Justiça Tributária

As grandes fantasias do abuso tributário

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

10 de março de 2014, 8h00

Spacca
Pouco antes do carnaval foram divulgados números verdadeiramente fantasiosos sobre as autuações feitas pelo fisco federal em 2013. 

Num ano eleitoral, em que números e estatísticas se transformam em balanços, não como peças de informação contábil, mas como coisas que se movem ao sabor dos ventos da demagogia e da irresponsabilidade, anunciou-se que o valor total das autuações do ano passado foi o maior resultado na história da Receita Federal, com um aumento de mais de 63% em relação aos números de 2012. Total dos lançamentos: mais de R$ 190 bilhões! 

A notícia (Folha, 25/01) diz que “o setor campeão das multas” foi o da indústria, com uma alta de 77% nas penalidades sofridas, atingindo cerca de R$ 75 bilhões. Já o setor financeiro ficou em segundo lugar nesse desfile pré-carnavalesco, com pouco mais de 42 bilhões, mas foram bancos e financeiras que tiveram o maior crescimento nas autuações, com 167,5%. 

Informa-se ainda que de tudo isso, como regra, o que de fato entra para os cofres públicos não chega a 3% do valor das autuações. Apesar disso, entendem as autoridades fazendárias que o desempenho do fisco foi “extraordinário” e afirmam que para este ano espera-se menos: “apenas” cerca de R$ 140 bilhões! 

Qualquer pessoa bem informada e que se preocupe com as questões relacionadas à Justiça Tributária, já deve ter percebido que tudo isso não passa de um grande engodo, um jogo de faz de conta, com o objetivo de autopromoção dos burocratas que, aboletados no poder, insistem em ignorar as normas constitucionais, as leis complementares e ordinárias, e até mesmo os decretos do executivo e atos administrativos inferiores. O nome disso é irresponsabilidade. 

Ora, se o fisco afirma que só consegue receber 3% dos lançamentos que faz em autuações, confessa que tais cobranças são fantasiosas ou admite a possibilidade de serem incompetentes. Mas todos sabem que o fisco é bem preparado e formado por pessoas muito competentes. Algo está errado! 

Mas não é um erro só. São inúmeros erros, que começam na elaboração de leis que ignoram a CF, na omissão de um Legislativo onde muitos apenas cuidam de seus mesquinhos interesses pessoais, num Executivo cuja única missão parece ser a perpetuação de seu grupo no poder e de um Judiciário onde parte de seus integrantes se acomoda na vitaliciedade para viver no ilusório mundo de togas, medalhas e diplomas, à espera da gorda aposentadoria que lhes dá ainda a oportunidade de cercar-se de vassalos. 

A primeira e principal origem da maior parte dessas autuações estratosféricas, que ocorrem nos três níveis de fisco, federal, estadual e municipal, está na negativa de vigência ao artigo 150, inciso IV, da CF, que veda a cobrança de tributo com efeito confiscatório. 

Pessoas que não estudaram ou não entenderam os conceitos básicos de direito constitucional chegam a afirmar que a CF só alcança o tributo, mas não a multa, como se o texto de nossa Lei Maior pudesse ser entendido apenas literalmente. Ora, trata-se de nossa Carta de Direitos, não do estatuto de um time de futebol! 

Um dos mais completos estudos sobre o assunto vê-se no acórdão do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 754.554-GO, da 2ª Turma do STF, cujo relator foi o ministro Celso de Mello, onde diversas lições são invocadas, como a do, ministro Ilmar Galvão: 

“A desproporção entre o desrespeito à norma tributária e sua conseqüência jurídica, a multa, evidencia o caráter confiscatório desta, atentando contra o patrimônio do contribuinte, em contrariedade ao mencionado dispositivo do texto constitucional federal.” (RTJ 187/73). 

O próprio Ministério Público Federal, como mencionado no referido acórdão, sustentou a aplicação do princípio do não confisco no caso de multa: 

“Na hipótese dos autos, a multa imposta sobre o valor da operação revela a inequívoca desproporção entre a multa e o imposto (ICMS) cobrado. O ICMS incide no percentual de 17% sobre as mercadorias comercializadas, já o artigo 71, II, do CTE determina que a multa será de 25% sobre o valor da mesma operação, ou seja, o valor da multa é maior que a própria obrigação tributária. Assim sendo, referida penalidade tem natureza confiscatória e afronta a princípio da capacidade contributiva.” 

Embora a vigente CF não tenha fixado um limite para as multas tributárias, ela não permite que se pratique abuso, fixando-se valor excessivo, já que se isso ocorrer deve-se observar o preceito do inciso IV do artigo 150. 

Multas confiscatórias estão presentes em praticamente todas as autuações fiscais, se assim considerarmos, como devem ser elas ser consideradas, aquelas que sejam superiores ao valor do tributo ou coloquem em risco a sobrevivência do contribuinte ou de seu negócio. Como já afirmou o Juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos Oliver Holmes Jr, “o poder de tributar não significa nem envolve o poder de destruir, pelo menos enquanto existir esta Corte Suprema”. 

O princípio do não confisco é cláusula pétrea, pois estriba-se na garantia da propriedade privada, protegida pelo artigo 17 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em conseqüência, também são indevidas multas desproporcionais em relação a infrações administrativas, como é o caso, por exemplo, das multas aplicadas no Município de São Paulo, com base na chamada Lei da Cidade Limpa, já considerada ilegal pela justiça. 

Assim, embora se reconheça o esforço do fisco na apuração de infrações, não se lhe pode permitir que, com fundamento em legislação visivelmente inconstitucional, venha a lavrar autuações cujos números servem apenas para ilustrar fantasiosos recordes pré carnavalescos que, resultando em míseros 3% de receita, revelam ser apenas evidentes abusos. 

Quanto à não observância da legislação infraconstitucional, bastam-no dois exemplo simples e bem conhecidos: 

a) a lei complementar 95/98, que regula o processo legislativo, em seu artigo 7° ordena:

“Artigo 7º O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios:

I – excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto;

II – a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão; …”

b) a mesma lei também exige, nos artigos 13 a 16 a obrigação de que a legislação federal seja anualmente consolidada, o que não se faz até hoje;

A não observância dessas normas básicas de técnica legislativa prejudicam o entendimento do cipoal em que se transformou nosso sistema de leis, o que acaba gerando erros de interpretação.

Claro está que a proliferação de leis sem pé nem cabeça, regulando num mesmo texto energia elétrica e pesca, turismo e ensino, remédios e bruxarias, etc., etc., prejudica sua compreensão e faz com que muitas vezes o contribuinte se vê ante autos de infração sem que saiba exatamente porquê. E pior: sem ter tido lucro algum. 

Ora, o Brasil não existe para achacar ou aterrorizar os brasileiros. Se muitos já não se lembram, vale a pena relermos o preâmbulo de nossa Constituição, para sabermos com o que sonharam aqueles que colocaram sua vida em risco pela democracia neste país: 

“…instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias…” 

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    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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