Embargos Culturais

O papel de Francisco Campos na Constituição de 1937

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

9 de março de 2014, 8h01

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O Golpe de 1937 teve também como resultado a perda de vigência do texto constitucional de 1934. Getúlio outorgou uma nova carta política com o golpe. A autoria dessa nova Constituição é presumidamente de Francisco Campos, para quem, “cada época tem a sua divisão de poderes, e a lei do poder é, em política, a capacidade de exercê-lo[1]” ou para quem também, “uma lei inflexível da política é a que não permite a existência de vazios no poder: poder vago, poder ocupado[2]”.

Francisco Campos, enquanto intelectual e político, se aproximava, do ponto de vista ideológico do que poderia se definir como um pensamento antiliberal. Nesse momento tem-se a afirmação de ideais conservadores na política brasileira. Cogitando de uma “técnica do Estado totalitário a serviço da democracia”, o que absolutamente paradoxal, Francisco Campos explicava:

“O sistema constitucional é dotado de um novo dogma, que consiste em pressupor, acima da Constituição não escrita, na qual se contém a regra fundamental de que os direitos de liberdade são concedidos sob a reserva de não se envolverem no seu exercício os dogmas básicos ou as decisões constitucionais relativas à substância do regime. A opinião demarca-se, dessa maneira, um campo reduzido de opção, no qual tão-somente se encontram as decisões secundárias ou os temas partidários que não interessam os polos extremos do processo político, exatamente aqueles em torno dos quais se organizam e concentram as constelações de interesse e de emoção de maior poder ou de mais intensa carga dinâmica[3]”.

Na defesa da Constituição de 10 de novembro de 1937, marcada pelo autoritarismo, e pela concentração de poderes nas mãos do presidente, observou o jurista e político mineiro, seu suposto autor:

“O critério de atribuir ao presidente da República a faculdade de expedir, nos limites das dotações orçamentárias, decretos-leis sobre a organização administrativa, o comando geral e a organização das forças armadas, é das mais justificáveis. A administração tem por chefe o presidente: a ele cabe a responsabilidade pela ação administrativa do governo. Da eficiência do instrumento destinado à ação executiva, ninguém pode ser melhor juiz do que o chefe do Executivo. Atribuir-lhe a responsabilidade pelo rendimento da máquina que ele não possa remodelar de acordo com as exigências da ação é, evidentemente, um contrassenso. O vício do regime liberal consistia em dar o poder a quem não tinha a responsabilidade. A Constituição de 10 de novembro, obra do senso comum, associa à responsabilidade o poder. Nisto, ela não faz mais do que seguir o critério de acordo com o qual os homens prudentes administram os seus negócios[4]”.

A Constituição de 1937 dispunha sobre intervenção federal nos Estados, mediante a nomeação pelo presidente da República de um interventor, a quem competiria, por atribuição exclusiva do presidente, o exercício das funções executivas nas unidades da federação para as quais tivessem sido nomeados.

Interventores poderiam ser nomeados pelo presidente, por exemplo, para impedir invasão iminente de pais estrangeiro em território nacional, ou de um Estado em outro, bem como para repelir uma ou outra invasão. Os interventores também poderiam ser indicados no caso de necessidade de restabelecimento da ordem gravemente alterada, nos casos em que o Estado não quisesse ou não pudesse fazê-lo. Interventores administrariam os Estados, quando, por qualquer motivo, um dos seus poderes estivesse impedido de funcionar, entre tantas outras possibilidades que havia de nomeação.

Como regra, previa-se que o presidente da República poderia ser autorizado pelo Parlamento a expedir decretos-leis, mediante condições e limites fixados pelo ato de autorização. No entanto, ao longo dos anos do Estado Novo (1937-1945) operou-se pela exceção, isto é, nos termos da regra aplicável para edição de decretos-lei, pelo Presidente nos períodos de recesso do Parlamento ou de dissolução da Câmara dos Deputados.

Exceção havia a algumas matérias, que não poderiam ser tratadas pelo presidente nessas circunstâncias excepcionais, a exemplo de, entre outros, nos termos da Constituição de 1937, modificações ao texto constitucional; legislação eleitoral; orçamento; impostos; instituição de monopólios; moeda; empréstimos públicos; alienação e oneração de bens imóveis da União.

Por outro lado, havia ampla possibilidade de atuação do presidente da República, mediante decreto-lei, porquanto, respeitando-se limites e dotações orçamentárias, o chefe do Executivo poderia tratar da organização do governo e da administração federal, bem como do comando supremo e a organização das forças armadas.

Na Constituição de 1937 consignou-se que o presidente da República era a autoridade suprema do Estado, a ele competindo coordenar a atividade dos órgãos representativos, de grau superior, dirigir a política interna e externa, promover ou orientar a política legislativa de interesse nacional, e superintender a administração do país. A Constituição de 1937 garantiu a hipertrofia do Poder Executivo Central, especialmente no que se referia ao regime de competências privativas.

Havia conjunto específico de prerrogativas especiais do presidente, todas nominadas. Na Constituição de 1937 aumentou-se o mandato presidencial para seis anos. Não havia previsão de eleições diretas para presidente. Cogitava-se de um Colégio Eleitoral (nunca convocado) cuja composição a Constituição indicava. Vedava-se que, durante o exercício das funções, o presidente fosse responsabilizado por atos estranhos às mesmas.

Em linhas gerais, o Estado Novo foi marcado por intensa centralização, conforme se compreende da passagem que segue:

Em 1937, com o denominado Estado Novo e a ditadura de Getúlio Vargas, ocorreu nova centralização, registrando-se, na prática, a alteração da própria estrutura estatal, num retorno extemporâneo ao unitarismo, embora formalmente a Carta então outorgada, em seu art. 3º, estabelecesse que o Brasil constituía uma federação. A pretexto de imprimir maior racionalidade e eficácia à ação do Estado, a autocracia getulista reprimiu qualquer forma de manifestação política espontânea, liquidando também com o que se considerava “divisionismo federativo”[5].

O fim da II Guerra Mundial, em 1945, potencializou uma série de condições internas que exigiram a queda de Getúlio e o retorno da vida democrática, em sua plenitude. Ainda nos dizeres de um historiador marxista, “que a ditadura estava condenada desde a derrota do nazi-fascismo na Europa, todos os sabiam, exceto talvez o Dr. Getúlio Vargas[6]. Foi muita grande a pressão interna. Getúlio não resistiu.


[1] Campos, Francisco, O Estado Nacional., p. 92.
[2] Campos, Francisco, cit., loc. cit.
[3] Campos, Francisco, cit., p. 28.
[4] Campos, Francisco, cit., p. 93.
[5] Lewandowski, Enrique Ricardo, Pressupostos Materiais e Formais da Intervenção Federal no Brasil, cit., p. 27.
[6] Basbaum, Leôncio, História Sincera da República- de 1930 a 1960, São Paulo: Alfa-Ômega, 1985, p. 141.
 

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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