Análise Constitucional

TV Justiça é instrumento para aprimorar Judiciário

Autor

  • Carlos Bastide Horbach

    é advogado em Brasília professor doutor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP e professor do programa de mestrado e doutorado em Direito do UniCEUB.

10 de março de 2014, 11h35

Spacca
Qual foi o acontecimento mais impactante para a vida institucional da Suprema Corte brasileira nos últimos 15 anos? Essa pergunta pode ser respondida a partir de diferentes aproximações. Se pensada a composição do Tribunal, poder-se-ia indicar a aposentadoria do Ministro Moreira Alves, em 2003. Se considerada a carga de processos enfrentada pelos ministros, certamente seria mencionada a repercussão geral, instituída pela Emenda Constitucional 45/2004. Se cogitada a repercussão dos julgamentos, indubitavelmente o processo do mensalão, a AP 470, viria à mente. Entretanto, se a questão for posta no âmbito da abertura do STF — e, por conseguinte, do Poder Judiciário — ao conhecimento da população, a resposta somente poder ser uma: o surgimento da TV Justiça, cujas atividades se iniciaram em 11 de agosto de 2002.

Criada pela Lei 10.461, de 17 de maio de 2002, a qual foi sancionada pelo ministro Marco Aurélio, no exercício da Presidência da República, a TV Justiça tem, segundo disposição legal, a missão de “divulgação dos atos do Poder Judiciário e dos serviços essenciais à Justiça”. Na realidade, contudo, o canal reservado ao Supremo Tribunal Federal presta, desde sua estreia, serviço que em muito transcende a mera e formal “divulgação de atos”, configurando atualmente um importante veículo de afirmação e de legitimação da autoridade da jurisdição constitucional brasileira.

Essa tarefa de afirmação e de legitimação de autoridade é em muito promovida pela prática, desenvolvida desde 2002, de transmissão, ao vivo e sem cortes, das sessões plenárias do STF; o que se tem, mais recentemente, também com as sessões do Tribunal Superior Eleitoral, outra seara significativamente relevante se considerada a inserção política do Poder Judiciário.

É verdade que a transmissão ao vivo dos julgamentos não restou extreme de críticas, seja no passado, seja na atualidade, tramitando hoje no Congresso Nacional projeto de lei que pretende vedar tais transmissões.[1] Por outro lado, há os que sustentam a ocorrência de um aumento na extensão dos votos e uma consequente queda na produtividade do STF após a introdução das transmissões ao vivo, sendo exemplo disso a pesquisa de Felipe de Melo Fonte, divulgada nesta ConJur.[2]

De qualquer forma, é incontestável o real ganho que se teve com a transmissão ao vivo, a partir de 2002, no que toca ao conhecimento e à compreensão do funcionamento da Suprema Corte; não só entre os leigos, mas especialmente entre os profissionais do direito, que nos mais distantes rincões do país passaram a acompanhar, em tempo real, as sessões a que antes somente tinham acesso por meio dos acórdãos, dos informativos ou dos relatórios dos advogados correspondentes. Desapareceu com o advento da TV Justiça, em certa medida, a figura do “especialista em STF”, aquele advogado que, estando em Brasília, apresentava-se aos colegas dos diferentes estados da federação como verdadeiro oráculo do que ocorria ou deixava de ocorrer no Tribunal.

A TV Justiça, pois, democratiza o acesso ao Poder Judiciário e se apresenta, também, como importante ferramenta do advogado no exercício do seu múnus indispensável à administração da Justiça. Nesse contexto, as transmissões ao vivo reforçam o Estado de Direito e aumentam, na população, a consciência da importância do texto constitucional, cuja força normativa é reafirmada de modo vibrante das tardes de quarta e quinta-feira.

A experiência de abertura do Supremo Tribunal Federal brasileiro contrasta, contudo, com a insistente resistência de sua matriz institucional, a Suprema Corte norte-americana, em admitir a presença de câmeras de TV em suas sessões públicas. Ficaram famosas afirmações como a do chief justice Earl Warren, na década de 50, de que “haverá um homem na Lua antes de termos uma câmera nesta sala de sessão”; ou, mais recentemente, a enfática afirmação do justice David Souter de que “no dia em que as câmeras entrarem nesta sala de sessão, elas passarão sobre o meu cadáver”.[3]

Em sentido oposto, cada dia ganha mais relevo o movimento para forçar a transmissão das sessões da Suprema Corte pela televisão, mesmo que não ao vivo e com edições. As duas últimas indicadas para a Corte, por exemplo, chegaram a admitir, em suas sabatinas no Senado americano, simpatia pela transmissão. A justice Sonia Sotomayor lembrou sua experiência positiva com as transmissões das sessões da Corte de Apelações do Segundo Circuito; enquanto a justice Elena Kagan declarou que “seria uma coisa maravilhosa ter câmeras na sala de sessões”.

No último mês de fevereiro, a ONG Coalition for Court Transparency lançou novo vídeo defendendo a transmissão das sessões da Suprema Corte, assim como abriu uma petição on line dirigida ao chief justice Roberts, requerendo a adoção dessa medida o quanto antes.[4] A discussão, portanto, está mais do que viva na comunidade jurídica e de comunicação social nos Estados Unidos.

Há muito o tema da transmissão das sessões dos tribunais é objeto de estudo pela academia norte-americana, havendo artigos de revistas jurídicas que datam já da década de 60 do século XX. Mais recentemente, o número de estudos aumentou consideravelmente, apresentando argumentos favoráveis e contrários às câmeras na Suprema Corte; argumentos esses que podem ser resumidos da seguinte maneira.[5]

O argumento principal a favor das câmeras passa, necessariamente, pela questão da transparência, como destacado pela jornalista Clara Tuma, da Court TV, em simpósio sobre a relação entre a imprensa e os tribunais, realizado pela Cleveland State Law School:

“Então, por que é tão importante a cobertura televisionada de julgamentos? A resposta básica é que nosso sistema judiciário precisa ser tão aberto quanto possível. Há uma razão para que não se conduzam julgamentos em privado e uma razão pela qual são abertas as portas dos tribunais e é convidado o mundo a assistir. A razão é que a justiça brilha ainda mais sob a luz do sol. No conturbado mundo atual, poucas pessoas podem comparecer aos julgamentos. Com tantas pessoas confiando na televisão como sua fonte primária de informações, a cobertura televisionada dos julgamentos expõe um número maior de cidadãos ao nosso sistema judiciário. Uma câmera na sala de sessões aumenta a compreensão do público sobre o mundo judicial, gerando um mais profundo domínio dos princípios jurídicos e de seus processos”.[6]

É comum, ainda, a argumentação no sentido de que a transmissão seria favorável para o reforço da democracia americana, numa função pedagógica em relação aos direitos constitucionalmente garantidos. Nesse sentido, as interessantes observações de Lisa T. Mc Elroy:

“A democracia é essencialmente a história do sucesso de cidadãos no exercício do autogoverno. Câmeras poderiam transformar a história da Corte de uma perspectiva mítica para outra democrática, pois permitiriam ao público ver as histórias se desenrolarem, histórias de americanos comuns que atingiram a Suprema Corte pelo compromisso que tem o tribunal com a máxima da Equal Justice Under Law. Assistir a Lily Ledbetter trazer seu caso à Corte para protestar contra pagamentos discriminatórios a mulheres no mercado de trabalho ajudaria as pessoas comuns a compreender que, num sistema democrático, todos têm acesso à Justiça. É aqui que os americanos poderiam ver que são personagens da história, ou, pelo menos, personagens potenciais, pessoas comuns que podem elas mesmas entrar um dia no templo.

E, transmitindo mais do que somente as discussões orais, câmeras poderiam contar uma história mais completa. Permitir que o público assista ao anúncio das decisões poderia trazer aos lares a força da discordância – mesmo das vigorosas manifestações dissidentes orais – como parte da história democrática em que cada pessoa tem voz e direito de falar, mesmo de discordar, mesmo publicamente. Crítico para essa narrativa da história é que as câmeras são o único meio pelo qual a maioria dos americanos poderia ter acesso às palavras dos juízes em um voto dissidente; como apontado por Lani Guinier, o que um juiz escolhe para falar na sessão da Corte é uma versão mais simples, mais fácil de entender e mais enfática daquilo que está escrito nos votos dissidentes.

Também crítica para a democracia e para a visão do governo em funcionamento pode ser a participação do público em grandes histórias de transformação. Ainda que a Suprema Corte tenha sido no passado composta por nove homens brancos, ela é hoje muito mais diversificada, com três mulheres (uma hispânica) e um homem afro-americano entre seus juízes. Mesmo assim, como registrou o defensor das câmeras e experiente correspondente da Suprema Corte Tony Mauro, não foi permitido ao público tomar parte, como participante ou como celebrante, nessa história de diversidade”.[7]

Ou seja, as transmissões teriam o condão de alterar realidades para muito além dos aspectos meramente técnico-jurídicos, que ordinariamente são associados à divulgação dos julgamentos do Judiciário.

Há ainda os que alegam ter a transmissão das sessões o poder de aumentar o senso de profissionalismo dos advogados, que têm consciência de estarem sendo assistidos por seus chefes e, mais importante, por seus clientes.[8]

No sentido contrário, apresentam-se argumentos relacionados com a naturalidade do funcionamento dos tribunais. Em 2007, testemunhando no Senado americano sobre um projeto de lei que pretendia impor a transmissão das sessões da Suprema Corte, o justice Anthony Kennedy sustentou que as sessões televisionadas mudariam a dinâmica colegiada existente entre os membros da Corte e entre estes e os advogados.[9]

De fato, o temor maior diz com a possibilidade de que a transmissão das sessões faça com que juízes e advogados tenham uma natural tendência de atuar para as câmeras, ou, pelo menos, que fiquem abalados com sua presença nas salas de sessão. Ademais, os críticos da transmissão apontam a hipótese de edição das imagens, com a distorção do conteúdo dos julgamentos, especialmente para fins políticos. Há ainda, para outros, o risco de prejuízo à imagem do tribunal, com episódios – já verificados em algumas cortes estaduais – de comentários de juízes captados por microfones abertos.[10]

Por fim, e não menos importante, há a objeção, costumeiramente feita em relação aos casos criminais, de que seria difícil o equilíbrio entre a transmissão ampla pela televisão – com a consequente cobertura pela mídia – e a garantia de julgamento justo dos acusados.[11]

No exame desses prós e contras, a doutrina norte-americana tem buscado respaldo nas experiências estrangeiras de televisionamento das sessões de tribunais supremos, entre as quais se tem destacado a prática brasileira com a TV Justiça.

Em recente artigo publicado na Brigham Young University Law Review, Kyu Ho Youm apresenta o Supremo Tribunal Federal brasileiro como sendo o mais aberto do mundo à presença de câmeras, comparando-o com outras supremas cortes – como a do Canadá e do Reino Unido – que igualmente permitem a transmissões de suas sessões.[12] O artigo ressalta, porém, que um pequeno número de casos do STF é julgado pelo plenário, o que relativizaria a efetividade das transmissões como ferramenta de realização da transparência do sistema judiciário brasileiro. A atuação das turmas e o grande volume de trabalho singular dos relatores ficariam de fora desse movimento de divulgação das atividades do tribunal.

A menção dos estudiosos norte-americanos ao modelo brasileiro não deixa de ser interessante, na medida em que as mesmas alegações relacionadas aos prós e contras das transmissões podem ser verificadas no contexto decorrente do surgimento da TV Justiça. São exemplos disso a pesquisa relacionada com o tamanho dos votos proferidos pelos ministros do Supremo – que indica uma preocupação com o que o justice Kennedy chamou de alteração da dinâmica colegiada do tribunal – e a preocupação quanto à isenção da corte para o julgamento de determinados casos criminais de grande repercussão midiática – relacionada com o equilíbrio entre a cobertura da imprensa e a garantia dos direitos dos acusados.[13]

A diferença do debate brasileiro, porém, em relação às discussões americanas, está no fato de que ele se dá num ambiente de realidade, em que as sessões são de fato transmitidas e, com isso, é possível avaliar com maior acuidade as vantagens e desvantagens de se ter amplo acesso às sessões de julgamento do STF.

E nesse processo de avaliação, como afirmado acima, os ganhos se evidenciam, o que faz da TV Justiça e das transmissões ao vivo das sessões plenárias instrumentos destacados de aprimoramento, de democratização e de transparência do Supremo Tribunal Federal.

Isso não quer dizer, todavia, que o modelo está livre de críticas. É possível indicar vários aspectos que tornam a experiência da TV Justiça menos produtiva do que poderia efetivamente ser. Há ainda, apesar dos esforços dos órgãos do Poder Judiciário,[14] uma carência de jornalistas que sejam habilitados a produzir uma cobertura adequada dos procedimentos judiciais. Muitos programas da grade do canal são produzidos por associações de classe, o que permite a captura da programação de uma televisão pública por interesses corporativos. Outros programas são produzidos por órgãos judiciários locais, com vocação igualmente local, o que diminui o interesse nacional nas transmissões. Há ainda uma série de programas pretensamente voltados à formação jurídica, mas que cuidam, de fato, da preparação de candidatos para concursos públicos, o que não parece ser muito compatível com os fins da TV Justiça.

Por outro lado, apesar de contar com quase 12 anos de existência, o impacto da TV Justiça no exercício da jurisdição constitucional brasileira ainda é, surpreendentemente, um tema pouco explorado pelos pesquisadores da academia jurídica brasileira. Não se tem, como ocorre nos Estados Unidos, uma vasta produção científica sobre o tema, o que igualmente prejudica a análise da questão e faz com que o debate sobre a transparência do Poder Judiciário fique muitas vezes restrita a simples opiniões.

O aprimoramento da TV Justiça e o incremento do interesse da academia por seu papel na atuação do Judiciário são medidas que permitirão, no futuro, uma mais completa compreensão dos reais efeitos da transmissão dos julgamentos do STF na dinâmica de sua missão constitucional; compreensão essa que, por certo, indicará que hoje se trilha o caminho correto.

 


[1] Trata-se do PL 7.004, de 2013, do Deputado Vicente Candido (PT/SP), que foi inclusive objeto de reportagem desta ConJur . O projeto, em apertada síntese, proíbe a “transmissão ao vivo e sem edição de imagens e sonoras das suas sessões e dos demais Tribunais Superiores”, bem como atribui ao Poder Executivo a competência para fixas os “critérios técnicos e as condições de uso” da TV Justiça.

[2] https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/pesquisa-decisoes-colegiadas-stf-1.pdf . É possível discutir os critérios da pesquisa em questão, mas esse não é o objetivo do presente trabalho. Basta, aqui, o registro dessa tendência de se verificar, a partir da transmissão ao vivo das sessões, uma maior preocupação dos Ministros com as razões externadas em suas manifestações, fazendo com que os votos – como registrado na pesquisa – “antes direcionados ao convencimento dos pares”, sejam “cada vez mais formatados à compreensão do grande público”.

[3] Tais afirmações são compiladas por Mickey H. Osterreicher. “Cameras on the courts: the long road to the new federal experiment”. Reynolds Courts and Media Journal, vol. 1, n. 3, 2011, p. 221-258.
[4] Tanto o vídeo quanto a petição estão no site: www.openscotus.com
[5] É importante registrar que o debate nos Estados Unidos se resume, hoje, basicamente à Suprema Corte, já que as supremas cortes dos 50 estados americanos permitem, em diferentes graus, a presença de câmeras em suas sessões; assim como fazem 14 tribunais federais. O interesse do público nas transmissões das sessões levou um conglomerado de comunicação a fundar, em 1991, a Court TV, uma rede de notícias em canal aberto especializada na cobertura das atividades dos tribunais (cf. Mickey H. Osterreicher. “Cameras on the courts: the long road to the new federal experiment”, p. 238).
[6] Clara Tuma. “Open courts: how cameras in courts help to keep the system honest”. Cleveland State Law Review, vol. 49, 2001, p. 420.
[7] Lisa T. McElroy. “Cameras at the Supreme Court: a rhetorical analysis”. Brigham Young University Law Review, 2012, n. 6, p. 1870-1871. O número 6 da edição de 2012 da Brigham Young University Law Review é integralmente dedicado ao tema das câmeras na Suprema Corte.
[8] Robert L. Brown. “Just a matter of time? Video cameras at the United States Supreme Court and the States Supreme Courts”, The Journal of Appellate Practice and Process, v. 9, n. 1, 2007, 14.
[9] Robert L. Brown. “Just a matter of time? Video cameras at the United States Supreme Court and the States Supreme Courts”, p. 7.
[10] Robert L. Brown. “Just a matter of time? Video cameras at the United States Supreme Court and the States Supreme Courts”, p. 13-14.
[11] Clara Tuma. “Open courts: how cameras in courts help to keep the system honest”, p. 418.
[12] Kyu Ho Youm. “Cameras in the courtroom in the twenty-first century: the U.S. Supreme Court learning from abroad?” Brigham Young University Law Review, 2012, n. 6, p. 2011 e seguintes.
[13] Sobre a influência da cobertura, por exemplo, no julgamento da AP 470, ver a seguinte notícia desta ConJur.
[14] Exemplos dessas medidas são os Encontros Nacionais de Comunicação do Poder Judiciário, promovidos pelo CNJ.

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