Passado a Limpo

Parecer de 1903 sobre soberania e missionários estrangeiros

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

6 de março de 2014, 8h01

Spacca
No início de 1903, o Ministro das Relações Exteriores encaminhou Aviso ao Ministro da Justiça solicitando orientação a propósito da ação de sacerdotes alemães que pretendiam catequisar indígenas no interior do estado de Santa Catarina. A questão se resumia em se saber se havia liberdade para que missionários estrangeiros pregassem pelo interior do país, catequisando indígenas; isto é, o problema seria, no limite, de segurança e de soberania nacionais. O Ministro da Justiça encaminhou a demanda ao Consultor-Geral da República, que respondeu por parecer datado de 25 de março de 1903.

O parecerista observou que a catequização seria passível de três níveis de ação. Havia uma catequese de sentido místico, caracterizada pela mera ação de pregação religiosa, garantida pelo texto constitucional, enquanto exercício de liberdade de consciência e de opinião. Nesse sentido, não haveria vedações, de qualquer natureza, pelo que seria dever das autoridades o apoio a este tipo de iniciativa.

Haveria ainda uma catequese de matiz político, outra de natureza econômica e uma terceira de sentido absolutamente administrativo. O parecerista ilustrou as modalidades com exemplos históricos, inclusive com a presença de missionários no Oriente.

Percebia-se que os sacerdotes pretendiam ir além do que possível. Queriam militar no interior do estado de Santa Catarina. O Consultor-Geral colocou muitos óbices à pretensão dos religiosos alemães.

Centrou o problema em questões de soberania. Lembrou que ao tempo do Estado religioso (anterior à Constituição de 1891) a catequese era exclusiva de missionários católicos. A partir da proclamação da República a catequese passou a ser objeto também de regramento administrativo.

Além do que, os missionários não poderiam estar a serviço de seus respectivos Estados, ainda que não se pudesse proibi-los de atuar entre indígenas aculturados, isto é, nos aldeamentos policiados, como então se falava.

Concretamente, na hipótese de pregação entre indígenas não aculturados, a questão era de soberania nacional, pelo que o parecerista remeteu a questão às polícias locais, sem prejuízo de que se comunicasse a Embaixada da Alemanha, a propósito das leis vigentes no Brasil, em matéria de vedação de catequese a indígenas do sertão, por parte de missionário estrangeiro. Segue o parecer:

Gabinete do Consultor-Geral da República – Rio de Janeiro, 25 de março de 1903.

Sr. Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores – Com o meu parecer, restituo-vos os inclusos papéis que acompanharam o vosso Aviso n. 164, de 31 de janeiro findo, com o qual me transmitistes o aviso do Ministério das Relações Exteriores de 21 do mesmo mês, solicitando informações sobre se há inconveniente em que os sacerdotes alemães Otto von Jutzzanka e Curt Haupt pratiquem, no Estado de Santa Catarina, a catequese de índios.

Em Aviso de 21 de janeiro último o Ministério das Relações Exteriores pergunta ao da Justiça e Negócios Interiores se há inconveniente em que os sacerdotes alemães Otto von Jutzzanka e Curt Haupt pratiquem no Estado de Santa Catarina a catequese dos índios.

Se se trata de catequese, no sentido místico da palavra, isto é, de simples instrução religiosa pelo catecismo, pela pregação, pela escola, pelos atos de culto externo, ou pelo emprego de outros meios de aparato de que usam as confissões, para propagar a fé, quaisquer obstáculos que se possam opor ao exercício da missão encontram remédio nas disposições dos §§ 1º, 3º, 6º, 7º e 12º do art. 72 da Constituição da República, que garante a todo nacional ou estrangeiro a inviolabilidade, entre outros, dos direitos concernentes á liberdade de consciência, de expansão das confissões religiosas, de ensino em suas diversas modalidades, de vulgarização pela palavra, independentemente de ligações com a União e com os Estados, os quais não podem aceitar relações de dependência ou aliança em matéria de culto. Assim, às autoridades locais compete amparar o exercício desses direitos, verificando apenas se os que o praticam não perturbam a ordem pública, e aos tribunais reintegrá-los, quando se dê lesão por arbítrio das autoridades administrativas.

Segundo parece, porém, os aludidos sacerdotes alemães não pretendem só isso. O que eles procuram, provavelmente, é exercer a catequese sobre índios errantes, tribos dispersas pelo deserto ou existentes nos territórios daquele Estado, ainda não policiados. Nessa hipótese, a questão muda de aspecto.

Catequese não quer dizer simplesmente propaganda religiosa ou conquista mística; e a história nos mostra que ela foi politica na China, quando para ali seguiram os jesuítas mandados por Luiz XIV, por sugestões do Padre La Chaise (…); foi econômica na América, quando as nações europeias, apossando-se das terras descobertas, buscaram reduzir as tribos selvagens ao trabalho útil à colonização; foi, por fim, administrativa, quando, estabelecido o regime das novas nacionalidades do continente americano, os respectivos governos, abolindo o cativeiro dos índios, criaram missões e consignaram em seus orçamentos verbas para organização e custeio desse serviço. Essa inteligência deduz-se, pelo menos, entre nós, de toda a legislação atinente à catequese.

Recorrendo à lei de 27 de outubro de 1831, decretos n. 285, de 21 de junho de 1843, n. 373, de 30 de julho de 1844, n. 426, de 24 de julho de 1845 e outros atos do Governo, vê-se que a catequese e a civilização dos índios eram, como devem continuar a ser, um serviço de ordem administrativa, importando em essência o exercício da soberania e o policiamento das hordas selvagens sujeitas, como habitantes do território, à suprema autoridade da lei brasileira.

Ao tempo que a Igreja não estava separada do Estado, naturalmente estas missões eram entregues aos missionários católicos, aos quais se delegavam parcelas da autoridade civil. Todavia, esta delegação não eximia o Governo de fiscalizar o exercício das respectivas atribuições. Foi assim que a lei de 27 de outubro de 1831, revogando as Cartas Régias que mandavam fazer guerra e pôr índios em servidão, passou a considerá-los órfãos e entregou-os aos juízes respectivos para que se lhes aplicassem as providências da Ord. liv. Iº Tít. 88. Pelo decr. n. 373, de 30 de julho de 1844 foi regulamentada a distribuição dos missionários pelas províncias, os quais não se podiam desligar da missão ou transferir para outro lugar senão por ordem do Governo, sendo, na parte espiritual, os emanados de Roma sujeitos as formalidades do beneplácito. E como não fosse isto bastante para fazer sentir o caráter civil da missão, o Governo ainda expediu o decr. n. 426, de 24 de julho de 1845, no qual se regulamentou de modo mais positivo o serviço das missões de catequese e civilização dos índios, criando-se em cada província um diretor geral de índios, dando-se regimento aos aldeamentos, inspeção aos padres, providenciando-se sobre o ensino, agricultura, comércio e força militar destinada a protegê-los em suas aldeias, etc.

Feitas estas considerações, é intuitivo que os missionários estrangeiros não podem ser encarregados pelos Governos dos Estados, oficialmente, do serviço de que se trata, porque o veda o § 7º do art. 72 da Constituição da República. É obvio, também, que não se lhes pode impedir o exercício da sua função sacerdotal nos aldeamentos policiados.

Nenhuma destas faculdades, porém, autoriza-os a internarem-se pelos territórios desertos do Brasil e a promoverem ali o aldeamento de índios, a instituírem coletividades sem o concurso da autoridade brasileira, organizando missões, exercendo sobre os índios, além do prestígio místico, atos de governo e de disciplina administrativa.

Permiti-lo seria delegar tacitamente em estrangeiros o exercício da soberania, violando o principio básico da Constituição, que veda a existência de qualquer autoridade territorial não submissa á lei e ás regras de investidura dos cargos oficiais.

Penso, pois, que não é destituída de perigos a entrega dos sertões a missões discricionárias; e a história já nos advertiu desse perigo, uma vez pelo exemplo das Missões do Paraguay, acontecimento que não se repetirá certamente com o aspecto teocrático ali observado, mas que, obedecendo às tendências do século, pode tomar outro não menos sério, o de expansão por meios indiretos.

Nos termos da Constituição da República, é ainda à polícia local que compete exercer vigilância sobre fatos desta natureza.

Nada obsta, porém, a que o Governo da União dê conhecimento à legação da Alemanha dos dispositivos das nossas leis a respeito do objeto da consulta, como se tem praticado em casos análogos. – T. A. Araripe Junior

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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