistência jurídica” de forma suplementar à legislação concorrente federal e estadual, no que couber, conforme artigo 30, inciso II,  para atender assunto de interesse local, tendo liberdade para definir em lei municipal sobre a forma que irá prestar o serviço de assistência jurídica municipal, bem como as matérias prioritárias, renda, estrutura e outros dados.

Nesse sentido, a questão resolve pelo meio tradicional de interpretação da Constituição, pois pela interpretação literal observa-se que o texto permite ao município a competência suplementar para legislar. Pela interpretação teleológica  a Constituição Federal tem como objetivo ampliar o atendimento ao cidadão e não criar monopólios e pela interpretação sistêmica verifica-se que a conjugação dos artigos 5º, LXXIV;  23, II;  24, XIII e 30, I e II; criam uma espécie de sistema de assistência jurídica pública.

Portanto, município pode e deve (poder-dever) legislar sobre “assistência jurídica” desde que obedecendo às normas federais e do seu estado, ou seja, competência suplementar, assim como faz na área direito  tributário econômico, urbanístico, educação, cultura e outros. Afinal, tem o dever constitucional de prestar o serviço de assistência jurídica, conforme artigo 5º, LXXIV, em consonância, com o artigo 23, II, 2ª figura, ambos da Constituição Federal.

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